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VIAGEM AOS SEIOS DE DUÍLIA
Ficção, 1964, P&B, 35 mm, 105 min

Carlos Hugo Christensen poderia ter adaptado o conto de Aníbal Machado apenas como o mergulho de um personagem na essencialidade de seu eu, transformando o melancólico relato do autor em meras cenas ilustrativas. O caminho, porém, é outro. Christensen –dirigindo aqui aquela que talvez seja a grande obra-prima de sua carreira, ou ao menos um dos trabalhos mais fundamentais de uma trajetória de 50 filmes– transforma as palavras e a narrativa de Machado noutro objeto, noutra forma de arte e expressão, similar à fonte nos desdobramentos narrativos, absolutamente única nas construções formais. Temos o diretor num ápice de maturidade artística que torna este longa-metragem especial não apenas para o cinema brasileiro, mas para toda a produção latino-americana.

Viagem aos Seios de Duília é a transfiguração em filme da ideia de uma ilusão, de uma utopia, de um tempo perdido que, na verdade, nunca se perdeu, pois nunca existiu. O esvaziamento de José Maria (interpretado por Rodolfo Mayer num papel que resume uma carreira) não se inicia quando ele se aposenta; este é apenas o momento catalisador do filme, aquele que é permitido testemunhar. O espectador chegou depois, já nos estertores do personagem: o esvaziamento sempre esteve lá, mesmo antes do cotidiano repetitivo e burocrático na repartição pública. O que o filme nos dá a ver é um homem sem rumo e sem lugar, tentando ocupar novos espaços e se conscientizando de que o problema nunca foi a dedicação apenas ao trabalho, mas não ter se dedicado a preencher a lacuna original catalisadora do vazio que oimpregna. “Recuperando o tempo, seu Zé Maria?”, pergunta uma antiga colega de trabalho. “Não. Estou preenchendo o tempo”, responde ele.

A ideia de preenchimento surge explícita nos dois primeiros terços do filme, com José Maria circulando para lá e para cá, andando pelas ruas do Rio de Janeiro, frequentando boates (que ele ainda chama de cabarés, para deleite do amigo engraçadinho), tomando café na esquina, encontrando e cumprimentando colegas, descansando em casa e papeando com a empregada. Um plano resume tudo: a câmera do lado de fora de uma sala enquadra José Maria próximo à janela, no meio de um excesso descomunal de elementos, sendo seu corpo (e o rosto sombreado pelo claro-escuro da noite) apenas mais um dentre tantos outros estímulos visuais. Ele não está apenas preenchendo o tempo. Zé Maria também preenche o espaço.

A lacuna do personagem tem contornos freudianos. Trata-se da memória presente e ausente: a lembrança, fixada em sua mente, do seio direito de Duília, antiga paixão adolescente que ele foi obrigado a deixar na cidade natal ao se mudar para o Rio com os pais, há 40 anos; e a inexistência da imagem do seio esquerdo, nunca visto, devido a um acaso circunstancial que impediu a completude do ato da garota de se revelar ao rapaz. Eis a falta, a falha, a fissura do protagonista: a interrupção da nudez de Duília interrompe, também, a vida posterior de Zé Maria, antes mesmo de ela começar.

Retornar às terras de origem em busca da lembrança ausente é a tentativa de corporificar a ilusão que Viagem aos Seios de Duília procura tornar concreta por meio de uma série de fusões que liquefazem a imagem rumo à abstração. Entre andanças na cidade e a jornada ao interior de Minas Gerais, o que se vê é a sobriedade objetiva do relato (direto e narrativo) se tornar cada vez mais uma sequência de imagens desconfiadas, fugidias, indefinidas –tal qual o seio nunca visto de Duília. As fusões se tornam mais frequentes a cada avanço de José Maria, alterando o corpo urbano e paralisado (ainda que sempre em movimento) num corpo rural e em contínuo adiante, entre a realidade e a idealização (o imaginário construído por José Maria ao longo dos anos). Voltar à cidade natal é ir em frente, é combater o imobilismo original que começou na juventude.

A tragédia de José Maria é esta: quanto mais ele mergulha no que acredita ser suas origens, mais ele se afasta de si mesmo. Aquilo que o leva a avançar (encontrar Duília e preencher a lacuna do passado) é a memória, só que a memória é incapaz de se tornar material. O ser que se lembra de algo não é mais o mesmo ser que viveu esse “algo” no momento específico ao qual a memória o remete. Existe uma distância temporal e irremediável nesse processo. A paixão platônica pela colega de repartição, Délia –cuja similaridade com Duília está tanto na grafia e pronúncia do nome quanto na aparência do que ele se recorda ser a jovem de sua cidade– é o primeiro sinal de um processo de derretimento.

Zé Maria só se dá conta, enfim, do fracasso de sua empreitada, ao olhar para a fotografia da neta de Duília achando estar vendo o rosto passado da mulher. No filme, a jovem Duília surgira apenas em flashback, como a idealização total de uma imagem juvenil, de pele alva, rosto inocente e lacinho no cabelo. Esse é o objeto da busca de Zé Maria, lindamente apresentado em cena por Carlos Hugo Christensen para convencer a cada espectador da razão de Zé Maria voltar à comunidade. Só que essa imagem é isso: um objeto, uma representação (tal qual todo o cinema), estando sempre distante do significante original. “O que ele esperava recuperar?”, parece questionar a hoje madura, experiente e desiludida Duília.

Viagem aos Seios de Duília não é um filme sobre o fim de uma ilusão, mas sobre a presença e ascensão da desilusão causada pelo choque da falsidade de uma imagem mental que só existe em que a vê ou a recorda. Um filme sobre o cinema, afinal.

Marcelo Miranda



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