Portal Brasileiro de Cinema  Em busca da voz legítima

Em busca da voz legítima

Carlos Alberto Mattos

Vidas secas, Nelson Pereira dos Santos
O prisioneiro da grade de ferro, Paulo Sacramento

Nas exíguas e dantescas celas do setor "Amarelo" do extinto presídio do Carandiru, uma minúscula abertura na porta de ferro era o único elo entre os presos enfur-nados ali, como sardinhas em lata, e o resto do mundo. Por essa fenda, um in-tegrante da equipe de filmagem entrega uma pequena câmera de vídeo para que um detento filme seus companheiros e explore, na medida do possível, o espaço sufocante do cubículo.

Essa passagem do documentário O prisioneiro da grade de ferro assume um significado bem maior que o chamado "contrato", estabelecido entre o diretor Paulo Sacramento e os presidiários do Carandiru. A atitude de romper a barreira entre mundos sociais reciprocamente segregados tem sido uma constante do audiovisual brasileiro recente, em busca de legitimidade como forma de expressão cultural.

Por sua natureza de construção virtual, que depende fortemente da tecnologia, o cinema tem sido uma arte menos permeável à auto-expressão daqueles que se localizam do lado da platéia. Se a revolução do vídeo teve efeitos democratizantes no campo da produção, não os teve nas áreas de distribuição e de exibição. Ao contrário, pode-se dizer que, com a proliferação dos produtores individuais, aumentou o abismo entre o doméstico e o profissional.

Dos anos 90 para cá, a produção de documentários tem lançado pontes sobre esse abismo, quando enfatiza a subjetividade do olhar. Nesses casos, o documentário abre mão do seu estatuto de peça retórica sobre a realidade objetiva e passa a ser um conjunto de impressões pessoais e pontos de vista. Tome-se como exemplo o projeto O desconhecido. Nele, o diretor Felipe Lacerda está alfabetizando na gramática audiovisual cerca de vinte anônimos, que passam então a realizar pequenos documentários sobre si próprios, suas idéias e visões de mundo.

Há uma diferença fundamental entre essas propostas atuais e o surto de auto-expressão estimulado nos anos 80 pelas oficinas de vídeo realizadas em escolas e comunidades carentes, ou por projetos como Vídeo nas aldeias, conduzido por Vincent Carelli, que equipava grupos indígenas, em busca de autoconhecimento e preservação da identidade. Nesse tipo de iniciativa, tratava-se de municiar contingentes excluídos, numa perspectiva pedagógica, antropológica – e diria mesmo política –, visando, em última instância, o domínio da própria imagem. Ali o realizador confundia-se com o instrutor, e a autoria dissolvia-se no anonimato.

Em vez disso, projetos como os de Paulo Sacramento e os de Felipe Lacerda cedem a liberdade de escolha e os meios de captação de imagem a seus "parceiros", mas reivindicam a forma final resultante da edição e de todo o processo de finalização. Não há o culto à espontaneidade da auto-expressão em si mesma, nem a utopia de uma imagem autêntica e pura. O material gravado pelos sem-filme é claramente mediado por critérios do diretor. Em O prisioneiro da grade de ferro, raramente percebemos com clareza a separação entre o que é auto-expressão dos presos e o que é documentação pura e simples na terceira pessoa.

O gesto de passar a câmera aos sem-filme nem sempre é tão literal como no documentário de Sacramento. Na verdade, esse gesto tem tomado formas bastante diferentes no cinema brasileiro recente. De comum, apenas o desejo de emitir uma voz que seja percebida como algo legítimo, que emane da realidade retratada (prin-cipalmente urbana) e chegue à tela com força de verdade.

Uma dessas formas é o "entrevistismo" que tem as-solado o documentário bra-sileiro nos últimos anos, em parte devido à enorme in-fluência exercida pelos fil-mes de Eduardo Coutinho. Embora com resultados qua-se sempre pífios em comparação com os obtidos pelo mestre, um grande número de documentários têm se pautado por depoimentos e entrevistas de populares, moradores e trabalhadores de rua, figuras retiradas da indiferenciação urbana para uma espécie de museu de gente (in)comum.

A entrevista e o depoimento, na maioria desses casos, não servem para ajudar a construir ou autenticar um discurso emitido pelo realizador do filme, mas para expressar um mundo (real ou imaginário) que pertence exclusivamente àquele que fala. Quando Coutinho privilegia a ordem original das gravações de Edifício Master, está mantendo vínculos de lealdade não só com o ritual dos encontros, mas também com os fluxos de pensamento colhidos naquele endereço. A plenitude do cinema de Coutinho vem dessa voz legítima que os filmes veiculam, numa especial convergência de expressividades da gravação e da edição.

Não se pode deixar de invocar, aqui, o papel dos reality shows, essa depravação capaz de colocar os princípios do documentário observacional em estado de cópula com a moda dos game shows. Pelo bem ou pelo mal, os reality shows não deixam de sinalizar certa demanda de autenticidade (ainda que apenas suposta), latente num público amplo e surpreendentemente diversificado.

Quando chegamos ao cinema de ficção, vemos que as estratégias de legitimação da voz se multiplicam ainda mais. Muito se tem falado das influências da linguagem do documentário sobre os filmes de ficção bra-sileiros. Elas convergem nesse sentido. Mesmo os detratores de Cidade de Deus ressalvaram os "garotos fantásticos" do elenco. Referiam-se, percebendo ou não, a todo um magnífico trabalho de construção corporal e verbal, de fundo nitidamente documental, voltado para a reprodução fiel do ritmo e do tom dos jovens das favelas. O primeiro dia, O invasor e Uma onda no ar apontaram para o mesmo alvo, às vezes com o recurso de um consultor de diálogos oriundo da comunidade enfocada. Quando falha esse dispositivo, já sentimos que alguma coisa não funciona a contento. A falta de uma voz legítima afeta bastante os diálogos de Carandiru, o que impede o filme de Hector Babenco de transmitir plenamente os dramas compilados por Drauzio Varella.

Não são apenas os filmes sobre a periferia e a exclusão que saem à procura dessa voz legítima. Esse é o esforço de Domingos Oliveira em Separações, com sua crônica afetiva da Zona Sul carioca, ou de Jorge Furtado em Houve uma vez dois verões, retrato de jovens gaúchos que se materializa principalmente no plano verbal. Ou ainda de Murilo Salles em Seja o que Deus quiser, com sua visão sardônica de um suposto encontro entre dois mundos.

Tudo isso evidencia uma nova conquista do cinema brasileiro na longa travessia de aprender a falar. Historicamente, boa parte das dificuldades no contato com o público advém de um déficit de reconhecimento. Por muito tempo, diante de um filme nacional, o brasileiro não se reconhecia naquilo que ouvia. Nem a si, nem à voz do cinema americano, assimilada como a voz mesmo do cinema. Em 1957, Paulo Emílio Salles Gomes descrevia a seguinte síndrome:

“O cinema nacional, seja na procura do naturalismo ou na estilização, ainda não descobriu como o brasileiro anda, dança, cospe, coça-se ou fala. [...] Talvez algumas linhas do diálogo fossem, ao serem escritas, boas. Mas ouvidas, renova-se o desastre habitual. Quando não temos o sentimento aflitivo do amadorismo é que estamos sob a impressão do mais ultrapassado profissionalismo. Penso que o problema estético primordial em nosso cinema é o da maneira de falar.”

Como uma resposta a esse diagnóstico, o cinema de hoje se lança ao aprendizado mediante o estímulo à auto-expressão. Está aberta a temporada de caça à dicção própria de cada grupo sociocultural, embora esta dicção venha a ser depois submetida, em níveis diferentes, a um acabamento industrial característico da estética dominante. De qualquer forma, é uma vitória sobre certos projetos "populares" do passado, incapazes de incorporar os falares do povo para além dos estereótipos.

O processo de revalorização da voz legítima reflete-se, sobremaneira, na tomada dos meios de expressão por parte de representantes credenciados da massa dos sem-filme. São os "novos sujeitos do discurso", conforme expressão comumente usada por Ivana Bentes, que vem estudando o fenômeno. Aí compreendem-se a produção audiovisual de favelas e zonas periféricas, de rappers e artistas como Sabotage e MV Bill etc. Longe de qualquer sublevação revolucionária, esses novos emissores atuam numa espécie de pacto com setores da estética dominante (publicitários, documentaristas, experimentalistas etc.) e sob o olhar interessado da comunidade acadêmica.

Beneficiado por essa convergência, o cinema brasileiro pode estar, enfim, superando o impasse detectado por Paulo Emílio há quase cinqüenta anos.