Portal Brasileiro de Cinema  Zé do Caixão: O pesadelo que deve sobreviver

Zé do Caixão: O pesadelo que deve sobreviver

Tim Lucas

Esta noite encarnarei no teu cadáver (1965-66)

José Mojica Marins é um dos verdadeiros representantes do cinema fantástico independente, um cineasta realmente singular e uma das personalidades mais marcantes do gênero. Trabalhando em parceria com o cinegrafista Giorgio Attili e com o montador Luiz Elias, os primeiros trabalhos de Mojica não eram violentos, mas eram violentamente originais. Esses filmes são únicos no mundo; eles gritam, revolvem-se e choram como as regiões mais obscuras do hospício onde vivem nossos sonhos.

Moro e trabalho nos Estados Unidos, onde os filmes de Mojica não são muito conhecidos. Mas, hoje, eles começam a ser cada vez mais venerados por um público cult de entusiastas que só quatro décadas depois dos primeiros trabalhos tem acesso a eles. Para ser sincero, sabemos pouco sobre o cinema brasileiro nos Estados Unidos, e menos ainda sobre a história do país. Por isso, mesmo os filmes brasileiros mais famosos significam pouco para nós, sociologicamente falando. O principal apelo dos filmes brasileiros são a qualidade alienígena, a estranheza exótica, o brilho solar e a sensualidade. O trabalho de Mojica, com toda certeza, não tem nenhum brilho solar ou um erotismo particular, o que o aproxima da obra do italiano Mario Bava – que, como Mojica, conta histórias de horror retiradas das sombras de seu país solar.

Antes de qualquer um de nós, nos Estados Unidos, termos contato direto com um filme de Mojica, líamos sobre eles. Para nós, o germe da “febre Mojica” foi espalhado pela Encyclopedia of Horror Films, de Phil Hardy, publicada pela primeira vez em 1986. Algumas das imagens mais famosas dos filmes de Mojica apareceram rapidamente em livros e revistas, mas, antes da enciclopédia de Hardy, elas não vinham acompanhadas por nenhuma informação substancial. Mesmo que Hardy e seus colaboradores tenham sido muito duros no julgamento dos filmes, a descrição que fazem é ultrajante e, por isso mesmo, sedutora. Sobre Esta noite encarnarei no teu cadáver, por exemplo, a enciclopédia diz que se trata de “uma produção barata que transpira um genuíno senso de loucura, tanto nas imagens como no tratamento dos protagonistas, com cenários que parecem variar descontroladamente do patológico ao surreal”. Ler uma coisa dessas no ambiente cada vez mais estéril e insosso do cinema de terror americano da década de 80 nos deixava com um desejo feroz de achar e ver o trabalho desse gênio louco. E encontrar esses filmes não era fácil.

Consegui minhas primeiras fitas dos filmes de Mojica em cópias piratas de VHS, que, aliás, foi a maneira como toda a primeira geração de seus fãs americanos os viu: com uma qualidade ruim e em português, uma língua que não líamos e nem falávamos, o que os deixava ainda mais oníricos e exóticos – a descoberta de algo por muito tempo proibido.

A partir da intervenção de André Barcinski, o trabalho especial de Mojica teve uma guinada do vídeo underground para as mãos da Something Weird Video, uma empresa subversiva de Seattle que já havia ressuscitado os trabalhos de Herschell Gordon Lewis, Doris Wishman, David F. Friedman e de muitos outros desbravadores dos filmes caseiros pirateados. O proprietário da companhia era Mike Vraney, provavelmente o único verdadeiro showman que o mundo do VHS já teve. Ele achou que os filmes de Mojica precisavam de uma força para ultrapassar os obstáculos culturais que se erguem com tanta freqüência entre os espectadores americanos e o cinema internacional. Acredito que tenha sido idéia de Vraney a tradução de Zé do Caixão para Coffin Joe – um nome que, para os ouvidos americanos, não é apenas palatável, mas está integrado a tudo que ele tinha para oferecer na sua própria tradição cultural do horror. Para esse demônio, ter um apelido o colocou ao lado de outras figuras cult adoradas dessa mesma época: Uncle Forry (Forrest J. Ackerman, editor do Famous Monster of Filmland), Ed Big Daddy Roth (o homem por trás do Rat Fink, dos carros futuristas e das camisetas com estampas de monstros) e Brother Theodore Gottlieb (nosso comediante mais macabro e pirado).

Com certeza, vários aspectos do trabalho de Mojica são estranhos à percepção americana – sua sensibilidade carnavalesca, sua alegria sádica, a obsessão com a procriação –, mas mesmo assim vai de encontro a algumas tradições americanas, notavelmente a do western. Como a maioria dos westerns, a história de À meianoite levarei sua alma se passa em um pequeno e velho vilarejo com um cemitério, e uma das primeiras cenas mostra Zé do Caixão entrando em uma taverna, ofendendo os outros com sua mera presença e batendo em um homem, até sua completa submissão – numa adaptação tenebrosa das tradicionais brigas de saloon do Velho Oeste. Um aspecto importante do trabalho de Mojica, em especial nos filmes do Zé do Caixão, é a influência que ele sofreu dos westerns americanos, e (talvez mais importante ainda) do radicalismo psicodélico e barroco dos westerns italianos do final dos anos 60.

Os antecedentes do personagem Zé do Caixão apareceram pela primeira vez na cultura americana nas transmissões radiofônicas de terror das décadas de 30 e 40. Foi aí que os personagens macabros deram o primeiro passo além das artimanhas narrativas com intenção de atrair ouvintes por meio de histórias de conteúdo assustador e horripilante. Talvez o mais antigo deles tenha sido The witch’s tale (1931-38, que passava no Old Nancy, witch of Salem), seguido por The hermit’s cave (meados dos anos 1930) e, o mais famoso de todos, Orson Welles como o bem-sucedido locutor e protagonista da série de longa duração The shadow (1937-54). É irrelevante se Mojica ouviu ou não essas gravações. Mas foi Welles que estabeleceu o arquétipo de um personagem com uma capa preta, morando na zona indefinida entre a Vida e a Morte, rindo da ignorância da platéia com relação às extravagâncias do Além e seu “privilégio tenebroso”, enquanto nos atormentava com questões existenciais. A apresentação dessas histórias de Welles era tão popular que, quando ele deixou o papel de Shadow, em 1938, para se aventurar em outros programas no rádio, outros atores seguiram seus passos.

Essas personagens repulsivas e irônicas, movendo- se no teatro da nossa imaginação, inspiraram depois os autores das famosas histórias em quadrinhos da década de 50: o Crypt Keeper de Thales from the crypt, o Vault Keeper de Vault of horror e o Old Witch de Haunt of fear – e depois a primeira geração do terror televisionado, Vampira (Maila Nurmi), Roland e Zacherley (John Zacherle) e o hilário Alfred Hitchcock de Alfred Hitchcock presents. Como disse antes, não sei como essas influências chegaram a alguém como o cineasta Mojica.

No documentário Demônios e maravilhas – um dos poucos filmes que eu vi que merecem a descrição de “espantoso” –, Mojica envolve a si mesmo numa espécie de jogo pessoal de tarô, abandonado à própria sorte, incapaz de levar adiante sua trilogia e, no entanto, decidido a celebrar e simultaneamente a lamentar sua batalha. O filme tira vantagem das desvantagens de Mojica, forjando um romance obscuro da opressão de que Mojica é vítima, graças a seus crimes e excentricidades, sua depressão, sua saúde debilitada, seus golpes, levando-nos até o momento de sua “quase-morte” – tudo enquanto

nos lembra de sua celebridade, da popularidade, de seus numerosos amigos e apoiadores, dos parceiros e da sua presença constante em jornais e revistas... Em resumo, de sua recusa em desaparecer. Assistindo a Demônios e maravilhas, é impossível (pelo menos para mim) identificar o quanto de sua história é verdadeira e o que é, francamente, papo-furado – trata-se de um incrível catálogo do narcisismo e das bravatas de Mojica. De um jeito ou de outro, ele sai ganhando: se o filme fala a verdade, ele se revela como expressão atordoante, ao mesmo tempo pura e vulnerável, do ego de um cineasta; se tudo for falso, como a cena da “quase-morte”, Demônios e maravilhas merece reconhecimento por ser uma obra de arte de metaficção, digna de comparação com os mitos Cthulhu dos contos de H. P. Lovecraft, protagonizados por seres fantásticos, e do próprio Orson Welles de F for fake (1974). É nesse momento que Zé do Caixão alcança sua terceira dimensão.

Lá se vão já mais de 20 anos de Demônios e maravilhas. Em uma fascinante mudança de paradigma, a luta de Zé do Caixão para gerar um filho e a luta de José Mojica Marins para completar a trindade profana do personagem aparecem como ponto de convergência. Consta que Encarnação do demônio será finalmente rodado e que Mojica encontrou um irmão gêmeo no jovem fã norte-americano Raymond Castile, que faz parte do elenco como o jovem Zé do Caixão – é a primeira vez que o próprio Mojica não representa o papel.

O personagem Zé do Caixão me parece ser a personificação de um pesadelo que deve perdurar. Nas suas duas primeiras aventuras, ele de fato está determinado a conceber um filho. Mojica vem prometendo a terceira parte da trilogia do Zé do Caixão, Encarnação do demônio, há mais de 40 anos; o filme tornouse o filho que José Mojica Marins tem de gerar. Os trabalhos feitos nesse intervalo serviram para fortificar a potência de Zé do Caixão como ícone e mito. A cada novo filme, Zé do Caixão torna-se menos ficcional e mais real; está determinado a não somente ter um filho, mas a transpor os limites do cinema, a passar da fantasia à realidade.

Tradução de Ricardo Lísias