Portal Brasileiro de Cinema / Carlos Hugo Christensen APRESENTAÇÃO   DEPOIMENTOS    FILMES    ENSAIOS    FICHA TÉCNICA    FILMOGRAFIA    PROGRAMAÇÃO    CONTATO

VIDA E LEGADO DE CARLOS HUGO CHRISTENSEN

O início do cinema falado na Argentina esteve estreitamente relacionado com a construção dos grandes estúdios nos quais, quase sem exceção, foram rodados aqueles filmes que se tornaram fiéis representantes da chamada “época de ouro do cinema nacional”. Os Estúdios Lumiton foram os primeiros a ser construídos no país e eram dotados da mais moderna tecnologia da época; o fato aconteceu em 1931, graças a um grupo de visionários integrado inicialmente por César José Guerrico, Enrique T. Susini e Luis Romero Carranza. Para seu primeiro filme, escolheram um sucesso teatral do momento: Los tres berretines e o ator que se consagrou na peça, Luis Sandrini. O filme custou dezoito mil pesos e arrecadou mais de um milhão. A empresa não podia ter tido melhor começo. A outra produtora institucional, Argentina Sono Film, precedeu os Estúdios Lumiton em vinte e dois dias ao estrear Tango!, que entrou na história como o primeiro filme argentino dado a conhecer comercialmente em salas.

Os Estúdios Lumiton continuaram produzindo quase uma centena de filmes nas décadas de 1930 e 1940 até que, no início de 1950, quebraram. Começava assim a agonizar a grande fase do cinema realizado em estúdio que forjou a sólida base da sétima arte argentina.

Essa produtora teve três realizadores fundamentais que conformaram seu perfil e consolidaram sua relevância nesses primeiros vinte anos de cinema falado. Um deles foi Manuel Romero, criador multifacetado que posicionou o cinema argentino em nível industrial e artístico e, principalmente, como já tinha feito com o teatro, deu um genuíno sabor local aos filmes. Outro, Francisco Mugica, dono de grande sensibilidade e refinado bom gosto realizou, entre vários títulos, o inesquecível Así es la vida. O terceiro foi Carlos Hugo Christensen, que a partir de sua estreia e devido à juventude -pouco frequente nas lides cinematográficas- começou a ser chamado de “O benjamim dos realizadores argentinos”.

Descendente de dinamarqueses por via paterna e de argentinos mediterrâneos há muito enraizados no país por via materna, Christensen nasceu em Santiago del Estero, capital da província homônima, na República Argentina, em 15 de dezembro de 1914. Posteriormente, instalou-se com a família em Buenos Aires e, com pouco mais de vinte anos, alcançou grande sucesso com um ciclo de radioteatro no qual dramatizava poemas famosos, seguido por outro que abordava a dramatização de letras de tangos.

Logo após esses ciclos, veio o programa de rádio de maior impacto de Christensen: Los crímenes científicos del Dr. Van Dine, sobre o famoso detetive Philo Vance, que foi popularizado no cinema por William Powell em uma série de filmes dos anos 30. Como consequência desse programa, o Dr. Guerrico, encarregado da equipe técnica da Radio Splendid e diretor geral dos Estúdios Lumiton, interessou-se com entusiasmo por seu trabalho. Pouco tempo antes, Christensen tinha finalizado um filme amador em 16 mm, El buque embotellado. Mostrou-o para Guerrico e, dois dias depois, entrou nos Estúdios Lumiton como ajudante na filmagem de Así es la vida. A partir daquele momento procurou descobrir todos os segredos do cinema e poucos meses depois teve a oportunidade sonhada: dirigir. Em 1940 estreou El inglés de los güesos e a excelente recepção do filme levou a produtora a contratá-lo em regime de exclusividade por dez anos. Águila blanca, sua segunda realização, foi recebida com algumas objeções, mas em 1942 o diretor se recuperou com Los chicos crecen. Essa peça comovente de Darthés e Damel fora um sucesso retumbante quando de sua estreia teatral. A resposta à versão cinematográfica foi similar; foi exibida com grande sucesso em vários países da América -no Brasil foi lançada com o título de Os Filhos Mandam- e para seu realizador significou o apoio definitivo dos Estúdios Lumiton.

Em 1943, Christensen lançou um dos filmes emblemáticos da cinematografia argentina: Safo, historia de una pasión, baseado no célebre romance de Alphonse Daudet. Em uma concedida ao autor destas linhas, o diretor explicou a motivação que o levou a realizar o filme: “Quando ainda estava trabalhando na rádio, vi um filme argentino francamente absurdo no qual, quando o casal estava para se beijar, a câmara apontava para baixo, para o céu, para qualquer lado, menos para o rosto dos protagonistas. Se eles diziam: ‘Te amo’, por exemplo, era tão pouco plausível que o público explodia de rir pela pouca verdade que se percebia. Na realidade, não era só nesse filme. Acontecia em todos os filmes que se faziam na década de 30. Saí do cinema prometendo a mim mesmo que se alguma vez eu dirigisse, faria um filme com cenas de amor ‘de verdade’. Por isso fiz Safo. À margem disso, conto a você que há uma cena com grande quantidade de extras que deu muito trabalho e exigiu incontáveis horas de filmagem: a do carnaval. Procurei me imbuir de como se celebrava essa festa na Buenos Aires de 1914, o ano em que situei a ação. O cancan que incluí, por exemplo, não é gratuito. Os assessores aos que recorri me informaram que era uma dança obrigatória naquela época”.

Safo foi o começo do que a atriz Olga Zubarry chamou acertadamente de o “atrevimento de Christensen”. Ou seja, encarar o desafio de transitar por uma temática arriscada, nunca explorada antes pelo cinema argentino. A história de amor entre uma cortesã e um rapaz mais jovem do que ela (os insuperáveis Mecha Ortiz e Roberto Escalada) foi tratada pelo diretor com códigos visuais não habituais nos filmes argentinos da época. Entre eles está o uso de simbolismos (teia de aranha = jovem capturado e inevitavelmente arrastado à paixão; ondas que batem nas rochas = consumação irrefreável do ato sexual), vozes sussurradas, beijos que pela primeira vez eram vistos como algo verossímil e cenas de forte sugestão sensual. Christensen deslocou a ação à Buenos Aires de princípios do século XX e nos diálogos se usou o “vos” no lugar do até então obrigatório “tú”. A crítica recebeu o filme com beneplácito e o público respondeu mantendo o filme em cartaz durante longos meses em Buenos Aires, repercussão que se repetiu no interior do país e também na América do Sul, América Central e México.

Com Safo começou também a longa e conflituosa relação do diretor com a censura. Temendo uma possível proibição, ele se adiantou aos fatos e, com astúcia, incluiu duas frases de similares características moralistas no início e no fim do filme. A frase do fim era a mesma com a qual Daudet dava início ao romance: “Para meus filhos, quando tiverem vinte anos...”. De todas as maneiras, o cartaz publicitário precisou ser modificado porque escapava aos “padrões morais da época”: Escalada aparecia beijando o ombro de Mecha. Suas vicissitudes com a censura continuaram com outros filmes: Adán y la serpiente, El ángel desnudo, Una atrevida aventurita (o primeiro título deste último, Una aventura inmoral, acabou sendo vetado) e finalmente La intrusa, que foi proibida em 1981, durante a ditadura militar que imperava naquele momento.

Assim como Safo inaugurou o cinema erótico na Argentina -como afirma o prestigioso historiador Domingo Di Núbila-, três anos depois Christensen consolidou sua fama de enfant terrible ao apresentar o primeiro nu feminino de uma estrela -Olga Zubarry- no mencionado El ángel desnudo: de costas para a câmera e da cintura para cima.

Com a mesma atriz retomou a ficção argentina em outro magnífico melodrama: Los pulpos, de Marcelo Peyret, no qual o personagem de Horacio Pizarro lhe permitiu levar o gênero às últimas consequências, até a exaltação suprema e extrema da paixão. Além disso, Los pulpos foi uma das primeiras produções argentinas rodadas em cenários reais de Buenos Aires, pois até aquele momento, assim como acontecia nos EUA e na Europa, os estúdios argentinos nas décadas de 30 e 40 construíam cenografias -inclusive ruas inteiras- em seus próprios sets, tratados acusticamente para a gravação do som direto. Essa estética inovadora permitiu que o espectador chegasse a sentir a vibração de Buenos Aires e tivesse a sensação de que a cidade tinha a densidade de um personagem mais. “Tinha de conseguir um clima tangueiro porque a história de Peyret ‘é um tango’”, afirmou o diretor numa entrevista. Esse propósito foi favorecido pela escolha do leitmotiv central da música, o tema Uno, de Mariano Mores e Enrique Santos Discépolo.

Mas Christensen não ficou restrito ao cinema erótico: ao contrário de outros realizadores, que depois de conquistarem uma marca registrada não a abandonam, aproximou-se da busca de uma constante diversificação temática e de procedimentos. Assim, encaminhou-se para a comédia e nasceram La pequeña señora de Pérez e sua continuação, La señora de Pérez se divorcia, com Mirtha Legrand e Juan Carlos Thorry e Con el diablo en el cuerpo, um dinâmico passatempo deslocado que lançou Susana Freyre –esposa do diretor entre 1947 e 1962– ao estrelato.

Também no gênero comédia, apresentou em 1953 um delicioso filme: Un ángel sin pudor, baseado na obra francesa Un petit ange de rien du tout, de Claude-André Puget. O argumento contava a história de um anjinho que ansiava intensamente descer à terra e que, finalmente, consegue permissão para fazê-lo por pouco tempo. Convertido em mulher, vive uma história de amor que lhe desperta o desejo de não retomar a sua primitiva origem. O realizador conseguiu transitar pelo fantástico sem renunciar a certa ancoragem de corte realista, com um delicado lirismo corporificado nas figuras de Susana Freyre e Ángel Magaña, que desempenharam simpaticíssimos e absorventes papéis principais.

Inquieto e eclético, o realizador fez incursões no gênero policial com filmes inesquecíveis. Nessa linha, dirigiu La muerte camina en la lluvia, inspirado em L'assassin habite au 21º, tema a partir do qual o diretor francês Henri-Georges Clouzot já havia realizado uma primeira versão em 1942. O jornal L'Humanité e outros diários parisienses afirmaram que o filme do argentino captou melhor o clima que reinava no envolvente romance de André Stanislas Steeman sobre os excêntricos hóspedes da pensão “Babel”, na qual vive um assassino que está abalando a cidade e que só comete seus crimes quando chove.

Em La trampa, seu último trabalho para os Estúdios Lumiton, transitou também pela variante do mistério e da intriga. Além disso, permitiu que Zully Moreno realizasse provavelmente seu melhor trabalho como atriz, distante de certos esquematismos de heroína de “telefone branco” que caracterizaram a maioria dos filmes que fez para a Sono Film. Apenas o talento e o poder de persuasão de Christensen bastaram para que a mais glamorosa estrela da época aceitasse aparecer “afeada” na primeira parte do filme. O balanço final foi altamente positivo para a atriz.

Em 1952, Christensen apresentou Si muero antes de despertar, adaptado de um relato de William Irish, filme considerado pela crítica da época, quase de forma unânime, como a obra mais perfeita que o diretor rodou na Argentina. Num primeiro momento, o filme fez parte de um único longa-metragem com três contos de suspense do mesmo autor norte-americano, mas era muito extenso e, apesar da oposição do diretor, o estúdio decidiu lançar um deles. Os outros dois –Alguien al teléfono e El pájaro cantor vuelve al hogar– foram lançados juntos com o título de No abras nunca esa puerta. Este é um filme de excelente fatura, mas Si muero voou ainda mais alto: tinha uma narrativa de alta qualidade baseada especialmente na imagem (com expressiva fotografia de Pablo Tabernero) e num misterioso e opressivo clima dramático que, com reminiscências de Hitchcock, “conseguiu transferir a ameaça da tela à mente do público”.

Em seguida, Christensen foi trabalhar na Sono Film e retomou o melodrama: “o gênero cinematográfico mais amado pelo público e mais repudiado pela crítica e pelos chamados públicos eruditos”, segundo a especialista Silvia Oroz. E o fez com dois elevados expoentes desse tipo de produção: Armiño negro e María Magdalena, protagonizados por Laura Fidalgo, a maior femme fatale do cinema argentino de então. Ambos os filmes contaram com os aditamentos necessários e recorrentes do gênero: os amores clandestinos, a maternidade carente da figura paterna, a culpa, o arrependimento, o perdão e, entre outros, os preconceitos religiosos e sociais. Armiño negro teve exteriores rodados em Lima, Cuzco e Machu Picchu (Peru) e falava de uma mulher de passado escandaloso e das consequências dramáticas que essa situação gera em seu filho adolescente. María Magdalena –filme bastante intenso e ainda mais agudo do que o anterior– foi uma espécie de réplica moderna do relato bíblico e mostrava uma rica herdeira que, preocupada apenas com seus caprichos, encontra o caminho da salvação ao conhecer um cientista que faz de sua vida um apostolado do bem; mas o homem é traído e morre ao contagiar-se voluntariamente com uma vacina envenenada. Ela, num claro gesto de expiação, se propõe a seguir o caminho traçado por seu mestre.

Em 1945, Christensen teve sua primeira experiência no exterior quando, graças a uma autorização especial dos Estudios Lumiton, viajou ao Chile para fazer La dama de la muerte, baseada em El club de los suicidas, do romancista escocês Robert Louis Stevenson. Assim como ele, nessa mesma época outros diretores do cinema argentino -entre os quais Luis Moglia Barth, Carlos Schlieper, Carlos Borcosque e Francisco Mugica- tinham sido contratados pelos estudos Chile Films numa tentativa de impulsionar a indústria cinematográfica daquele país. Anos depois, La dama de la muerte -cujos cenários foram concebidos pelo cenógrafo Jean de Bravura- foi adquirida pelo Museu Britânico em reconhecimento à exata reconstrução da época vitoriana.

Depois da passagem pelo Chile, o diretor retomou a atividade na Argentina e, por volta de 1949, enquanto filmava La trampa, tornou-se pública a notícia de que o Dr. Guerrico tinha posto à venda os Estúdios Lumiton. Christensen sabia de algo mais: seu contrato fazia parte do inventário da produtora, para dizê-lo de alguma maneira. Isso provocou um profundo mal-estar no realizador, que naquele momento recebeu uma oferta para dirigir na Venezuela. A proposta venezuelana tinha pontos em comum com a que anteriormente o tinha levado ao Chile. Luis Guillermo Villegas Blanco, diretor da Bolívar Films, de Caracas, convidou-o para dirigir o longa-metragem inaugural desse estúdio, até então dedicado exclusivamente à produção do primeiro noticiário do país. Os escassos filmes venezuelanos realizados até 1949 não tinham alcançado a admiração do público nem o apoio da crítica. A inexperiência geral parecia ser a responsável por tal circunstância. Villegas Blanco apostou que a contratação de artistas e técnicos estrangeiros com trajetória avalizada seria uma saída viável para que a Venezuela encontrasse o caminho a seguir para ter uma verdadeira indústria cinematográfica. O produtor caraquenho tinha estado fora do país durante cerca de vinte anos, trabalhando na Espanha, Chile e Argentina, sempre em negócios relacionados com o espetáculo. Não ignorava, portanto, que Christensen era um dos diretores argentinos mais cotados e pensou que era a pessoa indicada para pôr em funcionamento a Bolívar Films.

El demonio es un ángel foi o primeiro filme dessa produtora e foi um verdadeiro acontecimento para os venezuelanos. Eles nunca tinham visto refletidas na tela as ruas caraquenhas nem tinham ouvido seus costumes e modismos verbais capturados pelo cinema.

Juan Carlos Thorry, protagonista desse filme ao lado de Susana Freyre, recordou por volta de 1995 os pormenores que cercaram aquela viagem à Venezuela: “Éramos um grupo de argentinos entre atores e técnicos e foi uma experiência única, pois assim que chegamos a Caracas, em um coquetel de boas-vindas que nos ofereceram, Villegas Blanco disse a Christensen que o estúdio estava desmontado. Ou seja, tinha sido construído, mas eles não sabiam como montá-lo. Christensen respondeu: ‘Como assim? Por que não me informaram isso antes?’, e Villegas Blanco disse: ‘Porque se tivéssemos feito isso, talvez você não viesse’. O problema foi solucionado com um telefonema aos Estados Unidos para que enviassem os equipamentos: câmeras, luzes e tudo o que fosse necessário. Em poucos dias o pedido estava em Caracas e, com a supervisão de Christensen, o estúdio foi montado, assim como um excelente laboratório, tudo equipado com os componentes mais modernos”. A estreia em Caracas de El demonio es un ángel foi um acontecimento de primeira grandeza. Bem ao estilo Hollywood, o diretor e os atores principais deixaram as impressões de suas mãos e as assinaturas em um quadro de cimento fresco no cinema Lido.

Christensen completou seu contrato de dois filmes com a Bolívar Films ao rodar La balandra Isabel llegó esta tarde, protagonizada por Arturo de Córdova e Virginia Luque, baseada no conto homônimo de Guillermo Meneses. O filme -fiel aos postulados do realismo mágico emanado de suas raízes literárias- ficou como uma das demonstrações mais acabadas de um cinema pleno de sugestão índio-americana. Magnificamente escorado pela fotografia de José María Beltrán, foi uma verdadeira revelação pela grandeza de sua beleza plástica e sua força avassaladora em que aflora uma história de amor e bruxaria emoldurada no realismo do Bairro da Muchinga de La Guaira e seus habitantes. No entremeio, danças e cantos típicos, mistura macabra de alegria e morte, diversão e brutalidade, loucura e paixão. Em 1951, representou oficialmente a Venezuela no Festival Cinematográfico de Cannes, no qual Beltrán recebeu o Prêmio da Melhor Fotografia. Anos mais tarde –em 1992–, a Motion Pictures Export Association of America selecionou o filme para representar a Venezuela na coleção de vídeo “A Literatura Latino-americana no Cinema”.

Depois da experiência venezuelana Christensen retornou à Argentina e, em 1954, razões de caráter político determinaram que se radicasse no Brasil. O fator desencadeante foi María Magdalena, rodado quase integralmente no Brasil (em Salvador e no Castelo D’Ávila). Christensen acreditava que provavelmente esse tenha sido um dos motivos que levaram as autoridades do Festival Cinematográfico de São Paulo a convidar o filme para representar a Argentina. As divergências que o diretor tinha havia algum tempo com o governo peronista explodiram quando se soube do convite a María Magdalena, pois frustrou as intenções de gente de cinema e de funcionários ligados ao poder, que pretendiam enviar outro filme à mostra paulista. Christensen se negou a recusar o convite, o que provocou um profundo mal-estar, sem considerar sequer que a escolha do filme era alheia ao diretor. A represália não tardou. Quando estava com Atilio Mentasti concluindo futuros projetos em comum, o diretor da Argentina Sono Film recebeu uma chamada telefônica que o informava sobre a ordem oficial de censurar Christensen. Atônito, Mentasti fez seu interlocutor repetir a notícia para que pudesse ser ouvida pelo interessado. A medida abrangia, além disso, a proibição expressa de que a família Christensen abandonasse o país, ou seja, o “congelamento” na própria terra.

Com sua esposa, a atriz Susana Freyre -com quem se casara em 1947 e de cuja união, em 1951 nasceu Carlos Hugo, único filho de ambos- Christensen começou a administrar a difícil e delicada partida. A esse respeito, Susana lembrou que: “(…) Naquele momento foi de grande importância a intervenção de um funcionário policial que facilitou os trâmites para efetivar a viagem. Contamos também com a ajuda e o apoio solidário da atriz Niní Gambier e seu marido, o diplomata e escritor Pedro Juan Vignale, que tinha colaborado nos roteiros dos dois últimos filmes que Christensen fizera para a Sono Film. Ambos ajudaram nos levando em automóveis diferentes -por razões de segurança- até o avião que nos levou ao Brasil, para onde partimos em fevereiro de 1954”.

Já em São Paulo e participando do festival que involuntariamente desencadeou a situação exposta, o casal -que oficialmente não fazia parte da delegação argentina- teve de se juntar à comitiva mexicana. Assim fizeram no dia que se exibiu María Magdalena e em outras jornadas nas quais assistiram a diferentes eventos da mostra. Terminada a mesma, Christensen pretendia seguir viagem para o México, mas, associado com o produtor e ator carioca Roberto Acácio, instalou-se no Rio de Janeiro e se juntou ao cinema brasileiro. A obra que desenvolveu no Brasil também tem a marca literária que caracterizou boa parte de sua produção argentina. “Eu sofro muito a influência do escritor”, confessou uma vez. Convencido de que a literatura é a base mais sólida da cinematografia, recorreu à colaboração dos mais prestigiosos autores brasileiros. Assim como o tinha feito na Argentina com Benito Lynch, Yamandú Rodríguez, César Tiempo, Horacio Quiroga, Marcelo Peyret e Alejandro Casona, entre outros, no Brasil as penas foram Pedro Bloch, Orígenes Lessa, Machado do Assis, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Aníbal Machado, Millôr Fernandes, Péricles Leal, Fernando Sabino, Dinah Silveira de Queiroz, Nelson Rodrigues, Paulo Rodrigues e José Condé.

Seu primeiro filme brasileiro foi Mãos Sangrentas, inspirado na fuga do Presídio da Ilha de Anchieta, no litoral de São Paulo, fato acontecido em 1952 e que teve trágicas consequências. O filme causou forte impacto no Brasil devido ao ritmo e à implacável violência. Quase imediatamente, rodou o drama Leonora dos Sete Mares, interpretado por Susana Freyre e Arturo de Córdova e baseada em Leonora, peça teatral cheia de suspense, cujo autor, Pedro Bloch, acabava de obter enorme repercussão com o monólogo As mãos de Eurídice, encenado em vários países do mundo.

Continuou com Meus Amores no Rio/Mis amores en Río, primeira coprodução argentino-brasileira e primeiro filme a utilizar o sistema UltraScope-Agfacolor no Brasil, seguido por Matemática Zero, Amor Dez e Amor para Três, remakes de La pequeña señora de Pérez e La señora de Pérez se divorcia, que realizara na Argentina durante a década de 40, agora transpostos para o registro da comédia musical. Os títulos mencionados foram importantes sucessos comerciais e, segundo Christensen, “tornaram Susana Freyre, protagonista dos filmes, uma grande atração do cinema brasileiro”. Também com a esposa como atriz principal, Christensen estreou como produtor teatral de Gigi, de Colette; O Milagre de Anna Sullivan, de William Gibson, e Você Pode Ser um Assassino, de Alfonso Paso, peça na qual, além disso, exerceu a direção cênica, métier que não desempenhava desde uma distante experiência juvenil.

Continuou com Esse Rio que Eu Amo, que permaneceu três meses em cartaz no cinema Palácio, no Rio de Janeiro, antes de começar seu percurso pelo circuito comercial. O filme também marcou o início da atividade cinematográfica de Francisco Marques, de quem Christensen afirmou “que ao longo dos anos se tornou meu melhor amigo e o colaborador mais importante de toda a minha carreira”. Crônica da Cidade Amada completou a bela trilogia que o cineasta dedicou ao Rio de Janeiro.

Em 1963 lançou O Rei Pelé, coleção de anedotas biográficas e primeira aparição no cinema de um dos mais famosos jogadores de futebol do mundo. O filme também serviu para mostrar a paixão esportiva dos brasileiros. No mesmo ano, Christensen fez uma experiência inédita na carreira: o curta-metragem Bossa Nova, primeiro registro argumental e em cores que analisa o fenômeno desse movimento musical.

Viagem aos Seios de Duília (1964), baseada no conto homônimo de Aníbal Machado, foi um marco da consolidação da carreira do diretor no Brasil. O filme radiografou uma vida rotineira, alienante, por meio do personagem José Maria, funcionário que ao se aposentar enfrenta uma profunda solidão existencial. Decepcionado por seu presente e hostilizado por seu futuro -simbolizado na morte de um colega da repartição onde trabalha- só lhe resta seu passado. Como última esperança de afirmação vital, empreende uma viagem à sua cidade natal, onde viveu um intenso e inesquecível amor adolescente. Uma viagem interior, na qual o personagem tenta fazer uma espécie de inventário de sua vida e de sua razão de ser.

Dois anos depois, o diretor fundou sua própria empresa: a Carlos Hugo Christensen Produções Cinematográficas, que começou com O Menino e o Vento, baseado no conto O Iniciado do Vento, também de Aníbal Machado, que Christensen dizia ser um de seus escritores favoritos. O argumento conta a história do engenheiro José Roberto Nery, que visita a cidade da Bela Vista, no interior de Minas Gerais. Lá conhece Zeca da Curva, que se diz enfeitiçado pelo vento que castiga a região dia e noite. Ambos partilham a mesma adoração pelo vento, até que um dia o menino desaparece. Tempos depois, José Roberto é chamado para responder a um processo, acusado de ter mantido relações homossexuais com Zeca. Toda a cidade o condena. Durante o julgamento, enquanto José Roberto presta depoimento, é interrompido pelo vento, que atravessa a sala do tribunal, levando o julgamento pelos ares, como se Zeca tivesse voltado, censurando o processo, os arcaicos costumes do lugar e os preconceitos da população. O filme representou um dos pontos mais altos de Christensen no Brasil; fez uma denúncia poética do preconceito e da discriminação e, no notável final, alcançou momentos de grande beleza plástica e força dramática.

Durante o transcurso dessas duas últimas filmagens o diretor se apaixonou por Minas Gerais e algum tempo depois realizou outros dois filmes nesse estado: o drama de terror Enigma para Demônios e A Mulher do Desejo, com um elenco totalmente formado por atores de Belo Horizonte, quando lançou José Mayer, que seria posteriormente uma das figuras de maior prestígio no cinema brasileiro.

Em sua filmografia também se destaca Anjos e Demônios, o maior sucesso comercial de 1970. O filme, que tinha um ótimo roteiro de trama policial, apresenta fortes cenas de sexo que desencadeiam uma espécie de prólogo à grande aventura erótica –tema posteriormente muito comum no cinema brasileiro.

Em 1973 Christensen surpreendeu a crítica e o público introduzindo novos temas com Caingangue, A Pontaria do Diabo, filme de aventuras, dentro do gênero faroeste, com implicações sobre a problemática social existente na época, em que se mesclavam as raízes do Brasil e do Paraguai.

Em 1979 concretizou um de seus sonhos mais acalentados: levar um conto de Jorge Luis Borges ao cinema. A escolha recaiu em La intrusa, conto incluído no livro O informe de Brodie. Na apresentação privada do filme (1981), Borges pareceu desfrutar do mesmo, mas pouco depois o desaprovou, argumentando que “...há obscenidades, nus, e além disso (é o mais grave) sugere-se a pornografia e o sexo”, acrescentando que “...não se trata de uma versão livre, mas de uma versão distorcida”. Começou então uma dura polêmica entre o autor e o diretor, rodeada pela proibição sofrida pelo filme como resultado da censura argentina. Com o tempo, os ânimos se acalmaram e, por ocasião da estreia, o notável escritor não fez declarações a respeito.

Depois de um fracassado retorno ao cinema argentino com Somos?, aconteceu uma pausa de três anos, depois da qual anunciou a realização de La casa de azúcar, baseada num conto de Silvina Ocampo. Christensen ignorava que o filme levaria -nada menos- que dez anos para ser concluído. Finalmente foi rodado e, estando virtualmente terminado, razões de ordem econômica fizeram que o filme permanecesse inédito até o momento de escrever estas linhas (2015). Consultado a respeito neste último ano, o assistente Francisco Marques explicou: “O filme está com o copião totalmente editado com os diálogos em português. Estão faltando a dublagem em espanhol, que teria de ser feita em Buenos Aires; compor e gravar a música de fundo; colocar os ruídos e mixar. Não é muito trabalho, mas necessita seu tempo para ser feito com cuidado. Além das questões burocráticas e legais, ainda temos de encontrar o financiamento. Mas não desistimos!”.

A significação da obra de Christensen, especialmente no que se refere à abertura a novos caminhos, tanto no aspecto temático como no formal, ratifica sua condição de verdadeiro pioneiro na área que escolheu como forma de expressão artística, além de documentar sua inegável contribuição à indústria e à história da cinematografia sul-americana. São razões mais do que válidas para que os organismos cinematográficos do Brasil e da Argentina forneçam os meios que permitam conhecer a obra póstuma de tão relevante realizador.

Carlos Hugo Christensen morreu em 30 de novembro de 1999. No dia anterior tinha recebido o Prêmio à Personalidade Latino-americana, entregue pela primeira vez no âmbito do X Festival de Cinema de Natal. Retornou ao seu amado Rio de Janeiro desgastado pela viagem e pela emoção. Recostou-se e adormeceu. Só assim, pegando-o despreparado e à traição, a morte ganhou o jogo contra quem nunca tinha deixado de ser o enfant terrible daquele cinema argentino que, posteriormente, deixou seu indelével rastro na cinematografia de vários países da América Latina. Entre elas, este Brasil que ele tanto amou e que hoje, com toda a justiça, o homenageia.



Produção

Apoio

Patrocínio

© 2015 HECO PRODUÇÕES
Todos os direitos reservados.

pratza