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UMA PANTERA EM MINHA CAMA
Ficção, 1971, 35 mm, Cor, 95 min

Mais do que transitar entre Argentina e Brasil (com breves passagens por Peru, Venezuela e Chile), Carlos Hugo Christensen compreendeu as possibilidades de integração entre as duas sociedades latino-americanas com as quais mais se relacionou. Não foi só por oportunismo ou tino comercial (ou nem mesmo por alguma preguiça criativa, como se poderia cogitar) que o cineasta buscou em trabalhos do passado a matéria-prima para projetos do presente, mas por perceber que um universo poderia, sem grandes esforços, refletir ou se reproduzir no outro. Ao se fixar no Brasil, Christensen refilmou alguns de seus filmes argentinos (curiosamente, apenas comédias), entre eles La Pequeña Señora de Pérez (1944), que virou Matemática Zero... Amor Dez, em 1958; La Señora de Pérez se Divorcia (1945), que se tornou por aqui Amor para Três, em 1960; e Adán y la Serpiente (1946), refeito como Uma Pantera em Minha Cama, em 1971. Em termos estéticos, além de sutis mudanças de enredo, a maior diferença entre os originais e os remakes está no uso da cor e do formato scope, o que permitiu ao realizador, no Brasil, narrar as mesmas histórias com mais fôlego e fluxo, em enquadramentos abertos e uma certa exuberância da encenação, que se percebe um tanto engessada nos filmes argentinos.

A escolha desses títulos não deve ter sido um acaso, e isso fica mais forte ao assistir Uma Pantera em Minha Cama. Se as outras duas comédias citadas têm por princípio uma abordagem lúdica (às vezes ingênua) da instituição do casamento, nesta Christensen abandona a inocência. Saem as trapalhadas e os desencontros gerados pela insatisfação com o matrimônio (para, no final, o casal central se dar conta de que não pode viver um sem o outro) e entra o casamento já em estado avançado de falência. A mulher é uma santa (explicitamente assim chamada), completamente dedicada ao marido; o homem é o estereótipo máximo do mulherengo fanfarrão, dentista que atende a esposa ao telefone enquanto tem uma paciente no colo. Nenhuma crise, nenhuma dúvida de ambos os lados. Resta a aceitação.

A fagulha da comédia –a catapulta para as situações de humor– vem, quem diria, pela mãe da protagonista. Certo dia, ela estimula a filha a ser uma esposa mais ativa, mais marota, mais atuante. Mais sexualizada, em suma. Pois é disso que trata Uma Pantera em Minha Cama: de sexo, ou das agruras causadas pelo desejo, travestidas de piadas de duplo (ou triplo) sentido, especialmente em diálogos de grupos de homens sempre sedentos por mais mulheres (raramente as suas, é bom que se diga). Hoje, talvez, um filme como este seja datado, de alguma maneira um retrocesso em tempos de recolocação e devido ajuste da igualdade da mulher numa sociedade em que não cabe a discriminação por gênero. No começo da década de 1970, porém, fazer graça com a permissividade masculina era senso comum. Só que esta percepção às vezes suplantava outra camada: como em quase toda a pornochanchada (carioca e paulista), a figura feminina surgia emancipada, dona do corpo e das vontades, disposta a superar a moralidade vigente em nome do prazer –seu e do outro. De alguma maneira, Uma Pantera em Minha Cama tateia essas questões, que seriam ampliadas nos anos seguintes ao menos até meados dos anos 80.

O filme de Christensen traz, então, o imaginário da versão de 1946 (um pouquinho mais comportada, mas não tanto) para o Brasil tropicalista e desbundado pós-1968. Susana, a personagem de Rozana Tapajós, é uma espécie de ponte de ligação, de transição entre dois períodos e duas formas de lidar com o corpo, o desejo e a sexualidade, todos em transformação na virada de década. De santinha a depravada, assumindo secretamente a identidade da misteriosa Dama Branca, cuja volúpia e voracidade “assombram” os homens num hotel durante o Carnaval, Susana cria um furacão de desencontros e jogos de poder nos quais é ela quem detém o conhecimento e as decisões. Nem mesmo ao espectador são dadas todas as chaves do mistério sobre quem, afinal, é a verdadeira Dama Branca (pode ser Susana, pode não ser). Enquanto rimos com as investidas patéticas dos homens no hotel, suspeitamos de armações em segundo plano, sendo feitas ali aos nossos olhos, bastando apenas a retirada de um véu.

O diretor acompanha todo o vai e vem com o mesmo tipo de malemolência de Renato, o dentista interpretado por Rubens de Falco numa chave de deboche bastante pertinente ao tom buscado na encenação. A caricatura faz de Renato uma figura infantilizada, hormônios em polvorosa, quase um adolescente de bigode e poucos cabelos, sempre a se esforçar para a transa seguinte com alguma mulher que lhe acenda o pavio. Uma Pantera em Minha Cama logo se torna uma screwball comedy picante, rumo a um desfecho que, se abre possibilidade à reconciliação e ao ajuste, permite também um rearranjo nas hierarquias e nas relações afetivas e íntimas, atravessadas pela ambiguidade da traição dela, moeda de troca que mantém Susana no controle da situação e a revela ao marido como outro tipo de esposa.

Apesar de Christensen ter realizado comédias antes, Uma Pantera em Minha Cama antecipa a vertente erótica do cinema brasileiro nos anos seguintes –pela qual o próprio diretor não enveredou. Dentro da filmografia do argentino, Uma Pantera em Minha Cama é quase um hiato, localizado entre o drama juvenil Anjos e Demônios (1970) e o faroeste Caingangue, A Pontaria do Diabo (1973), produzido por Roberto Farias. A Pantera foi, de fato, a despedida de Christensen da comédia, tornando ainda mais significativa a insinuação homossexual da cena final (“Comendador?!...”) e adiantando, pelo humor, questões mais seriamente presentes em alguns de seus filmes seguintes.

Marcelo Miranda



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