Portal Brasileiro de Cinema  A última crônica

A últmia crônica

José Mojica Marins

Caro leitor, quero deixar bem claro que, com o meu ato errado de espreitar a vida do outro, mesmo que por egoísmo, esse mal pode se tornar um bem, pois na verdade vou trazer à tona a vida de um canalha, de um cafajeste banhado na podridão dos desgraçados.

A minha visão pode ajudar os seres deste planeta a banir do nosso convívio um imprestável. Sim, ele é como uma laranja podre que pode contaminar as outras ao seu redor, por isso merece ser odiado como os romanos que levaram Cristo à crucificação; ou como os hipócritas e carrascos que mataram a guerreira Joana d’Arc nas horrendas dores de ser queimada viva.

E, agora, com tantas perversões que eu sinto em seu ser, assumo a missão de tirar um monstro perigoso e sanguinário da nossa querida Terra. Eu me coloco no palco da vida como mero espectador; com isso, acredito que mereço um voto de confiança por confessar ao mundo que sou um covarde enrustido, mas desconfiado.

Durmo com o olho aberto e sou muito curioso. Confesso também que sou tímido e analfabeto, mas uma coisa é certa: sou conciso no que falo e tenho forças redobradas para ver a vulgaridade do outro. Vou ser bem transparente: sinto inveja, ciúmes, despeito e ódio, mas tenho muita audácia para confessar essas fraquezas. Infelizmente minha índole não me deixa negar nem mentir, e isso pesa a meu favor na balança da verdade.

O que meus olhos vêem meu coração sente. Acompanho os atos dele desde criança, quem sabe essa obsessão pela sua vida é uma espécie de fuga por eu me sentir inferior, um verme.

Ele quer viver, fazer seu destino, mas eu não me conformo. Ele é pequeno, magro e anêmico, sente o sofrimento dos pais, não quer ser mimado, ainda criança socorre os mais fracos, desafia os mais for tes, respeita seus pais e sofre com eles pelo amor que é recíproco. Este não é seu mundo, me pertur ba demais...

Ele é um fracote e torna-se um guerreiro; devia ser um perdedor, mas é um vencedor; renega a infância, despreza sua própria adolescência e convertese em adulto no seu modo de pensar; cai de um avião e continua vivendo; lidera os mais fortes, supera os fracassos, persiste na luta, é atropelado e escapa da morte. É demais para mim.

Ah...! Que bom. Finalmente, a justiça divina. É isso mesmo, o mal se corta pela raiz. Com sua audácia, ele foi castigado, caiu na mão de um bando de marginais. Há... Há... Há... Há..., vai ser capado! Que coisa maravilhosa! É aí que começa a minha recompensa por desmascarar um falso ídolo.

Não, não... Isso não pode estar acontecendo... Com sua esperteza, ele conquista os violentos mar ginais, ajudando no parto do filho do assustador líder dos bandidos.

Agora a favela toda o tem como herói, e ele ganha a simpatia dos moradores de bairros vizinhos.

É o orgulho dos pais, é o líder dos líderes. É estranho, muito estranho: ri com as dores, comemora o fracasso, não tem depressão nas batalhas perdidas, é o centro de todos, dos anões aos gigantes, de jovens e idosos. Não! Não suporto esse quadro, ele mente, e é contra a mentira, pois o que importa em seu ego é ver o seu semelhante feliz. Comemora o próprio infortúnio, traz forças aos outros, mas chora por dentro; por fora é frio, orgulhoso e irônico e leva na mente a dor do insucesso. Ah! Estou para explodir. Tomei a decisão: esse ser precisa morrer!!!

Um momento, meus ais foram ouvidos: ele foi pre- so. Preso e inocente, ele é torturado. É isso mesmo, matem esse verme... Que instante glorioso, tenho que rir. Que felicidade imensa! Valeu esperar. Por favor, espere. Ele foi liberado, e perdoa seus carrascos. Há... Como invejo este ser que se torna polêmico, enfrenta o medo, desafia a morte e agora é o orgulho do bairro, é um exemplo de gente.

Não precisa de ensino, pois é um autodidata. Sofre no espírito e na carne, mas mostra para todos que é um ser inferior. Mentira! Mentira! Ajudem-me a matá-lo com uma tortura sem fim. Ele agora já é moço, despreza o direito à vida, ao viver... Prega mensagem para que todos aprendam a viver. Não importa iludir, fantasiar ou mentir, para ele só impor ta ver os outros felizes.

Não há palavra para descrever a sorte desse parasita, que embarca na área de comunicação e sem perceber segue à risca o ditado tão conhecido de que “Deus escreve certo por linhas tortas”. Ele subiu no pódio do sucesso nacional, domina a televisão, o rádio, as revistas e o cinema; faz coisas como se fosse um débil mental e é visto como um imperador. Pessoas oferecem a vida por ele, e essas loucuras fazem com que seja aplaudido pela crítica e pelo público em geral.

Enriquece os inimigos e é perdoado pelos amigos pobres. Tem o total descontrole comercial e passional, e é visto como um ser puro, ingênuo, inocente e justiceiro. Fãs, adeptos, discípulos, a cada ano aumentam mais. Por fim, a igreja, a censura e a ditadura o fazem parar, tiram dele tudo o que plantou.

Há... Finalmente, agora estão agindo certo, colocam drogas em seu local de trabalho e o acusam de traficante (coisa que ele não tem idéia do que seja). Conseguem uma vadia, menor de idade, e o culpam por estupro. Alegria! Alegria! Minha barriga dói de tanto rir, eu sei que ele é inocente, mas o que interessa é que ele foi preso, maltratado e humilhado. Para mim, é uma satisfação fenomenal; valeu a pena esperar.

Consegui! Consegui! Aleluia! Aleluia!... Ele chora... como é delicioso ver suas lágrimas caírem no chão. Ele sofre demais, pois esse ato matou seu protetor e querido pai. Há... As mulheres já não o veneram. Que coisa fantástica, ele está caindo de bêbado, virou um alcoólatra. Viva o diabo que me ajudou nesta obra! Como é gostoso gargalhar com a desgraça e a queda de um ex-poderoso.

Não! Não pode começar outra vez. Vejam, ele volta a ser um homem glorificado, persiste em sua luta, é aplaudido por uns e injustiçado por outros; isso o torna polêmico na boca dos outros. Para mim é demais, pois não posso imitá-lo e sofro por isso. As mulheres voltam a ajudá-lo e sua mãe a lhe dar forças, mais do que ele já tem. Ele começa a formar uma nova geração de amigos, seu nome começa a se espalhar pelo mundo, e vários países o elogiam. Ele agora está muito mais forte do que antes. Não agüento tanta badalação em torno dele, para mim é um pesadelo que não tem fim, ele terá de pagar muito caro por essa tortura mental.

Não acredito no que está acontecendo! É a suprema recompensa por esta angustiante espera. Ele teve um infarto aos 40 anos, e é levado ao hospital... Oh! Oh! É bonito demais, que romântico que é... Agora, é uma parada cardíaca! Preparem um bolo para mil indigentes e com muito champanhe!! Toda essa comemoração é por minha conta. Finalmente seu corpo vai para os vermes do cemitério, e eu quero cuspir no túmulo desse crápula. Mas o que é isso?! Os médicos conseguiram salvá-lo?! Sua fama aumenta mais, e são milhões os seus seguidores, todos fiéis ao seu pensamento.

Por que a vida é tão cruel comigo?! Esse imbecil consegue tudo; até driblar a própria mor te. Agora é visto como profeta, sábio e gênio, comparado a todos os grandes personagens que passaram pela Terra. Eu tenho razão quando descrevo essas linhas como a última crônica, pois sei que existem pessoas que gostariam de se unir a mim, e, por uma razão que não compreendo, consigo acompanhar todos os seus passos sem que ele me veja.

Estou sozinho, mas se eu tiver alguns aliados comigo com certeza teremos a grande vitória: livrar a humanidade desse sanguessuga em forma de ser humano. Não é possível! O cara deve ter poderes sobrenaturais, pois não deixa eu me armar e já parte para outra.

Aos 50 anos, ele conhece um jovem estagiário de jornalismo; esse mesmo jovem viria, mais tarde, a se tornar em um dos maiores jornalistas do Brasil, seu fã e seu amigo.

O jornalista fez com que o sortudo persona- gem – centro desta crônica – conquistasse a América, com isso o mundo todo tomaria conhecimento de suas obras. Quase baqueei com o acontecimento, mas o destino me ajudou a eliminar essa escória pestilenta, razão de todo o rancor que me deixa em confl ito, pois me tornei sua sombra, e o inferno é pouco para sua desgraça. Eu sou a prova concreta de que a missão desse maldito vai chegar ao seu fim. Exatamente nos seus 60 anos, sua mãe está doente e ele sofre demais. Agora o sofrimento é maior – ela partiu para uma outra dimensão.

Agora não tem retorno. Ele perdeu sua força maior, está decaído, o mundo o aplaude, mas ele está cego e muito cansado. Só há ingratidão, ele perde a vontade de viver. Agora quem vai aparecer sou eu.

Oh... Deu zebra novamente! Desde o início não que- ria falar, mas, como eu disse, não quero mentir. Suas ex-companheiras o ajudaram, seus filhos – sete no total – lhe deram muita força e, por incrível que pareça, ele quer chegar aos 13 filhos. Já tem onze netos e ele quer ver esse número duplicado.

Entram em cena os amigos fiéis: Serkeis, o egípcio; Barcinski, o americano brasileiro; Palácios, o comunicador; Lima, o rei do pornô; Finotti, o detetive; Primati, o pesquisador do inexplicável; Puppo, o pesquisador do que passou, e muitos e muitos outros. Sua vida promíscua, de envolvimento com meninas volúveis e maldosas, está encerrada. Não posso negar que ele é um homem de sorte: conseguiu uma companheira jovem e digna que segue ao seu lado até hoje.

Há... Espere, a fera está domada! Ele chega aos 70 anos, dores por todos os lados, cansaço insuportável, seus olhos doem... e os médicos não descobrem a causa, sua visão diminui demais. Agora não tem retor no, é o fim... Ele vai ser abandonado, pois é um peso morto, e vai ficar só. Sua alma padece em vida. Há... Como é doce o sabor da glória!

Não é possível... Aconteceu outra vez: novos amigos se aliam a ele. Ramalho, o sonhador sinistro, e Sacramento, o cinéfilo comerciante. E ele realmente tinha um curinga na manga para a cartada final: persistência e força de vontade. E, com isso, consegue realizar um sonho de 40 anos, fazer o maior clássico de horror da América Latina: Encarnação do demônio.

Ele mostra ter mais energia do que toda a equipe técnica e artística, na faixa dos 30 anos. Recebe todas as honrarias possíveis, do Brasil e do exterior. É difícil de acreditar, mas acontece: ele chega aos 71 anos. Está ultrapassado, deveria estar no ferro-velho, pois velho é traste, não serve nem para museu. É inexplicável: garotas jovens e bonitas disputam esse monstrengo. Mas a fiel companheira, que é jovem e bela, também não deixa de ampará-lo, precisamente agora que, mais do que nunca, ele está recebendo a maior homenagem que um cineasta pode ter no Brasil, feita por pessoas de alto nível profissional. O eco desse evento ressoa pelo mundo todo...

Para ele, tudo é esplendor. E agora eu penetro num túnel tenebroso. Não é possível, é fantástico demais... Estou acuado na parede do destino. Ele olha para mim e pede minha ajuda. E, só agora, no espelho da vida, olho a minha imagem; ele sabe da minha existência.

Agora visualizo a verdade, cruel verdade. O homem da minha inveja, do ódio e do despeito é o final da minha essência; pois descubro, em minha mente, que esse homem sou eu!