Portal Brasileiro de Cinema  Por um cinema de risco

Por um cinema de risco

Paulo Sacramento

 
Rocha que voa, Erik Rocha
 
Família do barulho, Júlio Bressane

A história do cinema brasileiro é uma história de crises e ciclos. A soma de fatores políticos, financeiros, técnicos e estéticos sempre esteve a renovar (muitas vezes com ruptura) o modo corrente de produção. Dialeticamente, no cerne das crises coexistiam os motivos de sua irrupção e as possíveis rotas de fuga.

Desse modo, podemos compreender, por exemplo, como, a partir da falência do mo-delo industrial dos grandes estúdios, foi possível surgir a proposta do Cinema Novo, e a importância fundamental naquele momento do avanço tecnológico, que permitiu contrapor ao imenso parque de luzes e câmeras de estúdio, câmeras leves e negativos sensíveis. Existia, pois, um terreno propício para o surgimento de uma nova estética, engendrada por jovens talentosos com idéias na cabeça e câmeras na mão. Anos mais tarde, em oposição ao enrijecimento de um Cinema Novo — que, numa segunda fase, já ensaiava os passos rumo ao mercado —, é nítido ver a liberdade pulsante do Cinema Marginal, ao optar pelo barateamento e pela simplificação dos meios de produção, opção seguida também pela pornochanchada.

São exemplos emblemáticos de constantes rompimentos e renascimentos em nossa trajetória, que surgem em momentos-chave, quando se torna necessário arejar a produção. Nessas situações, as bandeiras são as mais diversas, variando entre a pura utopia, o desespero, o deboche e mesmo o recorrente pragmatismo do mercado. O resultado é, invariavelmente, uma guinada sintática e semântica acompanhada de uma grande renovação de cineastas, permitindo a alternância de gerações.

Se as diversas tentativas de consolidar uma atuação possível, pertinente e perene no país fracassaram (a despeito do talento inquestionável de realizadores nos diversos modelos propostos), é porque a infra-estrutura de nosso cinema continuou com graves distorções ao longo dos anos. Mercado tomado e concorrência desleal, com produtos que já chegam pagos, configuram um sistema em que, como se sabe, somos estrangeiros em nosso próprio território.

Retaliações comerciais, como as que atualmente ameaçam aplicar ao México, são um exemplo dos procedimentos adotados para manter o domínio do mercado. Um panorama que pode complicar-se ainda mais com a estrangeirização em curso do parque exibidor, em avançado processo de transformação. Some-se a isso o apartheid existente entre as emissoras de televisão e a produção cinematográfica independente e temos o retrato de uma atividade mantida promissora artificialmente, às custas de um investimento estatal gigantesco, travestido de "incentivo fiscal".

É claro que a eterna discussão versa sobre a necessidade da participação direta do Estado na produção. Quem tiver alguma dúvida da importância fundamental dessa presença basta olhar para os números de nossa produção no período pós-Embrafilme, antes da implantação generalizada de leis de incentivo em todos os âmbitos da atuação estatal (federal, estadual e municipal).

Enfim, após a ressaca das verbas incentivadas de maneira descontrolada, pode-se constatar facilmente que a meta estabelecida, de habituar os empresários ao investimento cultural, não se cumpriu. Na ausência de incentivos (muitos deles permitindo abater, em impostos, cem por cento dos valores aplicados), os empresários se retraem e não "investem".

Embora isso ocorra em todas as áreas da cultura, torna-se dramático no setor cinematográfico, atividade que tem por característica um alto custo e um retorno financeiro imprevisível e demorado. Destaque-se ainda o analfabetismo cultural de nosso empresariado, que, na falta de uma estratégia própria de marketing cultural, via de regra opta por filmes de altíssimo custo e grande visibilidade de mídia, concentrando recursos e minando assim a própria filosofia descentralizadora intrínseca à política de incentivos.

Dessa maneira, é plenamente com-preensível que em tempos de incenti-vos fiscais reine o projeto do chamado "cinema de qualidade". Esse cinema pasteurizado e asséptico é propício para um empresariado despreparado e para um país sem idéias: um "cinema da segurança" para investidores que não investem e criadores que não criam. Essa aberração já nos legou a ditadura da fotografia, da direção de arte e da produção. E uma (in)conseqüente e inquestionável inflação nos custos de produção. Tanta fartura legou-nos, por fim, a indigência da linguagem.

A geléia geral é tão grande que continuam a propalar o conceito de filmes de mer-cado, quando a imensa maioria da produção não atinge o patamar de 100 mil espectadores e nem sequer consegue cobrir seus custos de lançamento comercial.

Se o panorama de auto-sustentabilidade é tenebroso, patinamos também em termos de relevância cultural e de importância artística. Na ausência de propostas mais consistentes, e espremido entre a dificuldade de captação de recursos e a mediocri-dade dos intermediários da cultura, restou ao chamado Renascimento do Cinema Brasileiro o bastião da diversidade.

É nítido apontar que este é um momento de crise de nosso cinema. Resta saber se seremos capazes de canalizar esforços e idéias para superá-lo. O mero surgimento de novos cineastas, estreando em longa-metragem, muitos deles oriundos do filme curto, não foi capaz de trazer contribuições estéticas modificadoras. Nem mesmo o alar-deado advento do vídeo digital trouxe até o momento grande novidade. Talvez devido aos altos custos da transferência para a película, só agora a tecnologia digital começa a dar sinais de sua importância, estando longe, no entanto, de estabelecer-se como um divisor de águas.

Mesmo com as inúmeras possibilidades advindas do barateamento incomparável na captação e edição de imagens, da democratização nunca antes vista do acesso aos bens de produção, da mudança estética intrínseca à incorporação de novas texturas de imagem, granulação, cores, recursos e ritmos de edição, essa tecnologia e essa liber-dade na gramática não tiveram ainda a força ou o tempo necessários para alterar significativamente o nosso modelo de produção.

Nunca as mudanças tecnológicas foram tão radicais,desde a invenção do cinema. Somente o tempo dirá da real influência de taismudanças, e se por essas veredas caminhará o filme brasileiro. Venha de onde vier,no entanto, que estejamos atentos e preparados para um indispensável cinema derisco, capaz de nos libertar por algum tempo da areia movediça do falso mercado edo bom gosto insosso dos filmes de conveniência.