Portal Brasileiro de Cinema  Sérgio Cabral

Sérgio Cabral

 

Ela era um amor.

A entrevista de Leila Diniz ao Pasquim foi concedida numa tarde de sábado, no apartamento do Tarso de Castro, na rua Paul Redfern, em Ipanema. Ela era amiga de toda a patota (como se dizia na época), razão pela qual estava tranqüila e com a defesa inteiramente aberta. O problema foi a passagem do gravador para o papel. O que fazer com os palavrões? O jornal já vivia sob censura e, além disso, o juiz de menores, Alírio Cavallieri, nos convocava toda semana para reclamar de certas expressões usadas nas entrevistas e nos textos dos colaboradores. Ele ficou muito irritado, por exemplo, com a palavra “tesão”, usada por Maria Bethânia na entrevista dela.

Foi de Tarso de Castro a idéia de substituir os palavrões por asteriscos. Na época, não podíamos usar sequer “merda”, “bunda” ou “porrada”, palavras atualmente encontradas em qualquer jornalão e até na televisão (alguns asteriscos substituíram também essas palavras). A repercussão da entrevista foi logo percebida pelo número de cartas que chegavam à redação elogiando ou espinafrando, desde o dia do lançamento do jornal. Sendo o redator encarregado de responder às cartas, lembro-me de uma em que uma moradora da Tijuca escolheu-me como alvo principal de suas diatribes. "Imagino o Sérgio Cabral, com aquela cara de cachorro pequinês...", escreveu ela. Na resposta, rebati dizendo que ela errou de raça, pois não tenho cara de cachorro pequinês. "Cachorro buldogue", corrigi.

 
Leila e Flávio Cavalcanti

Infelizmente, não tínhamos a preocupação de guardar as fitas dos entrevistados. Uma burrice da patota e, em particular, minha, já que, na época, montava meu arquivo de música popular e deveria saber da importância de preservar as gravações. Resultado: a fita com a entrevista foi roubada e reproduzida milhares de vezes, sendo vendida em quase todo o Brasil. Não me esqueço da sensação de vergonha e de nojo num dia em que, sentado na cadeira do barbeiro, vi um empregado da casa exibir a fita como se fosse uma obra de sacanagem.

Fomos acusados algumas vezes de ter explorado a ingenuidade da Leila. Bobagem. Só poderiam fazer tal acusação as pessoas que não a conheciam, pois, se conhecessem, saberiam que ela não era de se deixar explorar. Além disso, éramos verdadeiramente amigos dela. É só pegar a coleção do Pasquim para comprovar que ela contou o tempo todo com o carinho e a solidariedade da patota. O fato é que Leila falava palavrão mesmo e, embora jovem, há muito tempo havia rompido com um dos aspectos da cultura judaico-cristã, justamente aquele que reserva os pecados para o que se passa da cintura para baixo do corpo humano. Não só falava palavrão como inventava. "Caceta dourada", por exemplo, era uma expressão usada para qualificar as coisas de que gostava. "Tal filme é uma ‘caceta dourada’", dizia. Um dia, uma moça perguntou a ela o que era "caceta dourada".

– Você conhece muito bem. É que você não está ligando o nome à pessoa – respondeu.

Aliás, era a rainha das respostas. Uma atriz muito amiga dela queixou-se de que os homens de Ipanema a levavam para o motel, mas, chegando lá, só queriam falar de política, de cinema, de psicanálise etc. Transar, que é bom, nada. Leila alertou-a: "Você quer ereção? Aqui, não vai encontrar. Ereção, minha filha, só do Meier para cima!"

Asseguro que, até hoje, não conheci ninguém mais digno e mais generoso do que ela. Leila queria acertar sempre. Lembro-me que, certa vez, me telefonou muito preocupada porque fora convidada para desfilar na Escola de Samba Império Serrano e eu vivia dizendo que os brancos estavam roubando as escolas de samba dos negros. "Ora, Leila, quando digo isso me refiro aos brancos, não às brancas. Mulher tem direito a fazer tudo", disse a ela, que, por sinal, fez um desfile esplendoroso.

Foi na casa dela que me escondi quando o Exército começou a prender os jornalistas do Pasquim. Além de nos abrigar, promovia reuniões para saber que atitude deveríamos adotar. Paulo Francis, um dos primeiros a serem presos, telefonou do quartel dos paraquedistas informando que eu (diretor responsável do jornal e presidente da empresa) deveria apresentar-me, pois os militares queriam apenas fazer um interrogatório. Depois, todos seriam libertados. Numa reunião na casa do pianista Luís Carlos Vinhas e de Sílvia, com quem era casado na época, Leila achou que não deveríamos nos apresentar, mas eu, Jaguar e Flávio Rangel não concordamos e pegamos um táxi para o quartel. Resultado: dois meses de cadeia. Bem-feito, por não termos ouvido Leila Diniz.

Chamada de musa do Pasquim, ela era como uma integrante da equipe. Estávamos sempre com ela no Zeppellin, no Jangadeiros ou em qualquer outro bar de Ipanema. Percebi certa vez que estávamos sem citá-la há várias edições do jornal e resolvi, para recuperar o tempo perdido, encher quase uma coluna inteira com o nome dela repetido uma infinidade de vezes. Leila Diniz, Leila Diniz, Leila Diniz...

Além do talento, da dignidade, do humor, de tudo, enfim, que só pode ser encontrado num ser humano muito especial, Leila era muito bonita. Bonita de chamar a atenção. Por isso, quando vi Todas as mulheres do mundo pela primeira vez, em Curitiba, não estranhei a reação do público quando a sua personagem disse que iria viver em Curitiba: "Oba!” – gritou o cinema inteiro.