Portal Brasileiro de Cinema  Marcelo Cerqueira

Marcelo Cerqueira

 

Leila era jurada em um programa de calouros que Flavio Cavalcanti comandava, aos domingos, na antiga TV Tupi, na Urca. No meio de um dos programas, apresenta-se a Polícia Federal com um mandato de prisão contra a Leila, para ser cumprido incontinente. Flavio negociou com a polícia, argumentando que Leila não podia sair no meio do programa, que concordou. Foi o tempo de me alcançar em casa e eu chegar à TV.

Era o Inspetor Senna quem trazia a ordem e eu já o conhecia por conta do meu ofício de defender os perseguidos pela ditadura. Li o mandato, que estava nos conformes daqueles dias sombrios. Inútil qualquer tentativa de negociar um compromisso de levar Leila para depor no dia seguinte e sem o constrangimento da prisão. "Ordens", diziam. "Ordem" é o que dá vida aos energúmenos de todos os tempos.

Leila estava com uma roupa meio à cigana, o que permitiu a simulação. Ao final do programa, no camarim, Leila trocou de roupa com sua secretária, que saiu comigo no meu carro, enquanto Leila fugia no carro de um amigo meu, indo se abrigar em Petrópolis, na casa de Flavio Cavalcanti.

Dá para imaginar a raiva da polícia quando interceptou meu carro e constatou que fora lograda. Tememos por uma violência porque, furioso, o Inspetor Senna nos cobria de ameaças. Afinal, convencido de que eu não sabia o paradeiro de Leila (e por segurança não sabia mesmo, deixei-a entregue ao meu amigo e à solidariedade do Flavio), e sem querer prender o advogado, menos pela prisão e mais porque iria revelar sua desatenção na captura, o Inspetor deixou-nos ir.

Era ministro da Justiça o professor Alfredo Buzaid, que eu já conhecia porque participara, pela Faculdade Candido Mendes, onde era professor, de um Seminário sobre Processo Civil, em Porto Alegre, como relator na Mesa presidida pelo professor Buzaid. Recebeu-me bem, mas sem disfarçar a raiva que votava à Leila: chamou-a de imoral, imaginem! Argumentei por outro caminho: minha mulher, irmã de Leila, estava grávida e muito nervosa com a ordem de prisão; era tal a ligação das duas que eu temia por uma complicação na gravidez. Afinal, acedeu em suspender a ordem mediante meu compromisso de levá-la a depor e o compromisso de ela de não dizer mais palavrões!

Acertei com o próprio Inspetor Senna (devedor ao Delegado da Polícia, naturalmente um general, do cumprimento da ordem) o depoimento de Leila. Foi um Senna mais aliviado (encerrava o "expediente" Leila) que nos recebeu. A Polícia Federal, então, ocupava um próprio estadual que hoje abriga o Museu da Imagem e do Som, na Praça quinze. A linda vista sugeriu à Leila o primeiro comentário: "Que bela vista vocês têm por aqui, pena que não ajude". "Ajude o quê?", perguntou um incomodado Senna. "Ajude nada", eu disse, "vamos ao depoimento". E fomos. Senna e o escrivão procurando dar um ar de solenidade ao depoimento, que a irrequieta Leila atrapalhava. Não apenas por sua maneira informal de se portar, mas também porque outros tiras vinham vê-la e especialmente a senhora que servia café, que se declarou sua fã incondicional e logo colheu especial autógrafo. Carrancudo, Senna advertiu: "Dr. Marcello, dona Leila sabe do compromisso que o senhor assumiu com o ministro de ela não falar mais palavrões?". Leila inquietou-se, ia falar alguma coisa, protestar certamente, mas eu rápido cortei. "Sabe, Inspetor. Mas vamos ao depoimento, não acha melhor eu mesmo e o escrivão nos desincumbirmos da tarefa, enquanto Leila aprecia a paisagem?" E assim foi feito. Ao final, Leila queria ler o depoimento, que se resumia ao compromisso de não dizer mais palavrões, após as perguntas de "costume". "Assine, Leila, e vamos embora". Assinou e fomos embora.

Na seqüência, o governo editou um decreto-lei sobre censura, que naturalmente proibia palavrões (peças de teatro, televisões, jornais, revistas), que ficou conhecido como Lei Leila Diniz.