Portal Brasileiro de Cinema  Que cinema é nosso?

Que cinema é nosso?

José Carlos Avellar

 
 
Na senda do crime, Flamínio Bollini Cerri

1. Em 1991, bem no instante que a produção e a distribuição de filmes tinham sido interrompidas (com o fechamento da Embrafilme e do Concine e com o congelamento dos depósitos bancários pelo Governo Collor), O fio da memória, documentário que Eduardo Coutinho começara a filmar em 1988 para discutir o centenário da abolição da escravatura, surgia com sua estrutura fragmentada e descontínua, funcionando, a um só tempo, como representação da condição do negro e do cinema brasileiro. O filme se organiza a partir da leitura dos cadernos de anotações soltas de Gabriel Joaquim dos Santos (que nasceu em 1892, num 13 de maio, e morreu no começo de 1985). No caderno, ele registra observações diversas e conta como fez a Casa da Flor, em São Pedro d’Aldeia: com o "resto das grandes obras da cidade", apanhando pedra, madeira, "louça no lixo, cacos de vidro, florzinhas de vidro para pregar na parede da casa". Imagens da Casa da Flor, uma arquitetura entre o primitivo e o barroco, e a leitura de trechos dos cadernos de Gabriel articulam o discurso do filme e dão unidade ao material disperso que a câmera registra. A narração é montada com as frases soltas do caderno: num mesmo parágrafo Gabriel fala do salário de dois cruzeiros por dia que recebia na salina, da reforma agrária assinada por Jango em 1964, de Santos Dumont voando em 1906 na França, do Papa de Roma, do preço do feijão e de José de França, que se amasiou com Almeirinda. O filme, como a casa feita de cacos e o texto descontínuo dos cadernos, compõe uma estrutura fragmentada. Feito em 16 mm, não ampliado para 35 mm, O fio da memória – com raríssimas exibições num período em que quase nenhum filme brasileiro chegou às telas e nenhuma nova produção foi iniciada –, a estrutura desse documentário e sua figura central talvez possam ser tomados como representação do que somos todos nós e do que, em particular, é o nosso cinema: fragmentação e descontinuidade.

2. A ostra e o vento : no título e na história do filme que realizou na metade da década de 90, Walter Lima Jr. propõe uma imagem da relação/tensão entre espectador e cinema, uma outra imagem do que somos (quando espectadores de cinema): a concha, a casca, o imóvel, o fechado, e o aberto para todos os lados, o que não tem forma nem corpo definidos, o que é só movimento. O título se refere não apenas aos personagens da história contada no filme, ao conflito entre Marcela e Saulo (ela a ostra, ele o vento) ou àquele outro entre José e Marcela (ele a ostra, ela o vento). Refere-se também ao modo de contar essa história, de ver a relação entre espectador e cinema como algo que não se fecha na sala de projeção (na concha, na casca), mas se abre na cabeça do espectador (vento, idéia, movimento). Uma sugestão de que no instante da projeção o filme (que, aberto na tela, é como ar em movimento fechado na concha, na casca, na sala) é ostra e vento; e de que o espectador (que parado na sala de projeção, como dentro de uma concha, move a imaginação para todos os lados) é vento e ostra.

3. No cinema, o que um filme nos conta não é apenas (não é principalmente, não é necessariamente, e em alguns casos nem mesmo é aquilo que nos diz) a aparência primeira da cena. Gestos, falas, fragmentos de imagens parecem expressaralgumas vezes algo que nos é essencial e que vai além do sentido imediato da ação.Terra estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas, por exemplo: quando Alex, em Lisboa, ao tentar vender o passaporte, ouve o compra-dor dizer: "Un pasaporte brasileño hoy no vale nada", ou quando Paco, em São Paulo, descobre que não tem dinhei-ro suficiente para pagar o en-terro da mãe e desabafa: "Tudo isso? Não pode ser! O país inteiro enlouqueceu!". O que o filme revela para o es-pectador não é bem o que os personagens vivem naquele instante, mas é, sim, o que eles vivem por meio daqueles gestos, aquela mesma sensação de Estorvo, que o Eu do filme de Ruy Guerra expressa, ao cruzar o portão de casa, dizendo que não está "entrando em algum lugar mas saindo de todos os outros"; a mesma sensação de não pertencer a lugar nenhum que leva o Madame Satã, de Karin Ainouz, a confessar: "Eu não gosto muito de mim". Um mal-estar como o de Dalva e de Vítor em Um céu de estrelas, de Tata Amaral; ou de Neto em Bicho de sete cabeças, de Lais Bodanzky; ou de Ivan caminhando sem rumo, revólver na mão, na noite vazia de O invasor, de Beto Brant.

É o mesmo mal-estar que leva André a dizer em Lavoura arcaica, de Luiz Fernando Carvalho: "Na minha doença existe uma poderosa semente de saúde" ou "Toda ordem traz uma semente de desordem; a clareza, uma semente de obscuridade". Um deslocamento e uma sensação de mal-estar não precisamente localizada nos leva a dizer no cinema, de modo velado e indireto, que em casa nos sentimos como se estivéssemos em terra estrangeira, sonhando com um país que funcione como o moto-perpétuo que Lineu persegue em Kenoma, de Eliane Caffé.

4. Há mais ou menos dez anos, filmes brasileiros recomeçaram a ser produzidos e exibidos com alguma regularidade, depois do vazio do começo dos anos 90. É verdade, entre nós, que fazer cinema continua a ser mais ou menos como ditar uma carta para a Dora, de Central do Brasil : não são muitas as chances de que a carta venha a ser colocada no correio e de que chegue ao destinatário. Ainda assim, produzimos pouco mais de duzentos filmes de longa-metragem nos últimos dez anos — quatro em 1993, quase quarenta em 2003. Zero vírgula um por cento do público em 1993, algo em torno de dez por cento em 2003, quando devemos repetir o percentual do ano anterior. É tempo de procurar saber como anda a cultura cinematográfica no Brasil. A existência de uma cultura cinematográfica (desenvolvida especialmente a partir do final dos anos 50, presente mesmo quando impedida de se pronunciar regularmente) que permitiu o aparecimento de novos realizadores e a rápida retomada do cinema tão logo se esboçaram os primeiros mecanismos incentivadores e reguladores da produção e circulação de filmes. Assim como, no período posterior ao Governo Collor, a ausência de filmes mais empenhados em se apresentar como expressão cultural desestimulou a produção destes outros filmes, mais empenhados em se comportar como produtos industriais, em se adequar ao modelo imposto pelo impreciso e inibidor instituto que convencionamos chamar de mercado. O cinema, mostra a experiência recente, não se confunde com os processos técnicos e econômicos de produção de filmes: primeiro existe como expressão cultural, ou, então, não existe. Só depois se transforma numa indústria.

5. Tomando o todo como parte (em oposição ao que se costuma exigir do filme brasileiro: que cada um se expresse inequivocamente por inteiro), tomando cada filme como pedaço (por mais inteiro e completo que ele seja), vendo o cinema como revelação de um aspecto, de um fragmento do que somos — não como resumo, não como imagem/síntese, mas intencional e estruturalmente como fragmento que precisa de outro para nele se continuar — podemos nos perguntar que pedaço de nós se encontra no São Jerônimo, de Júlio Bressane, caminhando no deserto, ou, como Júlio prefere, no grande sertão, no desertão. Que outro pedaço nosso se expressa na festa colorida da escola de samba de Orfeu, de Carlos Diegues? No olhar de Lampião, braço estendido apontando o revólver para a câmera, no começo de Baile perfumado, de Paulo Caldas e Lírio Ferreira; no olhar doce da violinista e no sorriso discreto para a câmera no final de Tônica dominante, de Lina Chamie; no rosto desfigurado do menino de rua armado, gritando que aquilo ali não é cinema, é de verdade, no Ônibus 174, de José Padilha. Que pedaço de nós está ali nos tiros infantis, quase acidentais, que matam Japa e Branquinha em Como nascem os anjos, de Murilo Salles? Tomando o todo como parte, no cinema talvez seja possível ver que estamos nos perguntando se não somos o produto de todas essas coisas (e de muitas outras não citadas aqui, mas igualmente no cinema), perguntando se não somos a montagem do que vemos, sonhamos e vivemos.

Limite, Mário Peixoto

6. Perguntar, assim como as muitas perguntas que nos propomos a perguntar neste seminário, em torno de uma questão central: o cinema, uma expressão cultural? Muitas perguntas; ou, como resumiu Glauber num texto de 1968 (não propriamente à procura de uma reposta mas para deixar a questão em aberto, indicando que a pergunta é a própria resposta, desde que não se deixe de perguntar):

Quem somos?
Que cinema é o nosso?