Portal Brasileiro de Cinema  Notas para um filme de montagem

Notas para um filme de montagem

Eugênio Puppo

 
 
Cartelas de apresentação dos cinejornais
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Sequência do filme Ampla Visão (2004)

A montagem de um país

Com o objetivo de fazer meu primeiro documentário de longa-metragem, a partir de imagens de arquivo, em junho de 2005 comecei a assistir sistematicamente aos mais de 8 mil rolos de filme do acervo do cinegrafista Primo Carbonari.

Nascido em São Paulo, em 1920, Carbonari trabalhou como fotógrafo lambe-lambe e em laboratórios fotográficos até se firmar como cinegrafista. Aprendeu o ofício com o chamado cinema de “cavação” (epíteto pejorativo para designar o cinema amparado na atividade de “cavar” filmagens encomendadas por políticos, fazendeiros, industriais etc.), embora também tenha filmado pequenos documentários, geralmente com o intuito de divulgar empresas, obras do governo ou campanhas políticas, e realizado docudramas de longametragem, entre eles A morte por 500 milhões (Antônio Orelana, 1965), uma curiosa reconstituição de um assalto a banco ocorrido em São Paulo, em 1965.

A maior parte do acervo de Carbonari, no entanto, é composta dos seus famosos cinejornais, que eram chamados de Notícias: feitos especialmente para o cinema e em geral exibidos antes do filme comercial, os noticiários tinham seis ou sete assuntos variados, oito minutos de duração e uma locução que substituía o som direto. O primeiro deles surgiu em 1954; a partir de 1957, Carbonari começou a produzir também o Notícias em Amplavisão, em que usava uma nova lente anamórfica, que ampliava horizontalmente o quadro da imagem, como no Cinemascope. O Notícias nº 216 (1960), por exemplo, trazia os seguintes assuntos: visita do presidente dos Estados Unidos ao Brasil, Carnaval no Rio de Janeiro, inauguração de Brasília, campanha presidencial de Jânio Quadros, rompimento de açude em Orós, casamento de Dirce Quadros, jogo de tênis e a corrida automobilística Mil Milhas Brasileiras.

 
Primo Carbonari apresenta a lente Amplavisão para representantes da Fox Filmes

A análise desse acervo impressionante nos permite identificar claramente um modo particular de representar o Brasil, não só no aspecto político, como também na representação da cultura, da natureza, da sociedade. Carbonari desejava se tornar um dos mais bem-sucedidos documentaristas brasileiros e para tanto dedicou-se com afinco à sua produtora, investindo em diversas frentes, com o objetivo de mostrar um Brasil diferente, mas muitas vezes idealizado.

Não era raro vê-lo enaltecer personalidades políticas extremamente controversas, como Adhemar de Barros, Jânio Quadros e Paulo Maluf, ou os inúmeros desfiles grandiosos encabeçados pelos militares. O próprio golpe de 1964 era narrado por Carbonari como uma revolução pela democracia e pelo povo. No Notícias nº 1000, de 1974, podemos ouvir na locução: “Milhares de pessoas vêm se juntar às que já se encontram na capital do país para assistir à posse do general Ernesto Geisel [...] quarto presidente eleito pela Revolução de 64 [...]. Emilio Medici, agora ex-presidente, desce a rampa do Planalto com a consciência tranqüila. Cumpriu seu dever para com o povo. Seu governo foi aberto ao diálogo franco com todos. Foram cinco anos dedicados à nação que nele confiou [...]. Parabéns, presidente Geisel. Parabéns, Brasil”.

 
Cena de cinejornal

Esse entusiasmo em relação a um “projeto nacional”, muitas vezes transmitido pela narração de forma exacerbada, não estava presente apenas em assuntos ligados à política. Alguns trechos, analisados sob a ótica atual, chegam a adquirir um tom rebuscado, como é o caso da locução do Notícias nº 1246, de 1985, sobre a cidade de Porto Seguro: “Este é o monte Pascoal, primeira porção de terra avistada pela esquadra de Pedro Álvares Cabral, em 22 de abril de 1500. A seus pés está erguida Porto Seguro [...] o mais puro relicário do descobrimento do Brasil, conservando documentados os primeiros momentos de nossa gloriosa história. Porto Seguro foi também a centelha que fez surgir o Brasil católico, aliás a maior nação católica do mundo contemporâneo. [...] Região fadada pela natureza para um grande futuro, desenvolveu-se devido às riquezas naturais, as plantações de café e cacau e outros cereais. [...] Feliz é o povo que Cristo reuniu à sombra da Cruz. E nós, brasileiros, nascemos sob esse signo santo, por ele chegaremos ao nosso grande destino. E Porto Seguro foi o marco inicial”.

Em eventos históricos ou lançamentos de livros de autores pouco conhecidos, Carbonari era presença constante nos próprios filmes, e sua aparição era muitas vezes destacada pela locução. Tamanha exposição provavelmente fazia com que obtivesse cada vez mais trabalhos — a Primo Carbonari Produções Cinematográficas empregava muita gente e precisava seguir adiante.

Mas qual era a verdadeira intenção de Carbonari? Por que ele tomava determinadas posições? Será que era crítico a respeito do próprio trabalho? Ou, como qualquer empresário, queria apenas ganhar e estar no poder? Nesta revisão de seu trabalho, também será preciso considerar o caráter oficial de seus filmes, a proximidade com os militares e a postura pouco crítica diante da realidade brasileira.

O filme de montagem

Um dos maiores desafios de fazer um longametragem a partir do acervo de Primo Carbonari é sem dúvida organizar e selecionar esse conteúdo gigantesco e variado, que equivale a quase seiscentos longas-metragens de noventa minutos. Apenas para que os filmes pudessem ser revistos, uma equipe de trinta estagiários, duas pesquisadoras de conteúdo e profissionais da Cinemateca Brasileira cuidou de catalogar e recuperar o material, já que boa parte dele se encontrava em estado avançado de decomposição.

 
Sala de visualização da Heco Produções

Concluído esse processo trabalhoso, que levou mais de onze meses, a assistente de montagem e eu passamos a assistir semanalmente, na moviola, a cerca de trezentos rolos de filmes, e a descrever o conteúdo de cada um em uma ficha de direção. Para organizá-los, criamos uma simbologia gráfica que nos ajuda a identificar tecnicamente o material: filme telecinável, parcialmente telecinável ou aguardando repescagem; filme com narração interessante, com trecho de som direto ou cujo assunto precisa ser pesquisado; material para trabalho gráfico ou material feio com boas situações; bom cinejornal, boa seqüência, bom para reenquadramento. Isso sem contar a simbologia para identificar o conteúdo: publicidade do governo, mundo cinematográfico, eventos esportivos, feiras de produtos, concursos de beleza, vida animal, coquetéis e uma infinidade de outros assuntos foram registrados pelas lentes de Carbonari. Ao final do processo, uma cena de cada filme selecionado é fotografada e afixada a um mural, para compor um roteiro visual de montagem.

É possível, por exemplo, estruturar a narrativa partindo da articulação de temas, e assim refletir sobre a representação do país no cinejornal. Mas é também possível abordar formalmente o material, e com isso articular as imagens de três maneiras distintas: estrutural, isto é, utilizá-las por seu significado primário, documental; estética, com as imagens destituídas do significado original, utilizadas apenas como força narrativa (o que ajuda a levantar as contradições do material); e sensorial, utilizadas simplesmente como interferência de montagem, destituídas do significado original, deturpadas, aproveitadas de maneira puramente gráfica, podendo ser inclusive reenquadradas. Para que isso ocorra com sucesso, é preciso que o montador mantenha diálogo constante com o editor de som, a trilha sonora e o artista gráfico.

O fato é que a grande força do filme virá justamente do livre encadeamento dessas seqüências, e das possibilidades críticas que a montagem pode imprimir a elas. Esta é a situação atual do projeto. Daqui para a frente, é uma nova história.