Portal Brasileiro de Cinema  Domingos de Oliveira

Domingos de Oliveira

 
 

Se não fosse meu o segredo de teu corpo, eu gritaria pra todo mundo. De teus cabelos, sob os quais faz noite escura, de tua boca, que é um poço, com um berço no fundo, onde nasci. De teus dedos, longos como gritos. Teu corpo, para conhecê-lo é preciso muita convivência... Teu sexo é um rio, onde navego meu barco aos ventos de sete paixões. E tua alma. Teu corpo é tua alma. (Domingos Oliveira para Leila Diniz : Todas as mulheres do mundo,
seqüência do Quitandinha, 66)

Estas eram as palavras inflamadas que um jovem cineasta apaixonado escrevia para sua amada, numa Kombi, rumo a Quitandinha, em Petrópolis, 1966. Estávamos indo filmar uma outra seqüência completamente diferente, a do "poema" não existia no roteiro.

E a Kombi subia a serra. Leila ia no banco da frente e eu cavalgava minhas emoções no de trás, escondendo as lágrimas. Eu queria filmar Leila nua. O "poema" era provavelmente o último bilhete de amor. A gente não ia voltar mesmo, Leila já estava em outra, embora minha paixão desvairada. Eu queria filmar Leila nua, venerar a deusa, mostrar ao mundo o deslumbramento que ela, sua alma e seu corpo tinham me causado. Gritar, numa palavra bela, um segredo que durante muito tempo tinha sido só meu.

Leila aceitou e a cena foi rodada no quarto do Quitandinha, num silêncio de missa. Todos – técnicos, eletricistas – chefiados por Mário Carneiro, cuja imagem precisa e grave por trás da câmera jamais esquecerei.

Grave, eis o adjetivo para aquele momento, hoje um pedaço de um filme antigo. Naquele momento eu entregava meu amor a Leila sob forma de arte. E ela o aceitava, sob forma de arte. E como a Arte é a Alquimia, nossa relação deixava ali de ser um comum amor frustrado, para ser uma grande amizade, até que a morte nos separasse.

Por que trinta anos depois ainda se comemora, e tão efusivamente, a morte de uma jovem atriz? O que Leila fez para ficar tão famosa? Convenhamos, esta é uma pergunta curiosa. Alguém é transformado em símbolo, como Elvis ou Marylin. Mas Leila não tinha uma indústria cinematográfica para sustentar seu mito, nem a popularidade internacional do roqueiro gordo. Também não escreveu livros nem entrou na política, como Evita, nem erigiu catedrais. Porque então? Trinta anos depois? Quem mais tem esse tipo de glória? Getúlio Vargas, talvez?

Hoje vejo Leila como uma figura revolucionária, talvez isso. Uma filha de comunista, muito inteligente, da verdadeira inteligência, aquela que vê antes, que prevê. Ela previu que a verdadeira revolução não era de direita nem esquerda, e sim cultural. Esta verdade profunda pouco depois se definiu escandalosamente e mudou o mundo, com os hippies, Marcuse e todo o resto. Mas Leila pensou isso primeiro e agiu. Se o plano tivesse sido consciente, ela teria estudado que os valores sociais estavam prestes a cair! Necessitavam somente um empurrão, para fragorosamente ruir e a multidão passar marchando em cima.

Dizer palavrão? Todo mundo queria e Leila disse (sendo assim responsável por um vigoroso enriquecimento da linguagem brasileira!). Servir-se no balcão do botequim, como só faziam os homens. Amar sem complicação, como nem os homens faziam.

Todas as mulheres do mundo queriam apanhar sol em suas barrigas grávidas. Leila fez. Leila fazia, ela era ação no sentido certo, era, portanto, a revolução vitoriosa. É evidente que não foi um plano organizado: a Diniz tinha a vocação da revolução. Uma mestra da práxis.

Toda sociedade tem sua parede de tabus. É só dar um soco ali, que aquilo fura. O que será isso hoje em dia, apenas para dar um exemplo, tornando mais clara a teoria. Alguém se recusa publicamente a pagar imposto de renda porque o dinheiro está sendo mal usado? Ou em nenhuma hipótese dirige a palavra a um PM ou a um corrupto? Sei lá, não sou um revolucionário inspirado.

(Mas parece que tenho um certo tropismo em direção a eles, pois minha filha Mariana também derrubou, a seu modo e na sua medida, os preconceitos adolescentes com suas Confissões.) Mas esta explicação ainda parece pouca e mesquinha. Afinal, são trinta anos da maior glória do mundo, que é aquela de ser lembrado depois da morte.

Uma segunda explicação me parece mais silenciosa, porém mais arguta, tentarei declinar: sou pessoalmente contra a morte de Leila. Não fui ao enterro, até bem pouco tempo atrás me recusava a falar disso, sou contra. Contra a morte de Leila, contra a Morte, trata-se de uma rebeldia contra a condição existencial. E não sou eu que sou contra, todo mundo é. A morte é inaceitável, revoltante. Porém, pobres mortais, raramente encontramos uma oportunidade de berrar isso a plenos pulmões. Leila nos lega essa oportunidade: somos todos contra a Morte de Leila Diniz.

Mas, sinceramente, também essa explicação me parece pouca, pouquíssima. Afinal, tanta gente boa morre e não é, assim, lembrada. A explicação que mais me satisfaz é vaga e inconcreta.

Desconfio que o Amor que um bota no mundo (e a beleza que ele bota no mundo, e a alegria que ele bota no mundo) de alguma forma fica no mundo. É seu patrimônio, sua riqueza. Leila, na sua barbaramente fugaz trajetória, deu muito amor, beleza e alegria ao mundo. Por isso lembramos dela e comemoramos sua vinda e vida, trinta. Viva Leila!

Leila Diniz foi uma mulher encantadora, com quem vivi um grande amor, durante os intensos anos da juventude. Saudades.