Portal Brasileiro de Cinema  Jean-Claude Bernardet

Jean-Claude Bernardet

 
 
 
 
Sequência do filme O bandido da Luz Vermelha (1968)
 
 

A montagem em três clássicos do cinema brasileiro

Como crítico, uma questão que me coloco é a função, a importância, da montagem em três filmes brasileiros fundamentais: Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984) e O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), os dois primeiros montados por Eduardo Escorel e o último por Sylvio Renoldi. Sem a montagem, eles talvez não fossem tão fundamentais. Principalmente no Bandido e no Cabra, em que, vendo o material, percebemos que havia várias possibilidades de montagem, tantas outras opções possíveis. A montagem é, portanto, parte da própria criação dessas obras.

A construção de Terra em transe, que dá essa impressão de caos político, de vendaval, é muito precisa nos jogos de simetria, de personagem, de espaço. Tanto no Bandido quanto em Terra em transe, a construção é uma significação. Os filmes não são confusos, é a precisão e a inteligência da montagem que dão essa impressão caótica e fragmentada. É porque a montagem está muito bem organizada que recebemos como significação o mundo caótico — mas a obra não é caótica.

Os historiadores e os críticos de cinema não levam suficientemente em consideração a participação dos montadores na criação desses filmes. O valor dos filmes recai exclusivamente nos realizadores, nos diretores, e isso é uma falha da crítica. É preciso compreender a parte propriamente criativa desses montadores e não considerá-los apenas os executores de um projeto previamente elaborado — não falo só de reconhecimento. Sem o Escorel e o Sylvio, os filmes não seriam o que são. Evidentemente que eles têm cumplicidade com o diretor, eles entram no projeto do diretor, não é que vão fazer outro filme. Mas o Escorel, que é uma pessoa extremamente racional e que se defrontou com a personalidade um tanto caótica do Glauber Rocha, ou que se defrontou com materiais muito variados como os do Cabra, foi além do conhecimento que o diretor tem do seu próprio projeto — apesar de ele dizer que chegou a essas montagens porque trabalhou com diretores muito competentes e que sabiam o que queriam.

Experiências com a montagem

Nos anos 1960 me dei conta de que, se eu entrasse de alguma forma nas equipes de realização, certamente entenderia melhor os filmes. Então participei de algumas equipes, e fiz a primeira montagem de Gamal, o delírio do sexo, do João Batista de Andrade. Entrei na montagem antes do Glauco Mirko Laurelli e fiz apenas uma ordenação de planos, mas essa primeira estruturação foi uma excelente experiência.

 
Walmor Chagas em São Paulo S. A. (1965)

Depois tive uma experiência com documentário, nos três filmes sobre a história do cinema paulista dirigidos pelo João Batista de Andrade (Paulicéia fantástica, 1970; Eterna esperança, 1971; Vera Cruz, 1973). Ele e eu montamos o filme, mas às vezes eu sentia a necessidade de fazer determinada ordenação de planos, determinados ritmos, de tal forma que pedia para o Batista me deixar trabalhar na moviola, e depois discutíamos o que eu tinha feito. Boa parte do início de Paulicéia fantástica é montagem minha, assim como parte do Eterna esperança — não que eu tenha montado o filme inteiro. Nesses dois filmes havia muito menos material de arquivo do que tive depois no São Paulo, sinfonia e cacofonia, porque eram filmes específicos sobre o período mudo e não sobrou muito material da época; tivemos que fazer muitas filmagens adicionais. O São Paulo, sinfonia e cacofonia (Jean-Claude Bernardet, 1994) também é basicamente um filme de material de arquivo, mas de material que começa nos anos 1950 e pega os anos 1960, 1970 e 1980. Porém, com o sumiço dos filmes, a degradação do patrimônio, acabamos tendo um leque de opções muito reduzido. São Paulo, sinfonia e cacofonia não é uma reportagem sobre São Paulo, é uma sensibilidade em relação à cidade, e para isso precisava atingir um nível simbólico, que acho que ele atingiu.

Os trabalhos sobre São Paulo que me sensibilizavam muitas vezes eram filmes de ficção: o São Paulo S. A. (Luis Sérgio Person, 1965), O Bandido da Luz Vermelha, o trabalho do Wilson Barros, a cidade vista pelo Chico Botelho. Então foi preciso haver um certo encontro de sensibilidades, que dessem conta de uma cidade angustiante mas cenográfica. E uma das fontes disso surgiu no trabalho de pesquisa do filme, graças à contribuição da Regina Meyer, que indicou quando aparece na literatura a relação entre a massa e o indivíduo.

Um problema que a Maria Dora Mourão — montadora do São Paulo — e eu enfrentamos em diversos momentos foi o seguinte: não estávamos montando um filme de antologia, não se tratava de falar da percepção de São Paulo para Luís Sérgio Person ou Rogério Sganzerla, era necessário que a montagem, o conjunto audiovisual, tivesse autonomia e que esse filme se diferenciasse dos vários filmes de onde provinha o material. O filme que está sendo feito deve ter a sua proposta, o seu ritmo, a sua relação interna etc. Se um pedaço excessivamente longo do material original é inserido no novo filme, o novo filme tende a desaparecer e dar lugar ao filme original. Por exemplo, usamos uma cena de O quarto (1968), do Rubem Biáfora, em que o personagem do Sérgio Hingst encontra por acaso na rua uma senhora que ele conhecia: a senhora o convida para tomar um café, ele recusa, ela insiste e ele aceita; no São Paulo cortamos esse desfecho da cena do Biáfora, porque nosso projeto era sobre a solidão, um projeto sobre a dificuldade de relacionamento das pessoas. Articulamos essa cena do Biáfora com uma cena do São Paulo S. A. em que o personagem Carlos encontra uma ex-amante: ele a convida para almoçar e ela recusa. Modificando a cena do Biáfora, criamos duas cenas com a mesma estrutura, isto é, transformamos o material em função do que pretendíamos.

É necessário ter muito claro o que você está fazendo: se é um filme autônomo que deve se diferenciar radicalmente das suas fontes, um filme sobre determinado objeto ou um filme sobre o material de base. Há três possibilidades, e a falta de precisão dessas diversas perspectivas pode confundir a montagem. A diretriz inicial precisa estar bem clara na cabeça dos realizadores para que o filme siga determinada trilha — mesmo que você tenha que descartar um plano maravilhoso.

A montagem no documentário contemporâneo

Nestes dois filmes recentes, Entreatos (2004), do João Moreira Salles, e Peões (2004), do Eduardo Coutinho, há algumas operações de montagem notáveis. No Entreatos, há uma cena em que o Lula está em Florianópolis e precisa ir a Porto Alegre. Logo antes de ele partir, um sujeito o vê no aeroporto e vai falar com ele. Essa pessoa, que é um admirador do Lula, fica completamente entusiasmada e conta que tinha perdido o avião para Porto Alegre. O Lula então diz para darem uma carona a ele, e a equipe dá a carona, achando tratar-se de um amigo do presidente. No filme, a confusão só se desfaz numa conversa posterior a esse fato, quando o Lula faz referência ao “carona”. A montagem aproveitou essa deixa — que não foi provocada pelo cineasta, mas veio fluentemente na cena filmada — e fez um flashback. Foi uma operação extremamente interessante, porque em geral no documentário, o flashback é introduzido ou pelo locutor — em um filme sobre uma personalidade, o locutor diz onde ela nasceu etc. —, ou por entrevistas, em que a pessoa se refere ao próprio passado, às vezes acompanhada de imagens.

Em Peões, também há uma operação que eu acho extraordinária. Eduardo Coutinho reuniu algumas pessoas que tinham participado das greves do ABC e pediu que reconhecessem, em filmes ou fotografias, os seus companheiros de então, para tentar descobrir onde estariam hoje estas pessoas. A partir desses resultados, ele conseguiu encontrar algumas pessoas e fazer as entrevistas. Essa é a ordem lógica do processo de trabalho, quer dizer, ele tomou a decisão de fazer o filme, iniciou a pesquisa, estudou o material documental de base, e a partir disso interrogou algumas pessoas e encontrou pistas para localizar outras. Acontece que o filme não se organiza assim. O que o Coutinho detectou é que muitas pessoas que tinham participado da greve se aposentaram e voltaram para o seu estado de origem. Ele tinha a possibilidade de começar expondo ao público o projeto — como ele faz de certa forma em O fim e o princípio (2005) —, essa podia ser a montagem de Peões. Mas ele abre com uma longa parte no Ceará e só depois disso é que ele informa sobre a pesquisa; há portanto uma inversão temporal. Como a gente sabe desde Viramundo (1968), do Geraldo Sarno, uma grande porcentagem do contingente operário do ABC é originária do Nordeste. Em vez de dizer isso, o Coutinho incorpora esse fato à estrutura da montagem. A própria estrutura da montagem coloca a questão do contingente nordestino na composição da classe operária, sem narrador, sem nada. É uma operação poética, ou seja, a informação não é dada pelo narrador, mas pela própria estruturação do material.

 
Viramundo (1968)

Há uma relação nos dois filmes que me chamou muito a atenção. No Entreatos, há uma seqüência em que o Duda Mendonça se encontra com figurantes num anfiteatro ou num estúdio de televisão, e os treina para que levantem a mão e gritem “Lula!”, quando ele der a deixa — a seqüência é muito bem filmada, eles treinam várias vezes. Já no Peões, no material de arquivo do estádio da Vila Euclides você vê pessoas levantarem a mão e gritarem “Lula!”, ovacionarem o Lula, sem que ninguém lhes dê uma deixa, apenas pelo movimento espontâneo da situação política, da situação do líder com os operários. A relação entre essas duas cenas — o levantar de braços com a deixa do publicitário e o movimento espontâneo dos operários — tem um valor explosivo. Se o espectador quiser, ele pode fazer uma montagem virtual na cabeça.

Peões e Entreatos são filmes extremamente discretos, não são panfletários, mas, se bem vistos, são explosivos.

O montagem e o diretor

Lembro-me de uma situação em que havia uma discordância muito grande entre o montador e o diretor de um curta-metragem. O diretor não tinha gostado da montagem do filme, ou pelo menos de parte dela, e o montador achava que não havia como montar da forma como o diretor queria. Foi feita então uma espécie de banca: o diretor convidou três ou quatro pessoas para assistir à versão montada na moviola, mas, por unanimidade, foi dada a razão ao montador. O fato é que a montagem partia do material efetivamente filmado, que era o material visto pelo montador. O material que o diretor via ainda estava investido das intenções dele, e elas provavelmente não tinham sido concretizadas em forma de enquadramento, de relação com o objeto filmado. O montador tinha razão, porque ele não podia montar intenções, ele só podia montar o material que estava de fato lá. Isto é fundamental: a montagem é uma nova etapa, que vem enriquecida pelo roteiro, pela filmagem etc.; se as intenções do projeto não se realizaram no material filmado, o montador tem que dizer para o diretor modificar o projeto. Os diretores nem sempre tomam consciência disso, embora aconteça com bastante freqüência. Às vezes o material tem uma potencialidade muito maior, só que não era aquela a intenção do diretor, então ele não sabe usá-lo, e o filme fica fraco. Vejo isso nas escolas de cinema: muitos estudantes resistem ao professor, principalmente ao de montagem, porque eles também vêem no material o que eles quiseram fazer e não o que fizeram.