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Caingangue, A Pontaria do Diabo
Ficção, 1974, 35 mm, Cor, 101 min

Caingangue, A Pontaria do Diabo é um perfeito exemplo da versatilidade de Carlos Hugo Christensen enquanto diretor e roteirista. Com a habilidade que lhe era costumeira, o cineasta compõe um faroeste brasileiro, situado na região do Pantanal, na fronteira do Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul) com o Paraguai. No longa, um estranho chamado Caingangue (David Cardoso), de passagem pela fictícia Santa Helena, combate os jagunços do latifundiário Dr. Ribeiro (Sérgio Britto), que estão expulsando os posseiros.

Christensen entende a mítica do gênero, apropriando-se da temática e da iconografia, e trabalhando os códigos em seu benefício. Há ali uma dualidade do bem e do mal, a favor dos oprimidos. Caingangue, cujo nome herdou das raízes indígenas, é um vingador que não aceita a pecha de herói e age conforme o que lhe é certo. O faroeste norte-americano parece fazer muito mais a cabeça de Christensen do que o italiano, que, à época, ganhava imitações no Brasil nos exemplares feitos em sua maioria na Boca do Lixo –e que o cineasta considerava cheio de excessos. Não que o western-spaghetti não esteja no filme também. Caingangue lembra muito mais o anti-herói dos filmes italianos, mais notadamente o homem sem nome dos filmes de Sergio Leone, um sujeito impenetrável, quieto, que pouco expressa em seu rosto, que não segue ordens ou se preocupa em agradar. David Cardoso, àquela altura já estabelecido como galã e protagonista, tem aqui uma de suas melhores atuações. Mas a principal influência do filme talvez seja Os Brutos Também Amam (Shane, 1953), de George Stevens. O plot é praticamente o mesmo, com a diferença de que Shane chega ao local querendo mudar de vida e se estabelecer num pedaço de terra. Caingangue tem a índole dos italianos. Reforça constantemente que está apenas de passagem; é um errante, um justiceiro anônimo que toca a vida como quer, sem se moldar por padrões institucionalizados.

O faroeste sai do oeste norte-americano do século XIX para o oeste brasileiro contemporâneo, em que o poncho e o chapéu são os típicos do Pantanal. A região rural brasileira ainda é digna dos faroestes, em que cidades sem lei são dominadas por crápulas gananciosos e desordeiros. Remontando matrizes históricas dos tempos do Império, em que os governantes davam e vendiam pedaços de terra, num processo cíclico e repetido a cada evento político (proclamação da República, Revolução de 1930, etc.), Caingangue mostra a real terra de ninguém, com três ou quatro donos cada, reivindicando a posse que custou a conseguir. Porém, o problema nem parece ser apenas esse. A terra de ninguém tem dono. Um grande latifundiário, “coronel” cheio de dinheiro, que compra tudo e todos. Não há lei contra os poderosos. O visual e a contextualização dão um caráter brasileiro muito bem cuidado ao gênero.

Além de atuar, David Cardoso é diretor de produção, responsável por levar o filme da Produções Cinematográficas R.F. Farias para Maracaju, sua cidade natal, fomentando o cinema na região e facilitando as filmagens. No ano seguinte, em 1974, Cardoso fundaria a DaCar, sua companhia produtora, mantendo relações ainda mais estreitas com a região.

A mudança de cenário pouco importa a Carlos Hugo Christensen, acostumado a grandes centros urbanos. Continua, como poucos no Brasil, compondo a mise-en-scène. Para o cineasta, a espacialidade parece ser tudo. Porém, esquadrinhar o espaço da cena não significa apenas dar respiro ao ambiente e filmá-lo em planos abertos. É a noção de que o contexto é tudo ao se filmar. A câmera de Christensen –que em Caingangue atinge um de seus pontos mais altos– tem o papel de desbravar o espaço. O uso do zoom, do travelling e de outros movimentos revelam detalhes, acontecimentos e sensações. O filme abre com um plano geral de um posseiro e seu filho cavalgando por uma mata. Pouco depois, num travelling, a câmera assume o ponto de vista dos dois. Só vemos mato por todas as bordas do quadro. No centro, uma luz e a indicação que há uma clareira ao fundo. A visão dos posseiros é extremamente angustiante. A mata é opressora e o destino é incerto e perigoso. Pouco depois, descobrirão que é isso mesmo, que não lhes resta esperança.

Na dialética do desbravamento, a câmera passeia –para cima, para baixo, para o lado, para frente e para trás– com o intuito de construir o espaço tomado por pessoas e objetos que definem a ação. Por conta disso, Christensen nunca hesita em deixar um plano parcialmente coberto, emoldurando personagens, acontecimentos, atos. A composição em certos momentos pode parecer suja, pouco rigorosa, mas reflete a percepção de que, aos poucos, constrói-se o quadro, em que obstáculos são invitáveis. Faz parte também da elegância do cineasta, que não se pautava pelo choque fácil ou pela vulgaridade, ainda que a brutalidade seja evidente. Exemplo disso é um estupro perpetrado por um dos jagunços. Ele pula do cavalo para dominar a moça. O cavalo permanece. É por meio dele que vemos o abuso dela. Vez por outa o cavalo se move e tampa a cena. A constatação é óbvia: o cavalo está lá e está irrequieto com o que presencia, assim como nós. Ainda assim, Christensen não tem pudores em mostrar um castrador em ação. Ele também está lá, fazendo ojerizas. Não lhe cabe esconder. A composição é o contexto.

Gabriel Carneiro



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