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Dois momentos do pensamento cinematográfico brasileiro

Arthur Autran

 
 
De passagem, Ricardo Elias

Levado por entre as ruínas do passado, como o anjo de Paul Klee e Walter Benjamin, o observador em busca de referências acerca do pensamento cinematográfico tem a oportunidade de se deparar com já considerável extensão de objetos, embora a maioria deles permaneça na mais completa obscuridade, mesmo quando as idéias que surgem de livros, artigos, entrevistas e filmes sejam efetivamente instigantes.

É fácil perceber que o nacionalismo tem papel de destaque no panorama do pensamento cinematográfico brasileiro, conforme se pode verificar na obra de algumas das figuras mais importantes do cinema nacional, como Paulo Emílio Salles Gomes, Glauber Rocha ou Alex Viany. Entretanto, mesmo nesses casos tão próximos no tempo, ligados ao Cinema Novo, não se tratava de uma concepção única acerca do nacionalismo.

Alex Viany tem suas idéias bastante marcadas pelo ideário nacional-popular de esquerda, conforme ele era divulgado pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), especialmente através de seu principal ideólogo para o campo cultural, o historiador e crítico literário Nelson Werneck Sodré. Daí toda a importância atribuída por Viany à representação do povo e às manifestações culturais, que eram entendidas como naturalmente do povo: o samba, os costumes rurais, o futebol etc. Essa influência intelectual, de par com o apelo artístico e humano do neo-realismo italiano, levou o crítico cinematográfico Alex Viany a defender o realismo como base estética, destacando a primazia, no quadro da produção nacional dos anos 50, de O grande momento (Roberto Santos, 1958).

Glauber Rocha não seguia uma linha ideológica nacionalista unívoca com a qual possamos identificá-lo, mas podemos distinguir nos seus textos questões levantadas por Viany, Paulo Emílio e Frantz Fanon, relações — mesmo que polêmicas — com os ideólogos do Centro Popular de Cultura (CPC) e referências explícitas a Mário de Andrade na Revisão crítica do cinema brasileiro.

Já Paulo Emílio Salles Gomes teve sua concepção nacionalista, pelo menos na virada dos anos 50 para os 60, influenciada por pensadores ligados ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Note-se, por exemplo, que no clássico ensaio "Uma situação colonial?" o autor, respondendo positivamente à interrogação do título, identifica na "mediocridade", classificada de a "marca cruel do subdesenvolvi-mento", o denominador comum de todas as atividades cinematográficas desenvolvidas no país; já para os intelectuais do ISEB, segundo Caio Navarro de Toledo, a situação do Brasil era homogeneamente subdesenvolvida, sem nenhuma autonomia entre economia, cultura e ideologia; essa concepção expressa pelo axioma "tudo é subdesenvolvido no subdesenvolvimento". São particularmente notáveis as homologias entre o pensamento de Roland Corbisier, um dos líderes do ISEB, e o de Paulo Emílio, pois ambos compartilhavam a crença no desenvolvimento da sociedade caracterizado por fases, a crença de que aquele momento histórico demarcava o início de uma nova fase — a superação do colonialismo —, e entendiam a "consciência" do subdesenvolvimento como fator desalienante e libertador e o desenvolvimento industrial como substrato material para tanto. Segundo Paulo Emílio, a entrada da alta burguesia paulista no cenário cinematográfico, consubstanciada, sobretudo, pela criação da Vera Cruz, é que iniciou o processo de conhecimento do verdadeiro motivo de atraso da produção nacional, incutindo o "gosto da realidade" em nossa "consciência cinematográfica". Também releva observar como a problemática do cinema brasileiro adapta-se singularmente bem ao esquema ideológico de Roland Corbisier, que via a ação devastadora do colonialismo tanto na vida econômica da nação quanto na vida cultural. Para ele a atividade cinematográfica encontrava-se evidentemente dominada nos dois campos: o mercado era controlado pelo produto norte-americano, e, no plano cultural, para o público brasileiro e para os próprios produtores, "cinema mesmo é o de fora".

O final dos anos 50 e especialmente os anos 60 assistem, através da atividade intelectual de nomes como Alex Viany, Glauber Rocha e Paulo Emílio Salles Gomes, ao período em que o pensamento cinematográfico passa a dialogar no mesmo diapasão com o pensamento produzido no Brasil em outras áreas da cultura. Isto é, alguns intelectuais ligados ao cinema são influenciados e influenciam intensamente as idéias de ponta de então da sociologia, da história, da filosofia, dos estudos literários, das artes plásticas etc. Nesse momento também se afirma a imagem do cineasta como um intelectual engajado na discussão dos problemas nacionais, imagem tão bem indicada por Nelson Pereira dos Santos ao declarar que "o diretor de cinema está no mesmo nível de qualquer outro intelectual integrado no processo cultural brasileiro, o que não acontecia antigamente". Por fim, note-se que o período é marcado pela estreita relação entre os que escreviam sobre os filmes e os realizadores, a ponto de muitas vezes as duas atividades andarem juntas, como são exemplares os casos de Glauber Rocha e Alex Viany. A marca do nacionalismo nisto tudo é indelével.

A margem, Ozualdo Candeias

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O breve panorama traçado acima, sobre o pensamento cinematográfico brasileirono momento mesmo da sua afirmação como expressão intelectual de vanguarda,talvez nos ajude a fazer um contraponto com a atualidade.

A crítica ao nacionalismo, e particularmente ao nacional-popular, desenvolvida nos mais variados campos do saber já desde a segunda metade dos anos 60, deixou esse vetor do pensamento cinematográfico na eterna defensiva. Nos diferentes campos culturais, excetuando-se o cinema, o nacionalismo possui hoje relativamente pouca importância ideológica. Isto, por si só, demonstra o desloca-mento atual do cinema em relação aos outros campos. Tal deslocamento decorre parcialmente da ascensão da televisão nos últimos quarenta anos como o veículo cultural que mais influencia as massas. Na televisão, o nacional-popular triunfou, porém desbastado de suas potencialidades de transformação social e tão-somente como ideologia oficial de consolidação da nação como mercado interno de consumo, conforme já demonstrou Renato Ortiz. Devido ao triunfo ideológico, econômico e de audiência da televisão, muito da discussão do cinema brasileiro envolve aquele veículo, o que é positivo e necessário; porém, isso ocorre em prejuízo de todas as outras formas de expressão da cultura brasileira, e isto é indefensável.

Toda essa ordem de transformações reflete-se na própria auto-imagem dos cineastas, que, na atualidade, cada vez menos se vêem como intelectuais ou se projetam neles. Se nos anos 60 o alter-ego do cineasta é o jornalista de O desafio (Paulo César Saraceni, 1964) ou o poeta de Terra em transe (Glauber Rocha, 1966), hoje ele é o realizador audiovisual, que transita pelo cinema e pela publicidade, como em Patriamada (Tizuka Yamasaki, 1984), ou até mesmo pelo circuito internacionalizado de produção, como em Coração iluminado (Hector Babenco, 1998).

Também em contraste com os anos 60, não há atualmente um forte imbricamento entre os realizadores e aqueles que escrevem sobre os filmes. Isso ocorre por várias razões, que vão desde a referida mudança na auto-imagem do cineasta, passando pelas transformações editoriais dos grandes jornais — cujos cadernos culturais são cada vez mais pasteurizados —, até o enclausuramento excessivo dos estudos universitários. Esse quadro gera um ambiente de discussão mais pobre em intensidade e profundidade intelectuais quando comparado àquele dos anos 60.

Seria romântico, saudosista e fora de propósito achar que o adensamento das discussões sobre o cinema brasileiro dependeria de um retorno aos posicionamentos do passado. Este texto não pretende apresentar soluções, apenas constatar a situação. No entanto, um ponto parece-me relevante: a necessidade premente dos que se dedicam a realizar e a pensar os filmes no Brasil de aprofundar o diálogo com as outras áreas da cultura, para além da televisão.