Portal Brasileiro de Cinema  A Boca: centro do cinema voltado para o público popular

A Boca: centro do cinema voltado para o público popular

Arthur Autran

 
 

No quadro atual do cinema brasileiro, em que o público dos filmes é composto basicamente pela classe média, é difícil imaginar um filão voltado para a massa da população. Entretanto, do ponto de vista econômico, o público popular foi muito importante para o cinema brasileiro desde a década de 1930, quando do surgimento das primeiras comédias musicais, que mais tarde dariam forma à chanchada e consolidariam a relação com esse segmento até o início dos anos 60. A partir de então, a televisão absorveu o gênero chanchada, seus principais comediantes e até diretores.

No final da década de 60, diante da enorme repressão política e do avanço do capitalismo no país, a produção cinematográfica destinada ao público popular intensificou-se. O principal pólo de realização concentrava-se na pequena região central de São Paulo intitulada pelos jornais de Boca do Lixo devido ao grande número de prostitutas, traficantes e ladrões, que a tornavam recorrente nas páginas policiais.

Ocorre que a ligação dessa região com o cinema é bem anterior. Remonta à década de 1920, quando empresas distribuidoras se instalaram ali pela proximidade com as estações ferroviárias da Luz e Sorocabana, que serviam de escoadouro de filmes. Além das distribuidoras, escritórios de companhias exibidoras e mesmo produtoras se mudaram paulatinamente para lá, especialmente para a rua do Triunfo e imediações.

Porém, somente no final da década de 60 a região começou a se afirmar como importante centro produtor, estimulado pelas medidas do governo ditatorial implantadas através do Instituto Nacional de Cinema (INC), criado em 1966. É dessa época o aprimoramento da legislação que associava o distribuidor estrangeiro à produção nacional, permitindo que parte do imposto devido sobre a remessa de lucros fosse investida nos filmes. Isso resultou em fitas como Trilogia do terror (1967-8), de José Mojica Marins, Ozualdo R. Candeias e Luís Sérgio Person — associação da Franco-Brasileira com a Produtora Nacional de Filmes e com a Produções Cinematográficas Galasy —, Madona de cedro (1968), de Carlos Coimbra — associação da Metro Goldwyn Mayer com a Cinedistri —, e As gatinhas (1969), de Astolfo Araújo — associação da Gália Filmes com a Servicine e com a Cinematográfica Zonari. Também foi significativa a instituição de um prêmio — cujo montante era inicialmente de 10% sobre a renda líquida dos filmes —, pois colaborava na capitalização dos produtores iniciantes e dava maior segurança financeira aos experientes. A partir de 1969, o INC aumentou a obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiro para 63 dias por ano (em 1975, quando o órgão foi extinto, a obrigatoriedade era de 112 dias); isso ampliou o espaço do produto nacional no mercado e ainda estimulou alguns exibidores a participarem da produção para maximizar os lucros.

O epicentro da “Boca do Cinema”, como também passou a ser conhecida a região, era o mitológico bar e restaurante Soberano, local onde os produtores muitas vezes recrutavam suas equipes e onde se escreviam roteiros, planejavam-se filmes, circulavam informações sobre o próximo trabalho e, sobretudo, se discutia o cinema.

A origem social dos profissionais de cinema da Boca do Lixo era eminentemente popular, o que não impediu que cineastas de classe média, com uma obra marcadamente pessoal, fossem incorporados ao grupo: Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach, Walter Hugo Khouri, Guilherme de Almeida Prado, Ícaro Martins e José Antônio Garcia. O trabalho fotográfico de Ozualdo Candeias e o seu curta-metragem Festa na Boca (1976) registram justamente a complexidade das relações sociais ali estabelecidas.

Críticos e historiadores do cinema costumam afirmar que, naquela época, a “pornochanchada” teve importante papel na conquista do público popular. Entretanto, o termo é empregado para indicar um espectro de filmes por demais amplo e muitas vezes é tomado como sinônimo da produção da Boca do Lixo. A meu ver, a pornochanchada deve envolver as comédias de tom malicioso — inicialmente influenciadas por determinados filmes italianos em episódios — e de acabamento técnico em geral desleixado, das quais Adultério à brasileira (1969), de Pedro Carlos Rovai, constitui ótimo exemplo.

Ao contrário do que vulgarmente se pensa, a produção da Boca do Lixo se desenvolveu para além da pornochanchada e de outros subgêneros do filme erótico. Além de dramas como Mulher, mulher (1979), de Jean Garrett, e Uma estranha história de amor (1979), de John Doo, a Boca produzia vários outros gêneros, tais como: terror — O estranho mundo de Zé do Caixão (1968), de José Mojica Marins; caipira — Sertão em festa (1970), de Osvaldo de Oliveira; faroeste — Rogo a Deus e mando bala (1972), de Osvaldo de Oliveira; histórico — Independência ou morte (1972), de Carlos Coimbra; aventura — Caçada sangrenta (1974), de Ozualdo R. Candeias; e policial — O signo de escorpião (1974), de Carlos Coimbra.

Em geral as fitas eram realizadas com orçamentos muito pequenos e a toque de caixa, o que fica explícito no roteiro, na fotografia, no som etc. Exceção a esse quadro são os filmes da empresa de Oswaldo Massaini, a Cinedistri, que manteve certo nível de produção e que chegou a realizar algumas superproduções para o padrão brasileiro, como Independência ou morte. Mas se houve uma produtora que bem representou o cinema da Boca foi a Servicine, de Antonio Polo Galante e Alfredo Palácios, com seus filmes de orçamento modesto. Outros produtores relevantes foram Aníbal Massaini, Manuel Augusto Cervantes, David Cardoso e Cláudio Cunha.

Em termos estéticos, os resultados da produção da Boca do Cinema são muito díspares. Aparentemente, boa parte dos filmes carece de qualidade, mas diretores como Osvaldo de Oliveira, Jean Garrett, Ody Fraga e Cláudio Cunha ainda esperam por uma avaliação crítica menos marcada pelo moralismo e pelo elitismo cultural. De qualquer forma, há obras da Boca que já foram devidamente reconhecidas: O Bandido da Luz Vermelha (1968) e A mulher de todos (1969), de Rogério Sganzerla; Meu nome é Tonho (1969), de Ozualdo R. Candeias; Império do desejo (1980), de Carlos Reichenbach, e Convite ao prazer (1980), de Walter Hugo Khouri, dentre outras.

A partir da segunda metade dos anos 1970, com o afrouxamento da censura, a produção se concentrará cada vez mais nos filmes eróticos, que se tornam progressivamente mais “fortes” até se transformarem na pornografia hardcore, no início da década seguinte, com Coisas eróticas (1982), de Raffaele Rossi e Laente Calicchio. O filme pornográfico hardcore encontrou público expressivo e elevou numericamente a produção brasileira, mas ao custo da péssima qualidade, do esfacelamento do pequeno parque de produção montado anteriormente e do desbaratamento de quadros artísticos e técnicos, deixando o mercado em frangalhos. Logo, a difusão do videocassete e a produção pornô em vídeo contribuíram com o estiolamento daquele tipo de filme.

A crise crônica da economia nacional bem como a universalização da televisão também parecem ter sido fatais para a produção cinematográfica da Boca do Lixo, pois o público popular passou a contar com formas de entretenimento no seu próprio domicílio, esvaziando as salas de exibição. Isso explicaria, de par com o desinteresse do Estado pelo cinema e com a explosão dos custos devido à inflação galopante e à alta do dólar, o amesquinhamento de gênero e estilo da produção da Boca, que já no final dos anos 1970 passa a se concentrar no filme erótico, e no início da década seguinte descamba para a pornografia explícita.

Hoje, resta saber se é possível recuperar o público popular para o cinema brasileiro. Em caso contrário, teríamos de nos contentar com a cristalização de uma produção que, apesar de enfocar a vida do povo, é realizada e consumida primordialmente pelas classes abastadas, o que não deixa de se relacionar com as representações profundamente negativas do popular presentes em 16060 (1996), de Vinicius Mainardi, Domésticas, o filme (2001), de Fernando Meirelles e Nando Olival, e Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund.