Portal Brasileiro de Cinema  Daniel Rezende

Daniel Rezende

 
Walter Murch

Primeiro longa

Depois de me formar em publicidade na ESPM e fazer estágio numa agência, percebi que não queria nada daquilo, então fui para uma produtora de comercial, onde achei que podia começar algo próximo do cinema, que mexesse um pouco com câmera. Me envolvia com produção e de noite ia no Avid porque precisava fazer o making of de um comercial, e aprendia a mexer com a câmera. Até que o Fernando Meirelles viu e gostou de um making of que eu tinha feito, de um produto que nem lembro direito qual era, e me chamou para montar um comercial com ele: ele fez uma versão e eu fiz outra, e a minha foi aprovada na agência, então passei a montar meio a meio com ele. Em seguida comecei a montar sozinho e assim foram três anos até ele me chamar para fazer o Cidade de Deus (2002), minha primeira experiência com algo maior que trinta segundos — na verdade eu já tinha trabalhado um pouco com videoclipe. Minha experiência com o Cidade de Deus foi ao mesmo tempo maravilhosa e aterrorizante.

Eu estava começando e achava que montar era pegar a cena e fazer a cena da melhor maneira possível. Foi aí que aprendi que a montagem no cinema não é aquela cena em si, mas que você tem que entender da narrativa como um todo. Acho que o Walter Murch usa bem a idéia do macrocosmo e do microcosmo: você trabalha dentro do microcosmo, montando cada cena separadamente — podem estar todas ótimas —, mas, na hora que você bota uma na frente da outra e vê o todo, pode não funcionar no filme. Foi com o Cidade de Deus que eu aprendi que montar comercial é diferente, não que um seja melhor que o outro, mais fácil ou mais difícil, são só abordagens diferentes. Num comercial você monta e é aquilo, você não desenvolve personagens, não desenvolve narrativas, uma história em que uma coisa puxa outra e outra e outra. O comercial, o videoclipe e o cinema são três modos completamente diferentes de trabalhar a montagem.

O Cidade de Deus foi atípico principalmente porque o roteiro era muito bem-feito, já estava muito bem estruturado quando eles começaram a filmar, tanto que apesar de a gente ter mudado coisas de lugar, ter cortado coisas, o filme ficou muito próximo da estrutura que o roteiro já fornecia. A grande dificuldade para montá-lo foi o fato de terem usado um elenco todo de não-atores, baseado em improvisações. Nenhum dos atores leu o roteiro, era passado a eles o que ocorreria na cena e o diálogo vinha dos próprios atores, então nenhum take era igual ao outro, as marcações eram sempre diferentes, cada take tinha uma novidade, uma entonação diferente, uma interpretação diferente. Você tinha que construir a atuação do ator na montagem. Foi uma coisa muito maluca, porque tive que aprender a narrativa do filme, que, apesar de ser dividido em três histórias, ainda tinha uma coisa de ir e voltar. Eu tinha que conseguir costurar tudo aquilo.

 
Firmino da Hora e Alice Braga em Cidade de Deus (2002)

A relação com o diretor

O diretor tem uma relação diferente com o montador do que a que ele tem com a equipe da filmagem, porque lá são muitas pessoas, o estresse é muito grande, as diárias são caras, então as coisas têm que acontecer naquele momento. Já a relação diretor e montador é muito próxima, numa sala em que geralmente estão só os dois. Você tem que construir uma boa relação e tentar falar a mesma língua, até porque vai ter uma hora que cada um vai achar uma coisa diferente. A maior vantagem foi que eu já conhecia o Fernando da publicidade e a gente se dava bem na montagem, então a relação foi fácil. Ele me deixou muito livre. Essa relação só é benéfica se o montador sabe que pode dizer para o diretor, olha, eu acho que você está errado aqui e tal.

Tem diretor que diz que diretor cuida da filmagem e montador da montagem. Eu sou contra, acho que o diretor manda no filme, para mim o que vale é a visão do diretor; posso não concordar, mas a palavra final é a dele, só posso tentar até onde a relação permite, para que continue numa boa. No Água negra (2005) Walter e eu tivemos algumas diferenças: o tema do horror é muito mais distante dele do que é para mim, eu me divirto mais do que ele nos filmes de terror, então às vezes a gente discordava em algumas coisas, às vezes ele concordava dizendo que eu estava mais próximo desse universo do que ele, e tem horas que ele achava que tinha um limite, como cinematografia, em que ele podia chegar, então eu concordava e pronto. Estou ali como um colaborador da obra, mas não sou eu que dito a obra, quem faz isso é o diretor. Acho errada a concepção de que o montador é que tem a completa noção de montagem, mas às vezes acontece, tem diretor que não manja nada, às vezes você entende mais do que ele, mas você tem que respeitar, porque ele é a cabeça, é a pessoa que controla a equipe.

Montagem "aberta" X montagem fechada

Comecei a montar o Cidade de Deus duas semanas depois que eles começaram a filmar. Fui para o Rio de Janeiro e montava na casa do Fernando durante o dia. Ele chegava à noite e eu mostrava o que tinha feito e ele já sabia o que estava funcionando ou não. Então algumas cenas já eram refilmadas. É muito útil para o diretor ter o montador enquanto filma — quando o filme já tem esse dinheiro para a pós-produção, isso fica mais fácil, hoje em dia isso já está acontecendo. Quando você começa antes, se vir que tem alguma coisa no material que não funciona, já leva para o diretor e dá tempo de ele pelo menos tentar mexer na cena seguinte ou na anterior; sabendo que existe um problema ou um ator que não está funcionando, ou uma atuação muito explícita ou que não dá para entender muito bem, ele pode pensar numa solução durante a filmagem e tentar corrigir enquanto filma.

 
Gael Garcia Bernal e Rodrigo de la Serna em Diários de motocicleta (2004)

Até hoje fiz quatro filmes: Cidade de Deus, o Narradores de Javé (2003), da Eliane Caffé, Diários de motocicleta (2004) e Água negra, com o Walter Salles Jr., e estou fazendo o quinto, O goleiro, com o Cao Hamburguer, com quem eu também trabalhei em ficção este ano, numa série de TV — que tem também suas diferenças de linguagem. Desses cinco longas, o único em que comecei a fazer a montagem só depois que acabou a filmagem foi o Narradores de Javé. É o que eu chamo de montagem fechada: você chega para trabalhar e o material já está ali.

Moviola X Avid

Tem uma história engraçada: um dia antes do Oscar, quando o Cidade de Deus foi indicado ao prêmio de melhor montagem, eles juntaram os cinco indicados a melhor montagem e fizeram uma palestra. Eu fui convidado, e foi num teatro em Los Angeles, com quinhentas, seiscentas pessoas, estudantes de cinema. Eu, com a minha cara de moleque, sentado ao lado de quatro feras, tendo que falar em inglês sobre o filme — foi aterrorizante. E uma hora eles perguntavam: como você trabalha? que equipamentos você usa? qual foi sua história dentro da montagem? etc. E todos, mais velhos que eu, começaram a contar a história deles, que usaram a moviola, que passaram pelo Avid... Eu era o último a responder. Quando chegou a minha vez, eu disse: olha, como vocês podem ver, sou o mais novo aqui, não passei por essa fase anterior, não posso comparar um com o outro porque já comecei em Mídia 100 e depois aprendi o Avid, então vim de uma geração que não passou por isso, e desculpa, não quero ofender ninguém, mas a única vez que vi uma moviola na minha vida foi num museu!

Mas todos eles disseram a mesma coisa: hoje em dia, não faz mais sentido montar um filme numa moviola, ninguém mais faz isso. No Água negra, sentei numa moviola para escolher uns takes, e é muito louco porque não consigo pensar como se montaria um filme numa moviola — acha esse take, corta — não consigo porque eu aprendi de outra maneira.

O Walter Murch diz que ele anotava muito na moviola; no Avid, a gente escreve muito menos porque é tão fácil você rever, é tão rápido que às vezes me policio para anotar um pouco ou usar as marcas vermelhas. Mas também guardo muito na memória, tenho uma memória boa. O Avid é muito rápido, e isso talvez seja a maior vantagem e o maior defeito, é muito rápido mudar de idéia e é muito fácil ver o resultado. Você muda de idéia e fala: ah, vou pôr este take aqui, e põe. Refleti muito no ano passado conversando com o Walter Murch. Como não trabalhei na moviola, procurei me informar lendo, conversando sobre o processo com assistentes lá de fora, até para saber quais são as vantagens e as desvantagens daquilo que a gente usa agora.

Então talvez a maior vantagem do Avid e da tecnologia digital de hoje seja a edição não-linear, é muito rápido mudar, você vê o resultado do que você pensa muito rápido na montagem e já vê se funciona ou não. A montagem não está no teclado, ela está na sua cabeça, o teclado é um meio de chegar aonde você quer, mas é você que pensa na montagem, você imagina o que quer e o computador executa. Na moviola é preciso pensar muito bem antes, porque quando você cortou, cortou. Se precisa de mais um frame, vai ter que colar aquilo. O maior problema da montagem hoje talvez seja tomar a decisão, um pouco por culpa da facilidade em poder mudar tudo muito rápido.

Método de trabalho

Antes de ser montador eu era DJ, e acho que isso me ajudou muito na montagem, porque existe um senso de ritmo: estou numa pista de dança e meu set tem duas horas, tenho todos os meus discos aqui, meu material bruto, e tenho que construir ritmicamente para manter aquelas pessoas dançando e interessadas naquela música durante duas horas. Posso acelerar, diminuir, então construo uma música de duas horas com a qual tenho que manter as pessoas animadas e dançando. Esse senso rítmico me ajudou na montagem, não só no videoclipe mas também de maneira rítmica na narrativa, o que vem depois e depois. Geralmente trabalho muito com o som nos filmes, trazendo músicas como referências, músicas que depois seriam compradas, trabalhando muito com efeitos sonoros.

Leio o roteiro, até porque antes de entrar no trabalho preciso saber sobre o que é o filme. No longa, diferentemente da publicidade, você se envolve por um tempo razoável, se é um longa filmado lá fora você fala em anos, um ano e pouco, porque lá fora também é de praxe você começar com a filmagem e ir até a primeira cópia. Lá, o montador continua contratado durante a mixagem, ele checa as cópias, é uma peça fundamental. O sound designer, que vai fazer o som, também é peça fundamental, mas a presença dos editores é importante, a opinião do montador é sempre perguntada; o som do filme faz parte do trabalho do montador, assim como checar o trabalho final para saber se está tudo certo, se a luz está boa. Ele fica até o fim. Aqui no Brasil, até porque geralmente não há dinheiro para continuar pagando, você fecha a montagem e com sorte eles o chamam para o último dia de mixagem. Essa experiência lá fora me mostrou que é muito importante o montador estar na mixagem.

A grande coisa da montagem, tanto na moviola quando no Avid, é a organização. Você tem que ser organizado, você até consegue fazer se não for, mas às vezes o produto final poderia ter ficado melhor se você soubesse on- de guarda as coisas. Uso um método copiado do nosso amigo Humberto Martins, que ele chama de “pendurar”, e eu o vi fazer uma vez e fui aprimorando. Seleciono o meu material e separo em clipes, como pequenas fotos na tela; faço esse método de visualizar, porque, muito mais que escrever, para mim tem o lance da memória fotográfica. Se eu pegar um caderno e colocar, por exemplo, cena tal, take 1 é bom, bato o olho e só vejo um monte de letras, que às vezes não sei por que anotei. Agora, se bato o olho na tela e vejo a imagem, eu lembro do take que vi, do que eu gostei.

Gosto muito de trabalhar visualmente e sou muito organizado, às vezes sou chato com os assistentes, chato não, só procuro pedir para que eles mantenham essa organização, porque a pior coisa é tentar achar algo que guardei e não conseguir. Então é preciso criar um método, porque no Avid é tudo muito rápido, você acaba tendo muitas versões.

A boa montagem

A grande sacada da montagem é a coerência. A montagem não é boa porque tem sacadas ou porque tem cortes, ela é boa se for coerente com a história, quanto mais coerente e apropriada, melhor. As pessoas acham que o filme está muito bem montado quando vêem o filme e a montagem aparece, mas, geralmente, ela é muito boa quando não aparece; se você tem um bom filme e vê que a montagem não aparece, quer dizer que ela é excelente. A grande função da montagem é não deixar perceber o corte, é fazer você entrar na história sem perceber que se está cortando de um take para outro. É evidente que a maneira como você organiza as coisas, a maneira como monta a narrativa, tem que ajudar a sentir onde é que você tem que chegar quando está contando a história, mas o espectador não precisa necessariamente perceber a montagem.