Portal Brasileiro de Cinema  O tesouro (quase) perdido de Khouri

O tesouro (quase) perdido de Khouri

Renato Luiz Pucci Jr.*

 
 
 
 
 
 
 

Ao tomar conhecimento de uma grande Mostra Walter Hugo Khouri, com exibição de cerca de 20 filmes, vem à mente um dos mais batidos clichês sobre o cineasta: “Khouri sempre se repete”. Isso foi lido tantas vezes na imprensa que talvez surja o receio de assistir a filmes que nada acrescentariam após ter visto o primeiro. É claro que também se diz que “Bergman, Antonioni e todos os autores do cinema também se repetiam”. Mas, para os que não conhecem tão
bem a filmografia desses gigantes, a ressalva talvez não sirva de consolo. Que sentido poderia haver em, durante duas semanas, assistir vinte vezes ao mesmo filme, ainda que apareça com títulos diferentes?

Talvez a repetição exista apenas em relação aos dez filmes com o famoso Marcelo, afinal o personagem está sempre às voltas com problemas existenciais e a profusão de mulheres ao seu redor. Penso, porém, que mesmo nesses filmes o nível de repetição não é tão grande quanto se imagina, pois o personagem surge em fases diferentes de sua vida, com nítida evolução na maneira de olhar o mundo, além de seus problemas existenciais se constituírem de maneira diversa de uma fita para outra.

Não há necessidade de permanecer nos filmes com Marcelo. Aliás, o restante da obra de Khouri parece gritar para que a atenção se desvie desse personagem: a heterogeneidade prolifera nos filmes sem Marcelo, vários dos quais pouco ou nada exibidos nas últimas décadas. Eis um dos motivos para uma mostra como a atual: levar ao público e à crítica uma série de filmes que permaneciam no limbo do cinema brasileiro.

Antes de comentar a fase mais ignorada da filmografia de Khouri, isto é, a do início dos anos 70, é preciso lembrar o que houve no seu período de juventude. Dentre os cinco títulos dessa época, dois são considerados perdidos: O gigante de pedra (1954) e Fronteiras do inferno (1959), respectivamente o primeiro e o terceiro filmes do diretor. Espera-se que um dia alguém localize cópias integrais para que não seja perdida definitivamente essa parte da produção.

Dos outros filmes da fase inicial, Na garganta do diabo (1960) deveria merecer atenção especial, sobretudo porque inexiste em vídeo e é pouco exibido na TV. Poucos se lembram que Khouri já dirigiu um filme com fundo histórico. O drama de amor e ganância transcorre ao som dos canhões da Guerra do Paraguai, no século XIX. Índios sem camiseta e sem rádio de pilha são figuras importantes nessa história. Ressalta um elemento que desaparecerá na fase adulta de Khouri: o amor romântico bem-sucedido. Bastariam esses pontos para se reconsiderar a idéia de um eterno retorno do mesmo na filmografia do cineasta.

Na década de 60, Khouri realizou os filmes pelos quais é mais lembrado, em especial Noite vazia. Ao entrar nos anos 70, embora o seu renome não tenha diminuído junto à crítica, lançou uma sucessão de fitas cuja memória varia da vaga lembrança ao mais completo desconhecimento.

A primeira delas é O palácio dos anjos (1970). Ainda que exista em vídeo, percebe-se o quanto este filme é pouco conhecido quando se escutam ataques ao suposto “machismo” dos filmes de Khouri. Em O palácio dos anjos, as personagens principais são mulheres e a narrativa se passa segundo o ponto de vista de uma delas. São três secretárias, sem dinheiro, sem futuro, sem o respeito do mundo dominado pelos homens. Optam pela prostituição de luxo, que parecia a solução. Existe um óbvio carinho da narração por essas personagens perdidas em ilusões.

 

Os seis filmes subseqüentes sequer foram lançados em vídeo. As deusas (1972) introduz uma referência inexistente no restante da filmografia: Carl G. Jung. Ao contrário de outros filmes de Khouri, em que afloram traços freudianos, em As deusas passa-se da menção ao próprio Jung à ênfase no seu conceito de ânima, esculpido na parede da casa. É, ao mesmo tempo, um drama sombrio e musical, da primeira à última cena.

Marcelo, que havia nascido em As amorosas (1968), retorna pela primeira vez em O último êxtase (1973), como adolescente, interpretado por Wilfred Khouri, filho do cineasta. Um dado destoante é que a história transcorre quase inteiramente fora da cidade de São Paulo, pois Marcelo e os amigos vão acampar no interior. Ele já é temperamental e tende ao isolamento, mas nada possui do cinismo que irá caracterizá-lo em aparições posteriores.

É curioso que, após esse Marcelo adolescente, Khouri tenha dado um salto para a morte do personagem em O desejo (1975). Em flashbacks, ele surge pouco antes de morrer, já no fim da meia-idade, acabado fisicamente, em completa depressão. Este último ponto diverge do segundo filme em que Marcelo morre, Forever (1993), no qual um clima zen recobre sua pessoa. Na década de 70, todavia, não existia vislumbre de saída para o personagem. Em O desejo, Marcelo é interpretado por Fernando Amaral, homem de cinema (inclusive dirigiu filmes) e que atuou também na TV.

Uma das facetas menos conhecidas da obra de Khouri é a de que ele fez duas fitas de terror. A primeira foi O anjo da noite (1974), que possui os ingredientes necessários ao gênero: sobrenatural, medo, perigo de vida. A casa em que estão os personagens possui um teto que se assemelha à tampa de um esquife, em evidente premonição dos fatos que irão se suceder. Um ator não-khouriano enriquece o filme: Eliezer Gomes, que trabalhou em O assalto ao trem pagador (Roberto Faria, 1962). Novamente é rompida a suposta permanência de Khouri em São Paulo, pois, com exceção da seqüência de abertura, O anjo da noite se passa em Petrópolis, no Rio de Janeiro.

As filhas do fogo (1978), rodado em Gramado, é o outro filme de terror. Ele mereceu, pouco depois do lançamento, um exame à luz da psicanálise no artigo “A realidade interior por trás da superficialidade aparente”, de Flávio Fortes D’Andrea (Suplemento Cultural de O Estado de S. Paulo, de 22/4/1979): o que estaria por trás das vozes sobrenaturais, do homossexualismo feminino até entre espíritos, da repetição dos nomes das mulheres (Ana, Diana, Mariana), da relação sadomasoquista com o único personagem masculino? Acrescento que, apesar da mudança de gênero, estão presentes traços khourianos: as vozes do além falam de uma angústia que não termina com a morte, pessimismo bem de acordo com o cineasta.

Deixei Paixão e sombras (1977) para o fim da relação dos anos 70. Há quem diga que esse foi o maior fracasso de bilheteria de Khouri. Quase ninguém o assistiu. Há muitos anos foi exibido na Sala Especial da TV Record, em meio a pornochanchadas. Talvez seja, entretanto, um dos títulos mais importantes da filmografia. Aqui, Marcelo não é o caçador de mulheres, cínico e estéril em relação a qualquer atividade criativa.

Em Paixão e sombras, Marcelo é cineasta. Nos estúdios da Vera Cruz, condenados à morte, ele tenta realizar mais um filme. Sua assistente o acusa de fazer histórias incompreensíveis. A atriz principal (interpretada por Lilian Lemmertz) joga-lhe na cara que faz filmes perfeitos e frios. Uma jornalista diz que os filmes de Marcelo tratam de coisas que não importam às pessoas. Em nenhum outro roteiro Khouri demonstrou tanta consciência das críticas que lhe fizeram. Paixão e sombras é um manifesto do tipo de cinema proposto por ele, e também um retrato das terríveis dificuldades de se filmar no Brasil: A noite americana, de Truffaut, é uma brincadeira perto do pesadelo por que passa Marcelo.

Há dois filmes dos anos 80 que precisam ser mencionados, mesmo que disponíveis em vídeo. O primeiro é Eros, o deus do amor (1981), tido como obra-prima por alguns críticos. Filmado em câmera subjetiva, numa ousadia que foi além da experiência americana de A dama do lago, Eros é uma peça de valor incalculável para o cinema brasileiro. Toda a fama que ainda venha a ter será pouco diante do caráter inusitado e sofisticado do filme.

Para terminar, aquela que talvez seja a mais estranha criação de Khouri: Amor voraz (1984), uma ficção científica. À maneira de Alphaville, de Godard, não há efeitos especiais ou cenários futurísticos. Numa casa de campo, a mulher (Vera Fischer) encontra um ser alienígena com a forma de homem, fisicamente inerte. Comunica-se com ele por telepatia, o que não é compreendido pelas demais personagens. A mulher se apaixona pelo ser, projetando nele seus desejos frustrados em relação aos homens do planeta Terra. Outra personagem diz que o alienígena seria perfeito, mesmo incapaz de ficar em pé: “não come, não fala de futebol, não conta piada, não assiste TV”. Apesar da jocosidade com os terráqueos do sexo masculino, tudo é contado no tom angustiado da maioria das realizações de Khouri.

Creio que mesmo o mais ardoroso fã do cineasta dificilmente irá gostar de todos os filmes acima comentados. Alguns espectadores podem apreciar os dramas existenciais; outros, os filmes de gênero, e assim por diante. Essa seria a maior prova de que existe mesmo diversidade na filmografia de Khouri.

Há, no entanto, uma marca inconfundível em cada um dos filmes, às vezes tão somente numa linha do diálogo, outras vezes no estilo cuidadoso nos enquadramentos. Afinal, desde os anos 50 Khouri se propôs a fazer exatamente isso: cinema autoral. Mas que fique claro: autoria não significa homogeneidade. Algumas vezes, inclusive, o mais relevante está no que diferencia uma película das demais. Ganham os espectadores, que têm à disposição a múltipla riqueza dessa obra. À crítica, caberá reavaliar todo esse material, definindo seu papel na história do cinema brasileiro.

*Autor de O equilibrio das estrelas - filosofia e imagens no cinema de Walter Hugo Kouri