Portal Brasileiro de Cinema  Depoimento de Nilcemar Leyart

Depoimento de Nilcemar Leyart

Concedido a Eugênio Puppo e Arthur Autran em 14 de maio de 2007

Nilcemar Leyart

Meu nome de batismo é Diomira Feo. Nasci em Salerno, na Itália, em 11 de maio de 1946. Desde que eu tinha 4 anos meus pais me colocaram para cantar. Eu cantava muito bem, e no navio, durante a viagem da Itália para cá, todo mundo queria que eu cantasse. Chegando ao Brasil, em 1953, minha mãe me inscreveu num programa chamado Clube Papai Noel, da TV Tupi. Nele, o maestro era o professor Francisco Dorse e o apresentador era o deputado Amércio Silva.

No cinema, comecei com o Mojica, mas eu já tinha feito muitas coisas desde pequena. Eu fazia televisão, cantava na antiga TV Paulista Canal 5, na Tupi, na TV Excelsior, isso tudo na década de 50. Foi na TV Tupi que fiquei sabendo de um cineasta chamado José Mojica Marins, que havia feito o primeiro filme de terror nacional. Fui ao estúdio dele pela primeira vez numa segundafeira, 5 de janeiro de 1965, com alguns colegas que na época também faziam televisão comigo – participávamos esporadicamente de alguns programas. Daquele dia, lembro-me de umas cobras enormes que ele colocava no corpo das pessoas para ver quem tinha medo. E eu logicamente tinha muito medo, mas continuei participando das reuniões que ele fazia duas ou três vezes por semana. Tudo o que eu aprendi em cinema foi com o Mojica. Fiz o curso da escola dele, e ali os alunos eram divididos em grupos pequenos. Era tudo baseado no método exclusivo do Mojica: o curso era prático e as pessoas se exercitavam na maior parte do tempo, fazendo encenações. Depois comecei a trabalhar no escritório da empresa do Mojica, na rua Frederico Abranches, onde ele tinha acabado de fazer À meia-noite levarei sua alma. Então nos mudamos para a rua Casimiro de Abreu, para uma sinagoga desativada.

O estúdio da sinagoga era imenso, e foi lá que fizemos Esta noite encarnarei no teu cadáver, todo ele filmado lá dentro. Já nessa época eu comecei a trabalhar como continuísta. Eu não queria ser continuísta, mas o Mojica me colocou na função. Também acompanhava as montagens, feitas pelo Luiz Elias. Aprendi várias coisas observando o trabalho dele e depois me tornei assistente de montagem. Acho que todo montador deveria começar como continuísta, porque é um trabalho de muita observação e um bom caminho para a montagem. Naquela época nós filmávamos sem áudio: sonorizávamos depois, e só então começava a montagem. Foi nessa época que eu passei a acompanhar a montagem com o Luiz Elias e a gostar do trabalho. O montador tem oportunidade de criar também por intermédio da montagem, melhorando algumas cenas. Você pode até mudar o final de uma fita na montagem. É um trabalho que você faz quietinha, na sala de montagem, não tem ninguém ali para te dizer “faça isso ou aquilo”, exceto o diretor.

Eu ficava observando tudo, porque era a primeira vez que eu estava entrando numa sala de montagem, eu nem sabia o que era, mas ficava vendo o Luiz Elias sentado naquela mesa grande, com uma telinha. Ele cortava aqui e ali, era um trabalho muito interessante. O Luiz era um rapaz engraçado, um pouco irônico, e ficava alegre dentro da sala de montagem. Nas outras vezes em que estivemos juntos, conversando, ele sempre se mostrou uma pessoa alegre. Foi realmente com quem mais aprendi sobre montagem; tenho muito o que agradecer a ele.

O Mojica me colocou como montadora por uma discussão que eu tive com o Eduardo Llorente durante O estranho mundo de Zé do Caixão. O Roberto Leme era o assistente e começou a ordenar o material para a montagem, depois passou para o Eduardo. A certa altura, já na montagem, o Eduardo avaliou que uma cena da segunda história, “Tara”, não dava montagem. Eu também tinha sido continuísta do filme, sabia que dava para montar a cena. Falei: “Se você pegar esse take aqui e encaixar antes desse e depois com esse, você vai ver que dá certo”. Então, ele encaixou o take no meio dos dois e deu certo. Quando o Mojica chegou, o Eduardo disse: “A sua assistente discutiu muito comigo hoje; eu fiquei chateado, mas ela me ensinou a montar”. Depois disso, Mojica me colocou para montar. Eu fazia a primeira etapa da montagem do filme, depois passava para o Luiz Elias ou então para a Jovita Pereira Dias, quando era ela a montadora, e foi assim que eu fui aprendendo. A cada trabalho eu fui aprendendo uma coisa a mais.

O primeiro filme que assinei como montadora foi A estranha hospedaria dos prazeres. Quem montou Finis Hominis fui eu, mas a montagem está assinada pelo Roberto Leme. Depois veio Quando os deuses adormecem, cuja montagem está assinada pela Jovita. Na realidade era eu quem fazia o primeiro corte. Com o tempo fui deslanchando e passei a montar os filmes do Mojica sozinha.

Delírios de um anormal tem várias cenas de outros filmes, que tinham sido cortadas pela censura. O Mojica reuniu essas cenas, juntou com outras que não tinham sido usadas antes e resolveu montar uma história nova. Nós encaixamos nela as cenas que haviam sido proibidas pela censura. O Mojica tinha de lutar muito para fazer os filmes. Como jogar todas essas cenas fora? Não! Decidimos fazer um filme novo com elas. O Mojica pensou na história e ordenou as cenas para compor o pesadelo do personagem, o psiquiatra que está enlouquecendo. O tempo passa, e o personagem vai tendo mais pesadelos, tudo com um jogo de imagens, mostrando o sentimento e a mente desse psiquiatra – a melhor parte dos cortes está entre os pesadelos. Foi um filme que deu trabalho para montar, porque a fita tem 4.800 cortes e algumas cenas têm oito fotogramas, mas conseguimos montar num tempo recorde: quatro meses.

Dos filmes que eu montei, gosto muito de Perversão e Manchete de jornal. O primeiro é um filme feminista, e eu gosto muito dele; a história é muito boa, o filme é muito bem-feito, o elenco está muito bom. O Manchete de jornal tem uma história dramática e um final chocante. Os dois filmes são muito bons.

Eu também montei filmes para outros diretores, como o Edward Freund, que já faleceu, para o Francisco Cavalcanti e para o Wilson Rodrigues. Do Freund, montei o Trindade é o meu nome (1973). O Freund era uma pessoa engraçada, descontraída, e você conseguia trabalhar bem com ele. O Cavalcanti deixava por conta do pro- fissional; ele respeitou o meu trabalho. O mais exigente foi o Rodrigues, que era um eterno perfeccionista: muitas vezes dedicava um tempo enorme para fazer o ruído de uma cadeira – tinha de ser exato. Gastava um bom tempo no estúdio de sonorização até que o ruído saísse exatamente como que ele queria; mas eu achava que ele se prendia muito a essas coisas que, na minha opinião, não mudariam a história do filme. Eu acompanhava a dublagem – também sou diretora de dublagem –, e depois da dublagem a fita voltava para o montador, para a moviola, onde eu ia sincronizar os diálogos. Acompanhava também quando iam ser feitos os ruídos; acompanhei porque em muitos filmes fiz também a seleção musical. Então, eu acompanhava até a cópia do filme sair para o cinema.

Fiz um pouco de cada coisa nos filmes do Mojica. Fiz a fotografia de cena de Delírios de um anormal e em Demônios e maravilhas. No Inferno carnal também fiz maquiagem – a gente fazia um pouco de cada coisa. Em Demônios e maravilhas, participei ainda como atriz, representando eu mesma. Foi um trabalho que acabou pendendo mais para o documentário, porque não tem diálogo. Na verdade tem um ou outro porque o garoto que era continuísta simplesmente desapareceu, com todas as fichas de continuidade, então não tínhamos nem um diálogo sequer. Quando fomos montar o filme não havia condição de dublar, tínhamos de ver o movimento labial de todos os atores. O Mojica teve a idéia de fazer tudo com narração, e nós dois narramos.

Dentre todos os filmes do Mojica, destaco o Finis Hominis pela filosofia, pela mensagem. O Finis é um personagem muito diferente do Zé do Caixão. Declarei uma vez que eu não gosto do personagem do Zé do Caixão; eu nunca achei legal a filosofia dele, eu nunca iria querer um Zé do Caixão do meu lado, não mesmo. Ele é extrema- mente violento, machista, radical: é um homem sem crença, que difere muito da filosofia que eu tenho. Depois de 42 anos de convivência com o Mojica, posso dizer que ele é muito diferente do Zé do Caixão. Este não tem medo de nada, mas

o Mojica tem medo de muitas coisas, tem medo de morrer. O Zé do Caixão é extremamente radical, o Mojica não. O Mojica é uma pessoa extremamente humilde. Uma série de coisas diferencia o Zé do Caixão do Mojica. Muitos homens se vêem no Zé do Caixão; eu vejo que uma legião de homens trata as mulheres como o Zé trata.

Trabalhar com o Mojica na montagem é excelente. Ele explica como quer que a cena fique e aceita idéias. Ele é muito acessível, mas não tem paciência de ficar na moviola. Na primeira etapa da montagem a gente não faz o corte definitivo, só ordena: começo, meio e fim. Muitas vezes o corte final só é feito depois da dublagem.

O principal é ter precisão nos cortes. Saber cortar é muito importante, pois é aí que você dá movimento aos atores, atinge o alvo de uma cena. Às vezes é no corte que você consegue dizer alguma coisa. Por isso, eu acho que o montador precisa ter sensibilidade para pereceber a história que está montando; e eu sou assim, não sei trabalhar se não estiver muito envolvida com aquele trabalho que estou fazendo.