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CARLOS HUGO CHRISTENSEN: DESVENDANDO O ENIGMA
Andrea Ormond

I. MELODRAMA PERVERSO

Uma voz sussurra como o próprio demônio, o animal de todas as trevas. “Contemplarla enteramente. Contemplarla enteramente. Contemplarla enteramente.” Guillermo quer enxergar o corpo nu de Elsa. Aos dezessete anos, estava aflita. Apenas ele, artista plástico riquíssimo, poderia quitar as dívidas do pai da menina. Elsa encontra-o no ateliê: uma casa de pedra, do tipo que 2013 ainda existia no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro, e hoje não mais, consumido pela angústia imobiliária. Enquanto se aproxima, Guillermo é apresentado pela câmera entre estátuas e divindades pagãs, o olhar crispado de ódio. E assim Elsa pede-lhe, quase se ajoelha, porque ama tanto o pai. Clemência, o que custa para você? Mas o ar se perde, a cabeça fica pesada, e a todo minuto acontece um novo absurdo, uma nova escarrada de cinismo do nosso quase-Lúcifer. A diferença entre os dois é gigantesca. Não há nem mesmo um cabo de guerra, e sim o gozo perverso de Guillermo, que estraçalha intelectualmente a palominha que tem nas mãos.

A esse filme, o diretor argentino-brasileiro Carlos Hugo Christensen deu o nome de El ángel desnudo (1946). Em vez de iniciarmos aqui um longo prólogo sobre a biografia e o fato de ter nascido em Santiago del Estero, em 1914, melhor será analisarmos suas obsessões como autor. Neste sentido, El ángel desnudo revela traços marcantes da trajetória de Carlos Hugo. Alguns deles acabariam mais conhecidos pela inclusão de Armiño negro –clássico da década seguinte (1953)– em Cinema de Lágrimas (1995), filme encomendado a Nelson Pereira dos Santos para a celebração dos cem anos do cinematógrafo Lumière.

Deixemos Armiño para outro parágrafo. Vejamos agora, o encontro entre Guillermo e Elsa. Vejamos o imaginário daquele homem que já se foi e, no entanto, permanece como um dos nomes do cinema do século XX. Na cena, percebe-se a crueldade (Cristiano Nilsen matará Juliana, em A Intrusa); a assimetria entre os personagens (o mais velho versus o mais jovem, como em Anjos e Demônios); as representações icônicas (estátuas, a exemplo de Safo, historia de una pasión); Copacabana (o lar, doce lar, do que lhe dizia a brasilidade) e o desespero (porque, ai de ti, José Maria, a tua Duília não existe mais). Aos leitores, apresento o melodrama perverso de Carlos Hugo Christensen. Um estilo que foi elaborado antes e depois de El ángel desnudo, mas que trata de temas que são cruciais para se entender a obra do diretor, incluindo o derradeiro A Casa de Açúcar (1996).

Até a migração completa, de corpo e alma, para o Brasil, Christensen trafegou entre a Argentina natal, Peru, Venezuela, Chile. Nesses momentos iniciais, rodou vários títulos, dos quais podem ser pinçados Safo (1943), La balandra Isabel llegó esta tarde (1950), Armiño negro e María Magdalena (1954). A certa altura, misturou-se com a literatura e com os vulcões brasileiros, conhecidos, aliás, pelo patrício Carybé (Hector Julio Páride Bernabó), muralista que fixou pouso em Salvador, mesma terra de María Magdalena. El ángel desnudo foi tão somente o primeiro registro com a câmera no Brasil; María Magdalena, o segundo.

Ponto curioso, o cinema de Christensen parte muitas vezes de um formato quadrado e purista, para atingir dimensões maiores. Em Safo, os números de dança cansativos querem reforçar a bondade de Raúl (Roberto Escalada), o moço da província, que acaba sendo engolido pela metrópole mundana. A câmera e os efeitos sonoros previsíveis são quebrados, porém, pela chegada da vamp (Selva, Mecha Ortiz) que fuma cigarros. A mulher toma Raúl pelos braços, imitando as perdidas de João do Rio, que no libreto de Christensen têm raiz em Alphonse Daudet. Adaptações, por sinal, são frequentes na obra de Carlos Hugo e respondem por imensa parte de seus filmes. A dinâmica entre livro e tela era uma espécie de continuum para o diretor, também roteirista.

Mecha Ortiz e Roberto Escalada retornariam em El canto del cisne (1945), na mesma linha incestuosa –homem jovem e mulher vivida– que explodiu em Safo. Verdadeiro blockbuster no meio da II Grande Guerra, Safo trouxe diálogos coloquiais, os corsos de Buenos Aires, o bucolismo de Mendoza e estátuas da poeta grega homônima –sem a faceta lésbica, que tanto lhe fez a fama. A princípio, era apenas um objeto de gesso –já que o nu em pelo seria obviamente impossível–, mas a atmosfera deixava claro que havia ali a representação do próprio desejo. Como uma foto do corpo de Selva, a meretriz que serviu de modelo para um escultor.

Ainda na onda do incesto, se El ángel desnudo trata de filha e pai –amor que beira o absoluto–, a figura da mãe é apresentada em Armiño negro e Safo. A mãe de Raúl é a quintessência da santidade: entrevada, humilde, previdente. Já em Armiño negro, María (Laura Hidalgo) encarna uma prostituta, idealizada pelo filho adolescente. “Deus castiga os filhos pelos pecados dos pais”, diz o padre. E, tal qual uma Gene Tierney, Hildalgo traz uma beleza destruidora, inalcançável, essa pantera que interdita a felicidade. A imagem icônica dessa vez estará em um quadro, colocado em um salão de exposições, ao contrário das estatuetas de Safo e Él ángel. Note-se que a casa de Armiño assistirá a momentos terríveis, ainda maiores do que os vistos pela Cinédia, no clássico nacional O Ébrio (1946, direção de Gilda de Abreu). No centro, um conflito edípico extremamente sutil, que não passa despercebido aos espectadores atentos: a homossexualidade do rapaz, fusionado com a mãe provedora e abandonado pelo pai desconhecido.

Filmado em Machu Picchu, Armiño negro abandonou o ambiente europeizado e portenho. Partiu para o norte, no mesmo caminho de La balandra Isabel llegó esta tarde. La balandra utiliza a Ilha de Margarita, na Venezuela, e faz o espetáculo do etnocentrismo invertido. Mostra tanto o turista norte-americano (estereótipo do “homem branco”, como também o era o descendente de dinamarqueses, C. H. Christensen), quanto os rituais de origem africana (a fotografia de José María Beltrán Ausejo ganharia o prêmio no festival de Cannes, em 1951). Ao fim, demonstrava uma vez mais a história do amor proibido entre o macho e a mulher impura. A mesma origem de María Magdalena –novamente Laura Hidalgo–, que, a começar pelo nome, vive os piores de seus dias, agora em uma inóspita Bahia, Salvador. Por volta daquele 1954, os ventos sopravam em outra direção. Ameaçado na Argentina, Carlos abraça de vez o antiperonismo, comungado por Jorge Luis Borges, fraterno amigo. E, da ponta leste do Brasil, Christensen dava um alô à sua futura existência, ao novo cotidiano que o acompanharia até a morte.

II. BRASILEIRO DE COPACABANA

Coube a Mãos Sangrentas (1954) carimbar o passaporte atemporal, o vínculo com o território brasileiro. Cria dos estúdios paulistanos da Companhia Cinematográfica Maristela –liderados por Mário Audrá Jr.–, Mãos Sangrentas foi o começo da parceria com a alma local. Narra a história de uma rebelião no presídio de Ubatuba, filmada com recursos do México –o midas Gregorio Wallerstein– e Argentina. Christensen nadou com desenvoltura, acostumado às coproduções na América Latina, anos antes do Mercosul. Repetiu o feito em Leonora dos Sete Mares (1955), também pela Maristela e também com Wallerstein e o galã Arturo de Córdova, em obscura jornada pelo bas-fond carioca. Entre meias-luzes, cais do porto e a menção exótica –aos padrões nacionais– ao consumo de maconha, a erva que arrasa os destinos de uma melindrosa.

Ainda não se percebe em Mãos Sangrentas e em Leonora o sentimento de ascese que marcaria momentos-chave do diretor. Entre eles, Viagem aos Seios de Duília (1964) e O Menino e o Vento (1967): aqui, o encontro com Aníbal Machado –e as miudezas da vida brasileira– renderia momentos de tensa genialidade. Como a beleza opera nos detalhes, o santiagueño teve de observar e introjetar o espírito que o cercava. E introjetou-o de tal forma que, logo no início de 1958, estrearia a primeira parte de uma trilogia sobre a cidade que escolheu: o Rio de Janeiro. Na idiossincrasia louca de Copacabana, montou um feudo. Era o apartamento da rua Pompeu Loureiro. Eram o nobre e seu castelo. Sem vassalagem, Carlos Hugo acreditou em um sentido de potência para a então capital federal do país (em 1958, Meus Amores no Rio), que em breve deixará de sê-la (em 1960, após a inauguração de Brasília, quando lança Esse Rio que Eu Amo). No ápice, teremos Crônica da Cidade Amada (1965), em que nem mesmo o bairrismo guanabarino conseguiu afastá-lo de ser o diretor da fanfarra sobre os 400 anos de fundação da metrópole.

Como roteirista, Christensen utilizou um método recorrente. Escolhia escritores para ajudá-lo nos diálogos –voltamos àquele continuum entre a matéria fílmica e a matéria literária. Em O Rei Pelé (1963), Nelson Rodrigues deu a tônica do documentário, que lucraria com o bicampeonato no Chile. Em Crônica da Cidade Amada, Millôr Fernandes adaptou um pacote de crônicas, biscoitos finos de Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Orígenes Lessa, Dinah Silveira de Queiroz, Paulo Rodrigues e Fernando Sabino.

Desigual, operístico –vamos e venhamos, 400 anos é uma data para fortes–, Crônica da Cidade Amada reuniu elenco estelar e compositores idem. Oscarito e Grande Otelo aparecem em episódios separados –o que não deixa de ser uma bela tacada. Há também espaço para Tito Madi, Billy Blanco e um Taiguara púbere, que canta aos “cidadãos de bem” e aos marginais, às asas da Panair, ao favelado e ao garoto rico que o tortura mas promete pelada no “domingo, a mesma hora”, recebendo em troca um sorriso de franca felicidade. Bebuns cruzam a tela, como amigos desgarrados de José Carlos Oliveira e de todas as etílicas cousas. Bondes e papagaios, close em cemitério no dia de jogo –um pouco de sarcasmo cai bem–, além da fetichista presença de militares como coadjuvantes, o que nos lembra que o comício na Central acabara fazia alguns meses.

O filme traz um dado especialmente importante, se pensarmos na obra de Christensen como um todo: no episódio Aparição, a boneca adolescente desfila pela orla de Copacabana, sentido Arpoador, e uma multidão de homens bate palmas, como hippies ao pôr do sol, mas dessa vez para o corpo escultural da guria. Tanta docilidade seria travestida de violência em Anjos e Demônios (o relato da juventude dourada, 1970) e A Morte Transparente (o enterro dos ossos da GB poética, 1978).

O Brasil das gerações modernistas e da rosa dos tempos é o palco de Viagem aos Seios de Duília e O Menino e o Vento. Dois longas-metragens que unem Christensen e Aníbal Machado –o conto A Morte da Porta-estandarte já aparecera em Esse Rio que Eu Amo–, alcançando resultados altíssimos. O Baudelaire de Enigma para Demônios (1974) fala na audácia dos maus espíritos. Para Duília, poderíamos ter o mesmo poeta na versão flâneur, caminhando pelas ruas da antiga Belacap, das repartições públicas, em que as paredes cinzas escondem o “deserto de almas” a que se referiu Caio Fernando Abreu em Aqueles Dois– conto também adaptado e filmado por outro diretor, Sérgio Amon, em 1985.

Fato é que, em Duília, o solteirão José Maria (Rodolfo Mayer) vê-se confrontado pelo absurdo de não ter vivido. Preferiu os rapapés mecânicos do trabalho, o vazio das falsas cordialidades. Aposenta-se, calça as chinelas e tenta reconstruir o passado. Segue em busca da namorada da juventude, mas, José, namorada não há mais: há apenas o corpo velho, a mulher hoje avó, nem uma nesga daquele amor. José cai no desespero, no surto, na despersonalização, captada com maestria por Christensen. Após vencer uma batalha na censura, Viagem aos Seios de Duília manteve o título da história de Machado, que soava pecaminoso demais. O Menino e o Vento –no original, O Iniciado do Vento – dá outro passo tortuoso, abordando a pretensa homossexualidade entre José Roberto (Ênio Gonçalves) e Zeca da Curva (Luiz Fernando Ianelli). Percebe-se o mesmo ambiente de Machado, ligado às leis, ao Direito, às rotinas burocráticas –ele próprio, promotor público–, mas tresloucado em uma força bruta, malsã, que paira acima de tudo e joga a narrativa em lugares minúsculos, interioranos, carregados de uma metafísica própria. Duília teve diálogos de Orígenes Lessa; O Menino, de Millôr Fernandes. Ambos, roteiro de Carlos Hugo, que chegou a vender o carro para finalizar O Menino e, após esse, cogitou adaptar Satyricon –desbunde que terminaria nas mãos de Federico Fellini (1969). Inaugurava-se então a década dos 1970 e chegava o momento de se encarar uma outra encruzilhada.

III. ENTRE OS ANJOS, OS NILSEN E O FIM

A presença de Luiz Fernando Ianelli em O Menino e o Vento foi prenúncio de uma parceria sólida, que se estendeu a Anjos e Demônios e Enigma para Demônios. Mais do que o ator em si, Christensen aproximou-se de uma nova geração, que instalou os baby boomers nas comunas espirituais do planeta. “Toda ordem é injusta”, “é proibido, proibir”, mas como dizer algo do gênero ao homem que havia realizado o cume da transgressão desde os anos 40?

A comédia Como Matar um Playboy (1968) já tateava essa aura do poder ultrajovem, elemento que seria destrinchado em Anjos e Demônios. Nesse último, Christensen polemizou a maioridade penal –tema ainda hoje controverso–, com uma ciranda de crimes, sexo, drogas, classe média e cenas antológicas. Destaque para o convescote de nus, o rufianismo gay e a morte na lagoa –que tanto remete ao dramalhão Amar Foi Minha Ruína (1945), de John M. Stahl.

Uma vez mais, convém ressaltar: o que existe de clássico e novelesco em Carlos Hugo deve ser encarado com grão de sal. Em 1970, no meio do processo cinemanovista de tomada de poder, o diretor precisava pagar as contas e afiar o discurso, tomando goles aleatórios de descanso. Anjos e Demônios é o oposto do marxismo soporífero e engajado. É produto de uma intensa (e corajosa) racionalização. Por outro lado, Uma Pantera em Minha Cama (1971) é recreio, é entreato. Enquanto isso, Caingangue, A Pontaria do Diabo (1973) estabelece um curioso pacto com o galã David Cardoso, em veículo originariamente pensado para o cantor Erasmo Carlos. Havia um aspecto de Shane no filme, repleto da vastidão bugre do Mato Grosso do Sul, mas, ao mesmo tempo, um pragmatismo tecnológico. Afinal, a produção era da R. F. Farias, acostumada a sucessos da produção brasileira – cite-se, por todos, Os Paqueras (1969), um dos embriões da pornochanchada.

Dali por diante, a obra de Christensen esbarraria em argumentos insondáveis e profanos. Nos primórdios, La dama de la muerte (Chile, 1946) e La muerte camina en la lluvia (Argentina, 1948) eram atmosféricos, criando situações-limite de suspense. Agora, em uma retomada, já no Brasil, o estilo ganhava ares de missa negra. É desse modo que surgem Enigma para Demônios, A Mulher do Desejo (A Casa das Sombras, 1975) e –segundo nos diz o argumento– A Casa de Açúcar. Até mesmo A Intrusa possui um certo elemento diabólico, escondido naquela choupana perdida nos pampas, como se os irmãos Nilsen habitassem um antro, suspenso no ar. Christensen fez das casas um componente fundamental das histórias –algo que, por sua vez, é fruto de longa tradição cinematográfica, no gênero das haunted houses, aparecendo em filmes recentes, como no Quando Eu Era Vivo (2014), de Marco Dutra.

Enigma para Demônios e A Mulher do Desejo sofreram de comparações bastante problemáticas. Perdem na disputa com dois filmes contemporâneos, rodados por Walter Hugo Khouri: O Anjo da Noite (1975) e As Filhas do Fogo (1979). Ambos trabalhavam os dogmas de Lovecraft, E. T. A. Hoffmann e os mil éons da eternidade. Onde começa a morte, onde está a ilusão? Ou, como diria a epígrafe de Samuel Taylor Coleridge, em A Mulher do Desejo, “Se um homem atravessasse o paraíso num sonho e lhe dessem uma flor como prova de que estivera ali, e se ao acordar encontrasse essa flor na mão... que aconteceria?”

Possessões demoníacas, vultos, sombras, a presença dos demônios –criaturas que, na tradição bíblica, nada mais são do que anjos decaídos. Tudo conspira para a malignidade. Tudo se passa em Ouro Preto, lugar que Christensen buscou para uma nova trilogia, distante do clima ensolarado da tríade carioca. A princípio, seria completada por O Anjo de Setembro, filme que infelizmente não existiu. Enigma e A Mulher utilizam as vielas da cidade histórica, de um jeito que as excursões escolares nunca poderiam imaginar. Ao invés de visitar Aleijadinho e o establishment barroco, a Ouro Preto de Carlos Hugo é envolta em uma cortina de fumaça. Túmulos, famílias distorcidas e diálogos de Orígenes Lessa que reúnem pérolas como “Não creias em Cristo, creia no Mestre. E em nome dele eu te batizo”.

Existe alguma alegoria entre o transe psicodélico de Elza (Monique Lafond) e o banquete da pobre moça, em um altar, no meio de um matagal selvagem. Elza –mesmo nome da frágil menina de El ángel desnudo– está entupida de remédios, talvez alucinando, sem distinguir o que é real e o que é verdadeiro. Mais um exemplo de assimetria cruel, sendo quase deflorada pela massa, como a Rosemary de Polanski. Mas acontece que Ouro Preto não é o Edifício Dakota: é uma força cabocla. E ela dá as chaves do roteiro, adotando o conto Flor, Telefone, Moça, de Carlos Drummond de Andrade, como mero ponto de partida. O conto não representa todas as dimensões do filme.

Enigma possui um anedotário típico, cheio de causos. Christensen ousou dublar a diva Lafond, em demonstração clara do tipo de controle pelo qual ficou conhecido. Há também lendas, que não se sabe se verdadeiras ou estratégias de marketing. Em uma delas, o vigia do hotel em que a equipe se hospedou morreu subitamente. Em outra, o diretor, as atrizes Lícia Magno e Palmira Barbosa sofreram acidente de carro, despencando de uma ribanceira. Pelo sim, pelo não, celebrou-se uma missa (branca) na Igreja de São Francisco de Baixo. O universo lúgubre retornaria em A Mulher do Desejo. Se Elza incorporava a mãe falecida, Marcelo (José Mayer) incorporava o tio dândi –novamente sob a pena atenta de Orígenes Lessa. A repetição perde os acertos do anterior que, em termos de anos 70, fica a quilômetros de A Intrusa, o grande marco.

Acontece que antes de aterrissar em Jorge Luis Borges foi necessário passar pela cafajestagem sórdida de A Morte Transparente. Nela, a força do sexo lembra, ao longe, outro criollo: Tulio Carella –vejam que, aqui, também já estamos distantes do estilo de María Magdalena, em meados dos 1950, que nos remetia a Carybé. Mesmo sem as orgias explícitas de Carella, A Morte Transparente está prenhe de gozos e michês, vividos no beautiful people carioca. A urbe virou lixo. A canastrice do ator principal (Wagner Montes) coopera para esse clima de depredação existencial. Por sua vez, o relacionamento entre Beto e o fancho que lhe dá dinheiro retoma Anjos e Demônios: a homossexualidade, tabu para o cinema brasileiro, é encarada de frente, sem firulas. Em profundidade infinitamente maior, A Intrusa também comenta a homossexualidade dos personagens, acrescentando outro tabu –o incesto. Cristiano (José de Abreu) e Eduardo Nilsen (Arlindo Barreto) são irmãos.

Reza a lenda que Borges, em grau avançado de cegueira, escutou a descrição e a atmosfera do longa –porque a sinestesia é uma constante no cinema, a atmosfera pode ser sentida e tocada. “He could hear the grass grow” , diriam os entendidos. Tempos antes, ao receber a proposta do diretor, Borges manifestara alguma resistência. O filme clamou por si e o autor de O Informe de Brodie liberou a adaptação –muito embora, posteriormente, a tenha acusado de ser uma infâmia, pelo forte teor homossexual. Brodie possui onze histórias; sendo a primeira delas A Intrusa. Extremamente curto, o conto passou por um processo estrondoso de composição. Encorpou, sugou um monte de referências. A mise-en-scène obcecada chama atenção, nas telas, pelo aspecto folclorista. Gestos, dialetos e o cotidiano pampeiro. Tanto na participação do expert Ubirajara Raffo Constant quanto do onipresente Orígenes Lessa, os sons do filme parecem uma novilíngua, cheia de sabor.

Transformou-se a própria da narrativa do conto –em que uma pessoa qualquer, por ouvir dizer, relatava as peripécias dos irmãos. A história original dava a entender –com cinismo e pavor– a monstruosidade do que acontecia. No filme não há essa imprecisão propositada de Borges. O trágico permaneceu, mas Christensen conseguiu uma nova roupagem. Por incrível que pareça, temos empatia –não simpatia– pelos Nilsen, à medida que os acompanhamos milimetricamente. O Eduardo jovem, eufórico; o Cristiano líder, defensor do sobrenome de ambos. Há também silêncio, muito silêncio, como o do vento que corta as terras imensas, a se perderem de vista. Letreiros surgem após dezessete minutos. Rinhas de galo, a trilha de Astor Piazzolla.

Diz-se que a Polícia Federal, nos meandros da ditadura, apreendeu cigarros de maconha usados por membros da equipe. Já no caldeirão da trama, os Nilsen estoicos, sem alucinógenos. Eles contam a certa altura com Juliana (Maria Zilda), a garota comprada por Cristiano para ser coberta –ao modo dos bichos– pelos dois irmãos. E percebam que o coito é quase estupro. Afinal, Juliana, mesmo estando muda –não diz uma palavra sequer até os cinquenta e sete minutos–, é a cara da interdição. A sua mera presença traz alguma nesga de culpa para a dinâmica que existia antes na casa. Daí a ideia de destratá-la, vendê-la a um prostíbulo, recomprá-la e depois jogá-la, morta, aos corvos. Porque “esse mundo aqui é só nosso”.

A Intrusa não aborda uma homossexualidade contracultural, um processo de libertação qualquer. Cristiano e Eduardo estão unidos por algo milenar, atávico, bestial. Vivem isolados, em 1897, em Uruguaiana, nas bordas entre Argentina e Brasil. De certo modo, não deixa de ser metafórico para a própria condição de Christensen. Um homem fronteiriço, que colocava os pés tanto dentro quanto fora do Brasil, olhando-o e vivendo-o submergido em fantasmas que chegavam de todos os lados. Entender sua obra requer uma decisão firme, que tire o véu da indiferença, os clichês xenófobos, as palavras de ordem sectárias, que tanto o relegaram a um papel de coadjuvante em nossa fortuna crítica.

Exatamente por essa ordem de ideias, torna-se fácil compreender por que mesmo diante de um currículo com mais de cinquenta filmes, ao longo de seis décadas, o diretor penou para concluir, após A Intrusa, um projeto tão acalentado como A Casa de Açúcar. Cerca de vinte anos e não conseguiu, em vida, dar o beijo definitivo do pai. Baseado em conto homônimo de Silvina Ocampo, o texto traz a descrição de uma neurose obsessiva, misturada ao clima de ambientes soturnos e fantasmagóricos. Sabemos o argumento e por aí avançamos, em penosa investigação interna. Tudo são conjecturas. No mundo ilógico das burocracias, Christensen viveu, circulou, deixou o seu bocado de flores –“e se ao acordar encontrasse essa flor na mão... que aconteceria?”– e a vontade insana de estar em meio ao que era diferente. Transgrediu com a loucura dos lordes, crismados por uma religião espúria. Lançou um livro de poemas em novembro de 1999. No mês seguinte, a poucos dias de 2000, no apartamento da rua Pompeu Loureiro, cambaleou, estendeu os braços ao infinito e se foi. Chamava-se Carlos Hugo Christensen. Preferiu viver e morrer com o século.



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