Ensaio

Maria Rita Kehl

 

Não sei se tenho algo a dizer especialmente sobre a Leila Diniz, pois na minha adolescência acompanhei muito pouco o que ela fez. Lembro-me de trechos da famosa entrevista do Pasquim, da foto dela grávida na praia, e poucas coisas mais. Nem cheguei a ver seus filmes enquanto ela era viva, e vi poucos depois. Prefiro contribuir comentando os anos 60 e 70, para então tentar situar a importância da mulher e da personagem – pois me parece que ela se transformou rapidamente em personagem de si mesma – na cena cultural brasileira daquele período.

Em meados da década de 60 a ditadura estava se afirmando e a partir do AI-5, em dezembro de 1968, se consolidou pra valer. Antes disso estava acontecendo uma explosão muito grande, muito interessante e muito fértil da produção cultural no Brasil, principalmente em São Paulo e no Rio. No cinema, no teatro, na música, enfim, tudo o que até 68 era muito forte foi interrompido. A partir de 1973/74, auge do autoritarismo, a ditadura começou a perder sua base de sustentação na classe mé dia – a crise do petróleo esvaziara um pouco o “milagre brasileiro”. A partir daí, os estudantes retomaram o movimento estudantil e alguns setores da classe média começaram a se mobilizar, iniciando o encerramento do longo ciclo da ditadura, que perdurou ainda até 1979/80, com o governo Figueiredo, quando já se falava em Constituinte, anistia, eleições diretas, etc. Esse pano de fundo político pode ter emprestado um sentido especialmente libertário à curta trajetória de Leila Diniz.

A ditadura polarizou a vida artística e intelectual brasileira e de toda a juventude, do final dos anos 60 a meados dos 70. Eram movimentos de expressão estética, na música popular, no cinema, etc, que estavam, digamos assim, dirigidos para um mesmo foco de atenção. Hoje por exemplo, também encontramos no Brasil uma produção cultural muito rica e diversificada, mas as ocorrências são pulverizadas, diversificadas e também bastante obscurecidas pelo rolo compressor da cultura de massa. Ao longo da década de 70, o autoritarismo, que era um pólo de referência negativo, de certa forma unia a juventude, ainda que a esquerda militante não suportasse ou fosse muito crítica com os mais desbundados, que estavam fazendo experiências com drogas ou se arriscando a propor mudanças no campo da moral e do comportamento. No entanto aquilo criava uma espécie de polarização, uma polarização anti-autoritária, que podia ser encontrada nas mais diversas formas
de expressão, não necessariamente politizadas, como era o caso, por exemplo, dos Novos Baianos.

Foi também um período de modernização do país, sobretudo econômica, em que os militares prosseguiam com seus projetos de forma autoritária, incompatível com a outra face desse processo de modernização, totalmente permeado pelos avanços culturais. De certa forma, o Brasil deixou de ser tão provinciano e entrou no circuito norteamericano e europeu no que se refere a moda, comportamento, consumo e à importação da cultura em geral.Ora, tudo isso veio junto com a expansão da indústria cultural no país.

Observando criticamente esse período, percebemos que foi surgindo, principalmente entre a juventude, espaço para a afirmação de um individualismo que, hoje sabemos, é requisito para o desenvolvimento da sociedade de consumo. O jovem, aliás, é uma categoria que ganha uma valorização positiva nessa sociedade. A afirmação de uma juventude individualista, que é compelida a dizer: “Eu sou mais eu”, “Eu sou do meu jeito”, começou como contestação ao autoritarismo e rapidamente se transformou em consumismo, em propaganda de cigarro. Nesse sentido, toda afirmação individualista foi muito útil para a sociedade de consumo, mesmo que num primeiro olhar tivesse uma coloração rebelde, porque essa sociedade quer indivíduos se afirmando com direito à sua diferença. Para a ditadura, embora houvesse autoritarismo em todos os campos, inclusive no do comportamento, era mais tolerável a rebeldia jovem individualista do que uma disciplina militar de partido clandestino com um projeto político de esquerda.

Num determinado momento, nos primeiros anos da década de 70, a política estudantil ficou apagada, foi violentamente reprimida, e essas expressões individuais de rebeldia, de desbunde, ganharam força pois contestavam menos (embora evidentemente os militares não gostassem nem um pouquinho de uma grávida mostrando a barriga na praia ou dos Novos Baianos fumando maconha). E todo o mundo sabia que nas letras das músicas, nos filmes, e nas peças de teatro, ou na pornochanchada, a contestação estava insinuada. Mesmo que não gostassem, era mais tolerável aos militares relaxar um pouco o controle por esse lado do que fazer concessões no que se referia ao poder propriamente dito. Os tabus caíram rapidamente, o modo de vestir mudou – ficou mais hippie, lembram? – e não havia tanta intolerância com relação a isso.

Quanto ao feminismo, no Brasil ele não foi tão expressivo, tão agressivo, quanto nos Estados Unidos, mas nos beneficiou, facilitando rapidamente a entrada das mulheres em vários campos da vida profissional, política, etc. Naquela época, estavam acontecendo muitas coisas ao mesmo tempo e as mulheres estavam revendo seu comportamento. Leila Diniz não era uma mulher que trazia uma bandeira de movimento feminista, mas ela fazia parte desse ambiente, dessa boemia artística carioca, criativa, de oposição ao autoritarismo, com uma certa simpatia pela causa feminista.

O fenômeno Leila Diniz pode ser considerado uma espécie de produto disso tudo. Ela, individualmente, captou o que estava circulando no seu tempo e foi uma expressão viva daquele momento. Por sua personalidade, por ser tão livre, tão à vontade nesse caldo de cultura, ela representou uma espécie de ponta-de-lança das transformações comportamentais. Depois dela, veio a enxurrada. Lembro-me que quando li a entrevista de Leila no Pasquim fiquei um pouco assustada com a sua famosa frase “Amor é uma questão de pele”. Foi uma afirmação ousada, bem além da moral da época. Não se imaginava como alguém podia considerar o amor como uma questão de pele. Um pouco mais tarde, em 1979, eu estava grávida de biquíni, na praia, o que então era muito natural, e lembrei-me de que Leila foi a primeira, em 1971, a ter sua foto publicada (várias vezes) ostentando a gravidez como parte de sua sensualidade, muito empinada, muito exuberante, mostrando a barriga assim como as mulheres mostram o peito, como quem diz “Olha como estou bonita”. Um escândalo na época.

A pílula anticoncepcional foi uma ferramenta definitiva para iniciar (e perpetuar) a liberação das mulheres. Ela se popularizou muito rapidamente e teve efeitos revolucionários no modo como elas passaram a viver a sua sexualidade, ou seja, simplesmente passaram a separar o desejo sexual da vida familiar. Evidentemente, as mulheres da geração pré-pílula podiam se aventurar, mas corriam riscos, se quisessem ter experiências sexuais fora do casamento, ou antes do casamento. Com a pílula, surgiu uma mulher que tem vida sexual sem necessidade de formar uma família; esse ainda é um fenômeno novíssimo na história da humanidade. Tem menos de 50 anos, pelo menos para a grande massa. Os métodos anticoncepcionais já existiam, com menos eficácia, é claro, mas a partir da pílula as mulheres entraram na vida sexual numa situação subjetiva equivalente à dos homens.

E os tabus caíram junto. Não só o tabu da virgindade caiu depressa, como também a crença comum de que os homens são muitos mais sexuais do que as mulheres, possuem um desejo sexual mais forte, devendo, portanto, freqüentar prostitutas, enquanto as mulheres, que se dizia que tinham desejos sexuais menos intensos, poderiam esperar o casamento. Eu me surpreendo hoje em observar, como conseqüência dessa liberdade sexual recente das mulheres, que as meninas têm mais anseio de experiência sexual e os meninos estão parecendo menos interessados, mais inibidos, e chegam a manifestar um certo desprezo pelas meninas “fáceis demais” – percebe-se aí a volta de um certo moralismo dos anos 60.

Podemos dizer que as conquistas dessa liberdade feminina se tornaram definitivas no que se refere ao mercado de trabalho, certamente. Agora, quanto ao comportamento, no campo sexual e afetivo, a questão é sempre complicada, nunca deixou de ser uma areia movediça. O que ocorre agora, no Brasil, é que existe uma contradição muito interessante. No momento em que as mulheres mais jovens, filhas de uma geração feminista que já se beneficiou do feminismo, estão mais desimpedidas sexualmente (não vou dizer livres, porque essa palavra tem uma conotação de liberdade interior que é difícil avaliar), surgem alguns modos de comportamento que parecem restaurar as formas mais arcaicas de discriminação da mulher. Mas é uma discriminação que se impõe de um jeito muito engraçado, porque as meninas aderem alegremente a seus estereótipos. Vejam, por exemplo, essa coisa do funk de chamar a mulher de “cachorra”, “popozuda”, que gosta de “tapinha”, etc. Fico muito curiosa com isso e me pergunto porque, numa geração muito jovem, as meninas que teriam uma liberdade sexual num plano moral de igualdade com os homens aceitam se colocar numa posição tão rebaixada. Acho que é um sinal de que aquilo que é chamado de um novo arranjo, entre os homens e as mulheres emancipadas sexualmente, ainda está muito confuso.

O apelo erótico das mulheres durante o longo período de vigência do tabu da virgindade consistia na arte de seduzir sem se expor, seduzir de uma maneira que faz o homem querer, sem que ela precise revelar que também quer. É uma sabedoria feminina que se transmitiu de alguma forma, de mãe pra filha, durante o longo período em que a mulher tinha que ser mais recatada, tinha que lidar com seu desejo sem dar na vista. Leila Diniz representou essa passagem que todas as mulheres fizeram depois dela: de uma feminilidade enigmática, que seduzia sem se revelar, para um estilo de abordagem mais aberto e talvez menos interessante que as mulheres pós-feminismo vieram a adotar. Ela tinha uma atitude espontânea de igualdade em relação aos homens, mas conservava algo de feminilidade à moda antiga, o que a tornava ao mesmo tempo ousada e fascinante para a sua época.