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DELÍRIOS DE UM ANORMAL

Ficção, 1977-78, 35 mm, cor, 83 min, longa-metragem

 
 

Dr. Hamilton é um psiquiatra aterrorizado por pesadelos em que Zé do Caixão tenta roubar sua esposa. Seus colegas médicos pedem ajuda ao cineasta José Mojica Marins, na tentativa de convencer Hamilton que Zé do Caixão é uma criação da mente do cineasta. O filme compila cenas de quatro obras de Mojica: O despertar da besta, Exorcismo negro, Esta noite encarnarei no teu cadáver e O estranho mundo de Zé do Caixão.

Não é impossível indagar quem é o anormal dos Delírios de um anormal. Será o psiquiatra Hamilton ou José Mojica Marins, o cineasta? Ou mesmo Zé do Caixão? O certo é que esse filme, arrancado do nada, reuniu imagens de filmes anteriores com o personagem, sob um fio de história bastante convencional: um psiquiatra é tomado por sonhos terríveis, em que Zé do Caixão aparece, disposto a roubar sua esposa, Tânia, pois seria ela a mulher perfeita, tão procurada pelo personagem – tomado desde o primeiro filme da série por essa fantasia nazi (na melhor das hipóteses, eugenista) de gerar o filho perfeito.

O filme traz em alguns momentos evocações expressionistas, do Gabinete do dr. Caligari (1920), em particular. Não que elas sejam intencionais: o tema e o gênero as exigem, embora a idéia da mente superior capaz de se sobrepor ao mundo, submetendo- o, seja muito cara ao expressionismo. Da mesma forma, o filme produz uma espécie de antecipação do terrível Freddy Krueger, que Wes Craven introduziria em 1984. A idéia aqui não é muito diferente, pois Zé do Caixão entra nos sonhos do psiquiatra, mas sua presença é real (e o final, nesse sentido, um achado).

Nunca o gênio de Mojica foi mais abstrato. O fio narrativo existe apenas para sustentar a sucessão de temas imagéticos tão caros ao autor. Lá estão os famosos animais peçonhentos, as terríveis emanações do inferno, os escravos de rosto monstruoso, os cenários distorcidos, os gritos. Lá estão ainda a carne dilacerada e as cenas de canibalismo e sadomasoquismo, tendo em vista que aos seres inferiores Zé do Caixão destina os rigores do sofrimento infernal.

Talvez aqui Mojica tenha atingido o pleno domínio da mise-en-scène, pois o filme se faz, quase inteiramente, de associações de imagens (melhor: uma imagem em preto-e-branco pode suscitar uma colorida e vice-versa, sem que o efeito se perca ou se dilua). Há momentos em que parecemos estar diante de um correlato do Balé mecânico (1923), de Fernand Léger, tal a intensidade da busca experimental, a autonomia diante do mundo e a liberdade do diretor diante de seu material.

Encontramos aqui, como sempre em Mojica, coisas muito brasileiras, claro. A começar pela evocação do expressionismo. Nada mais brasileiro: enquanto a Alemanha viveu 10 ou 15 anos de penúria, inflação e crise, a nossa desdita parece perpetuar-se, década após década. De maneira que nenhuma escola nos sensibiliza mais do que essa.

A idealização de Mojica a respeito de si como diretor de cinema também não deixa de ser curiosa: em dado momento, vamos encontrá-lo senhor de uma mansão com piscina e tudo mais, como se poderia esperar de um cineasta hollywoodiano. É justo que seja assim, pois Delírios de um anormal é, de certa forma, a celebração da fantasia vertiginosa que o cinema consegue produzir. Vertiginosa, mas também, talvez, deformadora da realidade e, nessa medida, perversa. Ou seja, anormal.

Inácio Araújo