Portal Brasileiro de Cinema  O horror universal de Zé do Caixão

O horror universal de Zé do Caixão

Carlos Primati

Foto de divulgação do filme Delírios de um anormal (1977-78)

Para a crítica norte-americana, quando da descoberta de José Mojica Marins no mercado de home video, em 1993, o cinema do autor parecia ter a estranheza surrealista de Luis Buñuel, combinava a elegância fetichista do italiano Mario Bava com o estilo ofensivo de John Waters e até ameaçava destronar o ultrajante Herschell Gordon Lewis como “padrinho do gore”. O nova-iorquino Joe Kane, respeitado crítico especializado em filmes de horror, elegeu Coffin Joe – como Zé do Caixão é conhecido no mundo anglófono – como “a maior descoberta do gênero na década de 90”, em seu guia The Phantom of the Movies’ Videoscope, lançado em 2000. Tim Lucas, outra autoridade no tema, em um artigo sobre os 13 melhores filmes de horror da década de 60, escrito para o livro Fangoria’s Best Horror Films (1994), confessa não ter assistido às obras de Mojica (pelo menos até aquele momento) e complementa que se concorressem os filmes do cineasta brasileiro “teriam tornado ainda mais impossível meu processo de eliminação”. Tais depoimentos, em conjunto, denotam um misto de fascínio pela descoberta e de embaraço diante do flagrante desconhecimento de renomados especialistas acerca de um cinema tão rico em ousadia e vigor. As notícias desse súbito – e, em parte, tardio – interesse dos americanos pela obra de Mojica repercutiram imediatamente no Brasil, causando espanto. Afinal, não se tratava de um artesão laureado em Cannes, como Anselmo Duarte e seu O pagador de promessas (1962), ou um au- tor da envergadura internacional de Glauber Rocha, festejado desde Cuba e Argentina até Itália, França, Espanha e Bélgica. A incredulidade se justificava, em parte, devido ao longo período de inatividade de Mojica como cineasta, que havia lançado seu último longa-metragem profissional mais de uma década antes, limitando suas aparições públicas, desde então, a performances esporádicas em programas de variedades na televisão. O reconhecimento da obra de Mojica, entretanto, vinha da crítica especializada em cinema fantástico, o tipo de deferência que o cineasta jamais tivera em seu próprio país – mas que experimentara 20 anos antes, laureado na França (3ª Convention du Cinéma Fantastique, 1973) e na Espanha (Festival Internacional de Cine Fantástico y de Terror de Sitges, 1974), circuito ao qual voltaria a se inserir na década de 90, com homenagens na Itália, na Holanda, em Portugal, no Canadá e nos Estados Unidos, entre outros países. Parte da crítica brasileira, quando muito, tratou o sucesso dos filmes de Mojica como uma autêntica farra de mendigos, recusando-se a reconhecer o valor de sua obra, incapaz de enxergar nela qualquer mérito artístico. Quando da época de lançamento dos longas, o crítico Alfredo Sternheim (O Estado de S. Paulo) considerou as películas de Mojica “totalmente desabonadoras e (…) só servem para desprestigiar o nosso cinema”, assim como B.J. Duarte (Folha de S. Paulo), que se incomodou com “o ridículo e o grotesco de sua pretensão”. Maurício Gomes Leite (Jornal do Brasil) sentenciava: o que Mojica faz “absolutamente não é cinema, [fazendo] descer o cinema [brasileiro] ao seu nível mais baixo, o da mendicância de idéias”. A chave para se compreender o universo de Mojica Marins passa pela aceitação – ainda que não necessariamente a apreciação – do horror como um gênero com valores e regras particulares (como o fizeram Salvyano Cavalcanti de Paiva e Sérgio Porto, dois dos poucos críticos que enxergaram alguma beleza nos contos macabros de Mojica). Muito mais estranho é o mundo de Zé do Caixão àqueles que rejeitam as emoções baratas das quais o próprio cinema de horror se fortalece; um cinema que, ainda que carregado de grafismo – ou, talvez, justamente por causa disso – não deixa de falar também à mente, penetrando nos corredores mais sombrios de nos- so subconsciente, onde se ocultam as taras e os desejos inconfessáveis.

Mojica em Sitges, na Espanha

O Cinema de horror clássico, de Caligari a Fu Manchu

O cinema fantástico registrou seus primeiros fotogramas ainda no século XIX, quando o prestidigitador francês Georges Méliès percebeu que o cinematógrafo era uma ferramenta apta a criar ilusão, e não um mero instrumento para capturar a realidade. Na década de 20, cineastas alemães, imersos numa sociedade obcecada por temas mórbidos em decorrência da presença constante da morte durante a Primeira Guerra Mundial (1914-18), levaram às telas uma estética do macabro. O período expressionista viu surgir a estrutura básica do filme de horror, em narrativas sobre maníacos homicidas, pactos diabólicos e a personificação da Morte, enquanto mostrava a luta do homem comum para derrotá-la. O gênero de horror, porém, só pode ser reconhecido como tal a partir de 1931, com as produções norte-americanas do estúdio Universal. O primeiro importante ciclo de filmes de horror consagrou ícones como o austrohúngaro Bela Lugosi (Drácula, 1931) e o britânico Boris Karloff (Frankenstein, 1931). Tais obras, recebidas inicialmente como meros veículos escapistas para assustar crianças, ao contrário da alegre alienação representada pelos musicais românticos do período da Depressão, refletiam de maneira cínica o lado mais sombrio da alma humana. Compulsivos, fetichistas e até mesmo necrófilos, os filmes desse período retratam “monstros” atormentados por sentimentos bastante humanos. Angustiados e rejeitados, vítimas da intolerância e da incompreensão, tais excluídos desejam a aceitação de uma sociedade que, de certa maneira, é responsável, ela própria, por seu surgimento. A estética gótica da Universal e a objetividade das histórias em quadrinhos de horror publicadas na década de 50 seriam as principais referências na criação de Zé do Caixão. Dos clássicos de horror do estúdio americano, Mojica absorveu a atmosfera gótica (a qual ganha traços barrocos devido aos exageros dramáticos do protagonista), enquanto a narrativa dinâmica evoca o ritmo das HQs. A bruxa que alerta os espectadores do cinema a abandonar a sala de projeção caso não sejam corajosos o bastante para assistir ao filme, no prólogo de À meia-noite levarei sua alma, resgata não apenas as figuras dos mestres-de-cerimônias que introduziam as histórias em quadrinhos da EC Comics, mas também a cena de abertura de Frankenstein, da Universal – esta, por sua vez, inspirada nas três bruxas do prólogo de Macbeth (1605), tragédia de William Shakespeare. Imbuído desde o início de uma filosofia clara e direta – encontrar a mulher ideal, capaz de lhe dar o filho perfeito –, Zé do Caixão crê na força do sangue, como o conde Drácula, e anseia por criar o ser superior, como o doutor Frankenstein. Outras duas produções da Universal podem ter inspirado o cineasta brasileiro: assombrado pela imagem que vira na infância – de Karloff no papel do sádico carrasco Mord, pisoteando um menino no clássico A torre de Londres (1939) –, Mojica decidiu caracterizar Zé do Caixão como defensor das crianças e de sua inocência. Em Esta noite encarnarei no teu cadáver, o temido agente funerário ganha a companhia de um submisso assistente, corcunda Bruno, ecoando o vingativo Ygor, interpretado magistralmente por Lugosi em O filho de Frankenstein (1939). Concebido como um vilão secundário, o corcunda de pescoço quebrado ganhou importância durante as filmagens e viria a ser o papel mais elogiado da carreira de Lugosi. O personagem voltaria em muitos outros filmes. O filme que traz as semelhanças mais flagrantes com o universo de Zé do Caixão, contudo, é uma obra a que, possivelmente, Mojica jamais tenha assistido: trata-se de A máscara de Fu Manchu (1932), estrelado por Boris Karloff e produzido pela Metro-Goldwyn-Mayer. O filme apresenta o doutor Fu Manchu, a “ameaça oriental”: vilão ganancioso com ameaçadoras unhas compridas. Instalado confortavelmente em sua sala do trono, ele comanda torturas extravagantes usando cobras e aranhas vivas, auxiliado por assistentes submissos. Num de seus experimentos sádicos, Fu Manchu bestializa um homem culto por intermédio da privação de água e comida, idéia semelhante à do episódio final do longa O estranho mundo de Zé do Caixão.

O declínio do Império Americano

Às portas da Segunda Guerra Mundial, o cinema de horror americano – em especial o ciclo produzido pela Universal – aproximava-se do esgotamento de sua fórmula, reduzida a um pastiche de idéias outrora inovadoras. O gênero, enfraquecido por um período de completo banimento devido às restrições morais impostas pelo código de produção dos estúdios americanos (o famigerado Código Hays), iniciou seu declínio na segunda metade dos anos 30 e, no começo da década seguinte, beirava a irrelevância. O filho de Drácula (1943), estrelado por Lon Chaney Jr., é apenas um entre tantos exemplos redundantes da saga dos chamados “monstros da Universal”. Exceto pelo interessante tratamento do tema da paixão mórbida, o filme desperta pouca atenção, mas merece ser citado pelo fato de sua trilha sonora, composta por H.J. Salter, ter sido reaproveitada por Mojica na abertura de À meia-noite levarei sua alma, duas décadas mais tarde. O nome do vampiro – Alucard, ou “Drácula” escrito de trás para frente – também pode ter inspirado Mojica a criar Oaxiac Odez, em O estranho mundo de Zé do Caixão. Representante do gênero, na década de 40, é o ciclo de filmes de horror psicológico produzidos por Val Lewton para a RKO. Elegantes, estilizados e repletos de metáforas sexuais, tais obras – Sangue de pantera (1942), A morta-viva (1943) e Asilo sinistro (1946), entre outros filmes – ofereciam uma rara abordagem adulta e simbolista para um gênero que parecia condenado ao pragmatismo narrativo. A ilha dos mortos (1945), um dos melhores longas do ciclo, atinge seu clímax com a cena na qual uma suposta defunta – na verdade, uma moça vítima de catalepsia – levanta-se do túmulo. Nessa época, meados da década de 40, Mojica testemunhou um caso semelhante, ao ver um morto despertar, dentro do caixão, em pleno velório. A catalepsia transformou- se em obsessão no cinema de Mojica, que abordou o tema pela primeira vez em “Pesadelo macabro”, episódio de Trilogia de terror com roteiro de Rubens F. Lucchetti e influenciado pela obra de Edgar Allan Poe, que retorna em Finis Hominis – desta vez em uma tradução quase idêntica do acontecimento que tanto impressionou o cineasta na infância. Completamente varrido das telas norte-americanas nos últimos anos da década de 40, o gênero de horror é substituído no início da década seguinte pela ficção científica da era atômica. O interesse popular por temas contemporâneos, como a energia nuclear e os discos voadores, dá início a um período dedicado a histórias de mutações genéticas e alienígenas. Insetos de dimensões colossais – formigas, aranhas, gafanhotos e até um louva-a-deus – preenchem as telas em som estereofônico, fotografia tridimensional e formato de tela larga. São essas as inovações técnicas que lutam para tirar as pessoas da frente da televisão, a coqueluche do momento. Esses filmes são a princípio direcionados ao público juvenil, que começa a apresentar algum poder aquisitivo próprio e torna-se um grupo consumidor digno de atenção. Quase sempre ingênuos e simplórios, com enredos minimalistas e a dose necessária de efeitos visuais e ação explosiva, os filmes de sci-fi do período abastecem os cinemas drive-in, freqüentados em maior parte por adolescentes e casais de namorados, nem sempre concentrados no que acontecia nas telas. Os filmes, às vezes assumidamente obtusos, costumam mostrar a força militar americana como salvadora da pátria, erradicando a ameaça inimiga ao final da história. Alguns poucos tratam com cinismo dos problemas gerados pela radiação, porém sem se aprofundar no tema. O pós-guerra é cenário de um quase neo-romantismo, no qual os avanços da Ciência voltam a ser tratados como tabu e, como conseqüência, os homens de jalecos brancos tornam-se vilões, modernos “doutores Frankenstein” questionados moralmente por violar as leis da Natureza. Enquanto isso, no Brasil, José Mojica Marins não está interessado em explosões atômicas nem tampouco em discos voadores: seu primeiro longa-metragem profissional, realizado no inédito formato GiganTela, é o faroeste A sina do aventureiro, no qual o diretor pôde dar vazão ao seu talento de compositor – considerado por ele próprio seu maior dom artístico –, recheando a película com canções de sua autoria.

Horror sem fronteiras

O cinema de horror parece condenado ao desaparecimento quando, na segunda metade da década de 50, eclode uma nova onda de produções, oriundas de diversos países europeus e asiáticos, além de aparecerem representantes mexicanos e argentinos. Tais filmes esbanjam vigor e pujança, em oposição ao infantilizado cinema norte-americano. Com eles, em um curto espaço de tempo, o gênero horror atravessa um intenso processo de internacionalização, alterando o mapa-múndi do gênero. As produções da companhia cinematográfica britânica Hammer injetam cores vivas em releituras agressivas de Frankenstein e Drácula, estrondosos sucessos de bilheteria, que não apenas revelam os talentos de Peter Cushing e Christopher Lee, como também temperam, com sexualidade per- versa, enredos clássicos do horror. O gênero floresce também no ressurgimento de cinematografias de países em processo de reconstrução, após a Segunda Guerra Mundial (1939-45), desfalcados de grande parte de seus talentos, que haviam se refugiado em Hollywood nas décadas anteriores por conta do conflito. O francês Georges Franju inaugura o moderno cinema de horror em seu país com o poético e melancólico Os olhos sem rosto (1959), sobre um cirurgião obcecado em restaurar o rosto desfigurado da filha. Ele apresenta a primeira cena no estilo splatter, ao mostrar com realismo explícito a pele sendo retirada da face de uma paciente. O cineasta espanhol Jesus Franco segue os passos do colega francês ao dirigir Gritos en la noche (1962), primeiro filme de horror feito em seu país. O enredo é similar ao do filme de Franju, também sobre experimentos macabros de um cirurgião – o indefectível doutor Orlof –, que tenta reconstruir a face da filha. Nesse filme, porém, o enfoque é efusivamente fetichista, em especial na figura do assistente cego e corcunda, Morpho, que abusa das vítimas seminuas abandonadas na mesa de cirurgia após cada operação. É também um médico louco o vilão do extravagante Satã e a mulher nua (1959), longa de Victor Trivas, que retoma a tradição do horror na Alemanha, inclusive empregando técnicos do período expressionista. O gênero seria também reforçado pelo ciclo de krimis – populares filmes de suspense adaptados da obra do escritor pulp Edgar Wallace. Nas Américas, a tradição da Universal ainda era a principal referência do cinema de horror. A Argentina, já em meados dos anos 50, investia em uma prolífica e bem-sucedida série de películas de horror. Todavia – a exemplo dos ingleses –, a temática dos filmes se restringia ao estilo gótico, com versões de livros clássicos como O médico e o monstro e O fantasma da ópera, além de O mestre do horror (1960), filme em episódios com adaptações de contos de Poe que antecipou o ciclo conduzido por Roger Corman, nos Estados Unidos. O fértil cinema mexicano acompanhou a tendência, inicialmente com fitas de vampirismo, em 1957, para depois investir no subgênero dos lutadores mascarados. Chama a atenção o absoluto não-convencionalismo do bizarro O barão do terror (1961), de Chano Urueta, sobre um satanista, condenado à morte por inquisidores espanhóis no século XVII, que retorna do além na cauda de um cometa, transformado numa criatura que se alimenta de cérebros humanos. Mojica jamais viu esses filmes, assim como desconhece o maestro italiano Mario Bava, que começou como assistente de Riccardo Freda em Os vampiros (1956) e estreou na direção com o necrófilo A maldição do demônio (1960). Nem por isso, contudo, a obra do brasileiro deixa de dialogar com os equivalentes estrangeiros. Zé do Caixão é a soma da obsessão pela criação por meio da destruição, retratada na obra de Franju, com o erotismo perverso e assumidamente voyeurístico de Franco, temperado com o sangue do grafismo exacerbado do norteamericano Herschell Gordon Lewis, o precursor do horror gore – caracterizado pelo mau gosto extremo em cenas de esquartejamento filmadas em cores vivas. Amadorístico, risível, e ao mesmo tempo desconcertante em sua convicção (ao retratar de maneira quase documental as atrocidades de um maníaco determinado a eviscerar moças indefesas), Banquete de sangue (1963), filme-testamento de Lewis, antecipa em apenas um ano as cenas do dedo amputado e dos olhos vazados de À meia-noite levarei sua alma. Surgido de um pesadelo de seu criador, Zé do Caixão teve a mesma origem de outros protagonistas importantes do horror, pois os personagens de Frankenstein, Drácula e O médico e o monstro também são frutos do inconsciente atormentado de seus autores. A exemplo de outros “monstros” clássicos, Zé é um emissário da morte e espalha temor por onde passa. Sua atividade como agente funerário, no convívio constante com defuntos, torna-o não somente um iconoclasta descrente do sobrenatural e da imortalidade do espírito, como também consciente da finitude de sua existência. Se, por um lado, ele zomba dos supersticiosos e age com indiferença durante os enterros, por outro, tornase obcecado em perpetuar sua linhagem. Enquanto Mario Bava ousa anunciar o número de vítimas no título de Sei donne per l’assassino (1964), Mojica apresenta o elenco na abertura de À meia-noite levarei sua alma por meio das cenas de suas respectivas mortes. A narrativa, parcialmente derivada do faroeste, evita o óbvio: não há oponente à altura de Zé do Caixão, e o casal de “heróis” morre antes da metade do filme. Os crimes cometidos pelo vilão não têm finalidade científica, como ditam as regras tradicionais do horror; de fato, não sabemos sua formação, ao contrário dos doutores Fu Manchu, Orlof e Frankenstein. Não há nobreza na motivação de Zé do Caixão; seus atos servem somente para reafirmar sua superioridade em meio a uma sociedade enfraquecida pela ignorância. Há quem argumente que a evolução narrativa de À meia-noite levarei sua alma propõe uma parábola moral, partindo das blasfêmias proferidas por Zé do Caixão e culminando com o castigo além-túmulo. A questão é menos pontual: o filme, de fato, se vale da receita básica do con- to de horror; este, sim, de caráter conservador por definição. Exceções existem, obviamente, prontas para confirmar a regra, mas a receita tradicional do gênero se vale da noção de que vivemos em um mundo ideal, e que qualquer manifestação estranha precisa ser eliminada. Assim, Zé do Caixão representa uma ameaça e deve ser destruído ao fim da história, para nos devolver ao mundo seguro em que vivemos e que placidamente aceitamos como perfeito. Graças a essa “lógica”, quase todos os filmes podem ser interpretados tanto como conservadores quanto como libertários, dependendo da apreensão do espectador.

Delírios de um tarado

O rompimento definitivo com a narrativa formal, na obra de Mojica, acontece com O despertar da besta (Ritual dos sádicos) a incisiva ópera urbana que situa Zé do Caixão em uma dimensão mágica, como um ser intangível e onipresente, no Tudo e no Nada, numa espécie de tradução em celulóide do movimento Tropicalista, transformando acid trip em egotrip. Petulante e grandiloqüente, o longa abusa do metacinema subversivo para compor um Zé do Caixão mais alucinógeno que o LSD, mais delirante que o rock psicodélico, mais transgressor que o Teatro Oficina e mais violento que a polícia. Se Hitchcock utilizava a câmera como instrumento de manipulação de seus medos e obsessões, Mojica a empunha como uma ferramenta de agressão àqueles que o tratam como ignorante e iletrado. Em À meia-noite levarei sua alma, ele zomba do povo supersticioso; em Esta noite encarnarei no teu cadáver, vinga-se da baixa-burguesia. À época de O despertar da besta, quando tortura, espancamento e homicídios arbitrários – terrores típicos de um Zé do Caixão – haviam se tornado práticas oficiais do Estado, o personagem ascendeu à categoria de ser inatingível. Ego e alter-ego novamente se defrontam em Exorcismo negro, o melhor dos filmes derivados do arrasa-quarteirão O exorcista (1973), de William Friedkin. Em meio a imitações surgidas em países como Itália, Espanha, França, Alemanha, Portugal, Turquia e Índia, o filme de Mojica ousa trafegar além da premissa do original americano, e, enquanto os demais tecem parábolas religiosas de submissão à estrutura familiar tradicional, o brasileiro prefere construir uma alegoria acerca do processo criativo do artista, submetendo- o à superioridade da criatura. O confronto voltaria a se repetir no filme-colagem Delírios de um anormal, antecedendo o formato de Un gatto nel cervello (1990), de Lucio Fulci, e de O novo pesadelo: o retorno de Freddy Krueger (1994), de Wes Craven, filmes com semelhanças óbvias com a obra de Mojica. José Mojica Marins, o “tarado do celulóide”, não se limitou a construir uma obra que merece constar entre as mais inventivas do cinema fantástico mundial; ele é também um dos raros realizadores do horror a expressar em filme algumas de suas obsessões mais íntimas, de seus pesadelos mais atormentados. Pode ser comparado, talvez, apenas a Jodorowsky, Bava, Argento e Lynch, artistas que expressam idéias em imagens perturbadoras que só podem ser descritas como surrealistas, mas que, a julgar pela convicção com que foram levadas às telas, são na verdade um retrato realista de como o artista enxerga o mundo e nos convida a adentrar seu mundo. E, por mais estranho que nos pareça, o convite é irrecusável.