Portal Brasileiro de Cinema  Mojica, o Cinema Novo e eu

Mojica, o Cinema Novo e eu

Gustavo Dahl

Em 26 de março de l964, eu chegava ao Brasil depois de quatro anos despendidos em uma via- gem de formação na Europa. Naquela época longínqua, ainda imbuídos daquele antigo espírito do século XIX, acreditava-se que o contato físico com a civilização qualificasse a juventude. Paris, Roma, Amsterdã, Londres viviam a revolução de mentalidades e costumes que culminou com maio de 1968. Na chegada à Europa, em 1960, eu tinha vis- to À bout de souffl e (Acossado, 1960), de Godard, que acabara de sair. Em fevereiro de 64, voltando, assisti ao primeiro concerto dos Beatles em Paris. Todos eram moderninhos. É importante preparar a cena para a entrada de Mojica. Aterrissei no Rio, no Santos Dumont, cruzando com Glauber, que levava Deus e o diabo na terra do sol (1964) para Cannes. Quinze dias depois, vim a São Paulo visitar Paulo Emilio e Rudá, na Cinemateca Brasileira, meu primeiro trabalho em cinema. Encontrei também Sérgio Claudio de Franceschi Lima, o Sérgio Lima, colega na Cinemateca (ocupava-se da documentação), companheiro de geração e meu iniciador nas artes e mistérios do movimento surrealista, matéria em que, com pouco mais de 20 anos, já excedia. Tínhamos alguns gostos comuns, como o cinema japonês, as grandes vamps, consagradas ou secretas (de Louise Brooks a Hildegarde Kneff), o cinema de gêneros, dentre os quais – et pour cause... – ressaltava o cinema fantástico. Sérgio era extremamente rigoroso em relação ao cinema brasileiro. Uma vez perguntei o que havia de novo, o que valia a pena ser visto. Com o atrevimento típico de nossa juventude, fuzilou: “Tem esse tal de Glauber Rocha, mas sobretudo tem o José Mojica Marins. Não deixe de ver À meia-noite levarei sua alma, está passando no Art-Palácio”. E começou a descrever uma cena em que, ao fundo, desfilava uma procissão, com seus cânticos, enquanto em primeiro plano Zé do Caixão devorava com brutalidade uma perna de cordeiro, o agnus dei. “É genial”, arrematou. Fui ver correndo e saí achando que Sérgio tinha razão.

Bons tempos em que os Cahiers du Cinéma faziam nossa cabeça – e a do mundo –, rivalizando com a Positif, mais à esquerda, infl uenciada pelo surrealismo anárquico. O conceito de cinema de autor já tinha sido formado para designar aqueles diretores que, consagrados e afundados na indústria hollywoodiana até os cabelos (Hitchcok, Lang, Hawks, Sternberg, Walsh), conseguiam, dentro dela, por conta da força e da originalidade do estilo visual e temático, criar um universo pessoal, imediatamente reconhecível. Ao mesmo tempo abominava-se o cinema correto, artesanal no sentido meramente profissional, que correspondia aos cânones estabelecidos pelos grandes estúdios. No cinema francês havia a luta desmistificadora contra o cinema de qualidade de base literária, com roteiro amarrado, boa cenografia e bons figurinos, atores corretos, bem fotografado... e chocho. O cinema do papai. Paradoxalmente, a partir da constatação da capacidade de sobrevivência do estilo (que é o homem) nos ares carregados de pragmatismo e ânsia por resultados de bilheteria do cinema americano clássico, o conceito de “cinema de autor”, francês por excelência, sofria um giro lingüístico.

Contra a ditadura do produtor, os diretores deveriam produzir seus filmes. Contra as histórias bem amarradas pelos roteiros surgidos ainda sob a inspiração das regras do teatro grego de 2400 anos antes, o diretor deveria escrever seu próprio roteiro. Ficava mais moderno e pessoal. Os fotógrafos vinham das atualidades cinematográficas, como Raoul Coutard em À bout de souffl e ou Waldemar Lima em Deus e o diabo. Eles começaram a romper com as regras clássicas de contraste de luz, dispensando a iluminação artificial; usavam a câmera na mão, até em cadeira de rodas para fazer o travelling, que era considerado uma questão moral. Atores e atrizes não precisavam ser consagrados e era melhor se fossem amigos ou, eventualmente, amantes – entre si ou do diretor. Em suma: ocorreu uma verticalização radical de todas as fases em que a criatividade pudesse se manifestar. Como em toda a arte moderna desde o Impressionismo, empreendia-se a desconstrução da forma e da linguagem para reconstruí-la à imagem e semelhança de seu supremo criador, o diretor. Mojica adaptava-se perfeitamente ao figurino, exceto na fotografia, que era livre, mas não modernosa.

Os rapazes do Cinema Novo, imbuídos da luta contra a academia cinematográfica consagrada, avaliavam preconceituosamente as obras de Roberto Farias, Lima Barreto e, sobretudo, Walter Hugo Khouri. E celebravam o cinema bárbaro de Mojica. Rogério Sganzerla, então infante do movimento, era um dos arautos do milagre. O próprio Cinema Novo já era uma mini-academia, e Mojica era uma alternativa a ele. A extrema brutalidade do erotismo de Mojica, com suas inesquecíveis caranguejeiras sobre seios nus e seus persona- gens que usavam o vestuário desglamorizado do povo brasileiro, vão seguramente contribuir para a boçalidade terceiro-mundista, muito paulistana, de O bandido da luz vermelha (1968). Há todo um capítulo crítico a ser escrito sobre as relações do cinema de Sganzerla e de Mojica, até mesmo de uma componente wellesiana encontrável na ego trip de ambos. Os olhares intensos de Mojica nos reenviam ao jovem Orson Welles, que trabalhava também como ator nos primeiros filmes que fez. O uso delirante do estúdio e das reconstituições cenográficas remete ao cinema mexicano e seus filmes de horror de “classe C”. A mesma liberdade será usada por Glauber na orgia arcaica do início de A idade da Terra (1980). E, sobretudo, destaca-se a força de uma pulsão erótica, que se reflete em sua filmografia feita toda de sangue, Deus, sina, aventura, destino, morte, estranheza, sadismo, diabolismo, deuses adormecidos, sexo, tesouros, vingança, virgindade, macheza, exorcismo, escuridão, consolos, viúvas, inferno, carne, delírios, anormalidade, sexo perverso, mercadejado, em quinta dimensão, maratonas alucinantes. Cronologicamente, assim rezam os conceitos expressos nos títulos de seus filmes e sintetizados no último: Encarnação do demônio.

Há também uma anedota da pequena história. Como mojiquiano fanático que sou, quando ele veio ao Rio lançar À meia-noite levarei sua alma (ou então Esta noite encarnarei no teu cadáver, que dá exatamente na mesma), fiz uma festa na casinha de vila de Botafogo em que eu morava com a linda Maria Lucia. Chamei todo mundo, a galera. Todos curiosos e receptivos àquele novo personagem que entrava em nossas vidas. Sim, porque o cinema era o nosso sagrado Livro da Vida. A vila era na rua São João Batista, que começa no cemitério de mesmo nome e convida no portão da entrada a revertere ad locum tuum, ou, numa tradução livre, “voltar para o seu lugar”. Carioca e juvenilmente, a festa era movida a cerveja e batida de limão.

De novo, bons tempos... Mojica chegou à meianoite em ponto, com seu habitual sentido de espetáculo. No melhor estilo: de capa, cartola e unhas compridas. Foi um momento dionisíaco, o encontro de duas transgressividades – a modernidade e a blasfêmia – que se reconheciam e se misturavam. Era a utopia de um cinema brasileiro saindo do seu próprio umbigo. Não me lembro dos presentes, mas do clima: estávamos todos alegres e felizes, como o próprio Mojica. Rolam até hoje comentários (Mojica é o rei do folclore e gosta de alimentá-lo) de que, em determinado momento, Zé do Caixão foi recuperar suas forças deitando-se na cama do casal – é possível – e o colchão nunca mais teria sido o mesmo. Num outro momento de entusiasmo, fui à minha estante e tirei dela um livro de fotografias, Le fantastique au cinéma. Era da mesma editora que tinha publicado L´erotisme au cinéma. Lá estava a iconografia histórica do terror cinematográfico. Fantômas, Caligari, Golem, Nosferatu, Corcunda de Notre-Dame, Frankenstein, Drácula, chegando até o Monstro da Lagoa Negra. A intenção era mostrar a Mojica que ele pertencia, sem saber, a uma linhagem que remetia aos primórdios do cinema. Contextualizar sua poderosa expressão visual nessa tradição, de igual para igual. Mojica levou o livro, e eu mantive o contentamento de ter-lhe revelado a aristocracia do Mal, de que ele fazia parte.

Anos depois, soube de uma história na qual Luiz Sergio Person, que tinha se tornado amigo pessoal de Mojica, rasgava na sua frente, uma a uma, voluptuosamente, as páginas do livro, dizendo a ele que ninguém tinha nada para lhe ensinar. Qual dos dois teria me contado isso? Person estudou comigo e Paulo César Saraceni no Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma, terminando o curso no ano anterior. Ficamos até amigos, os três. Mais tarde, quando Person fez aquela obraprima que é São Paulo S.A. (1964), desmanchou a impressão que Paulo e eu tínhamos dele, chamando- o maldosamente de “ala média”. O filme foi exibido numa noite memorável no velho auditório do Instituto Nacional de Cinema, o INC. To- dos saímos entusiasmados, sobretudo Glauber, pelo exemplo de que era possível fazer cinema moderno em São Paulo. Ao contrário do que se pensa e é alimentado até hoje pelo caquético e provinciano torneio Rio-São Paulo, nós do Cinema Novo queríamos provar que o cinema de autor era possível no Brasil. Person o fazia sobejamente e continuou em O caso dos irmãos Naves (1967), que, sem o brilho de seu primeiro filme, é ainda assim um filme profético sobre a ditadura militar. O talento, porém, não assegura a inteligência que faltou a Person ao não perceber o sentido da homenagem que o livro, a doação, o presente amigo prestavam a Mojica. Não havia nenhum paternalismo, exceto na projeção que ele, e eventualmente Mojica instigado, estava fazendo. O demônio está em toda parte. Não havia pretensão de ensinar a um mestre, mas de celebrá-lo. A beleza do gesto será, porém, mantida aqui, no restabelecimento da verdade e dos fatos. Sem orgulho e por uma única e exclusiva razão: o grande Mojica merece.

A fortuna crítica de José Mojica Marins terminou sendo composta ao longo dos anos. Zé do Caixão – como Nosferatu abandonando as margens do Báltico, embarcado em um esquife para espantar outras donzelas – conquistou a América e depois a Europa. O cinema experimental brasileiro dos anos 70 (Bressane, Sganzerla, Neville, Ivan) o teve como uma referência. Enquanto houve a Boca do Lixo, Mojica foi um dos seus reis, um rei da noite. Até hoje a criatividade de Mojica, capaz de desenhar o raio de uma tempestade diretamente no negativo, como fazia Norman McLaren nos anos 50, faz dele um valor do cinema brasileiro.

“Maverick” não é o nome de um modelo de automóvel, mas uma designação que era dada no Velho Oeste a animais excepcionais, que numa manada de milhares de búfalos selvagens não se integravam a ela. Mais fortes e bravios que o padrão comum, viviam solitários, isolados, sem disputar a dominação do grupo, mas permanentemente marcando de longe sua presença, seu carisma. Qualquer semelhança não é mera coincidência.