Roberto Rodrigues tirou a calcinha da melindrosa no cemitério. Despiu a pequena notável de J. Carlos de sua malícia ingênua. Chega de humor. E comeu ali mesmo. Ela nem explica à mãe, enterrada perto, que realiza o desejo.

É novembro. Deitada sobre um túmulo, a jovem sensual abre as pernas para um homem. Sua saia desceu. O espectador não é convocado para ser voyeur. Entre ele e a cena, há uma inscrição na lápide que impede envolvimento externo: “À minha mãe, saudades, da sua filha”. Nesse Finados, o que se celebra não é a morte, mas a pulsão de vida. Se há luto é porque o papel, para o desenhista, é a superfície da qual emergem os fantasmas. No máximo uma “missa cósmica”. “Que valor tem para ti meu desejo?” – questão lacaniana que se põe no diálogo dos amantes. Todo luto aqui se deve à perda do objeto do desejo. Em ano da antropofagia etnológica de Tarsila e Oswald, Rodrigues desnuda, com finura, o canibalismo melancólico, sentimento antecipado de que o coito terá fim. Esse mecanismo psíquico se ativa na realização do prazer e traz os fantasmas da ruptura. É a devoração do objeto para evitar a perda. O luto se antecipa: sentimento melancólico. Um casal repete o beijo ousado da tela. Cenas de oralidade conferem conteúdo corporal ao ato. Outro casal parece estar transando. O espaço, em preto-e-branco, é só geometria. Define um vazio. Não é a solidão do casal diante do espectador, mas o vazio experimentado pelo sujeito na origem do desejo.

Roberto Rodrigues rompe com parâmetros do desenho moderno: o desejo “essencialista” e culpado de Ismael Nery e a graça carioca de J. Carlos. Nery prefigurou a própria morte. Um Nery antinietzschiano indaga: “Meu Deus, para que pusestes tantas almas num só corpo?”. Nery admitia em Confissão: “Não quero ser Deus por orgulho. Quero ser Deus por necessidade, por vocação!”. Num auto-retrato, o cáustico Roberto anota: “cara de doido...”. Não é mórbido, mas seu desenho sabe da coexistência das pulsões de vida e morte: “Os puros têm o mesmo fim dos impuros”. A espessura do olhar em seu fino traço é dada pela circulação do desejo e pelo enfrentamento dos fantasmas. Sabe de Freud. E do desenho. Num deles, manda um recado ao gráfico: “um bom clichê pelo amor de Deus”.

O universo de Roberto é urbano, longe do modernismo rural caipira. As moças fogem de casa direto para a vida moderna. Num desenho em que há cocaína, o título não poderia ser mais perverso: “Ele não toma cocaína, mas dá o pó às pequenas”. Dedica o desenho a Gondim da Fonseca, “o homem que está demolindo os Jeovás decrépitos da literatura indígena”. Roberto estava na contramão do puritanismo modernista patriarcal. Seus cangaceiros estupram. Em 1945, Mário de Andrade exala moralismo ao “defender”o nu do casal de jovens do Monumento à juventude, de Bruno Giorgi. Mas na idealização dos corpos, perde-se o desejo...As mulheres de Rodrigues não são nu-flor. São o sujeito do desejo. E o desejo sempre se expõe ao olhar. Só Maria Martins revelaria o desejo de forma tão explícita. Só as teorias de Flávio de Carvalho, na década de 30, exporiam o desejo de modo tão cadente.

Roberto foi a bomba antimoralista do modernismo, desativada em 1929 por um tiro. Foi assassinado por engano em lugar do pai. Tinha 23 anos. O irmão Nelson, dezessete. Em Vestido de noiva, Nelson teria recriado o velório do irmão. “Quando uma mulher mata um homem, é Roberto morrendo outra vez”, diz Nelson. Num vaudevile, ele entrevê seu teatro: “Houve, ali, uma loucura de gargalhadas. Só um espectador não ria: eu. Depois da morte de Roberto, aprendera a quase não rir, eu comecei a pensar em Roberto e na nudez violada da autópsia. [...] Eis a verdade súbita que eu descobri: a peça para rir, com essa destinação específica, é tão obscena e idiota como o seria uma missa cômica”.

Qual o sentido do perverso na cultura brasileira? Antes de ter cabido a Nelson, essa indagação coube a Roberto. Para a imprensa, Roberto ilustrou suicídios e assassinatos. Pouco antes de morrer declarou: “a minha que arte é sincera. Sou eu mesmo. Não tenho preocupação de fazer blague, nem me interessam a gramática e a cartilha social. Muita gente acha horrível o que faço. Pode ser. Não fosse a vida minha inspiradora”.

Paulo Herkenhoff