Portal Brasileiro de Cinema  Notas para Leila Diniz

Notas para Leila Diniz

Lygia Pape

Eu tinha entre seis e sete anos e cheguei em casa com um troféu nas mãos. Era um catecismo e assim como chegou voou para o lixo pela mão rápida de meu pai. Fiquei perplexa. Mas adorei. Naquele momento eu estava anarquista. Pronta para conhecer Leila Diniz em um futuro remoto.

Leila Diniz começou professorinha e corrigia cadernos adoráveis e fingindo seriedades. Procurava um lugar no mundo. De forma ingênua, mas com convicção. Séculos atrás em uma ilha japonesa, uma mulher Murasaki Shikibu procurava também seu lugar no mundo; escreveu Genji Monogatari (A história de Genji). Obra rara e audaciosa de uma dama da corte. Ano 1000 antes de nossa era. E dizem também que há vestígios de que Homero teria sido uma mulher. Delicioso.

Nem Leila nem eu fomos feministas. Leila era inquieta e inquietante. Movia-se em direções variadas em busca de sua afirmação. Ela já era atriz e um assistente meu foi fazer uns figurinos para ela. Voltou em estado de choque. "Como posso entrar dentro desta blusinha com os peitos deste tamanho?" e jogou-os para fora da roupa diante do rapazinho perplexo. Uma atriz atrevida demais para ele.

Susan Sontag fala em um texto sobre a busca da mulher por auto­transformação. Leila, sem conhecer os personagens do mundo, transforma-se a cada momento. Cresce sem parar. Viver, o dinheiro, os filmes, a patota, tudo cresce, revela-se nela como aprendizado. Joyce e Nora, sua mulher, um pouco rústica, trocavam cartas entre si em que ela dizia dos peidos que soltava enquanto fornicavam. Puro amor. Imaginei Leila morando dentro de uma burka azul plissado. Teria ela aceitado tal tragédia? E os talibãs, o que fariam com essa mulher guerreira? Ela teria feito a sua transformação.

 

Fome de amor, de Nelson Pereira dos Santos, é seu melhor filme. Ela começa com as patotas como apoio afetivo. Mas sua inteligência aguçada a levaria sem dúvida a outras direções. Quando percebe seu crescimento do meio do filme para o final, é ela que cresce e chegaria à direção cinematográfica. Perceber sua atuação e as diferenças de atuar indicam uma leitura nova em seu trabalho.

Devo citar o gênio do cinema: Leni Riefenstahl. Mulher em um clima pobre de invenções, o olho que olha o espaço é o mais inventivo. Puro delírio, da forma. Todos os fotógrafos de esporte são reféns dessa mulher.

Lembro de Leila e sua vitalidade, seu crescimento, sua aventura no mundo. Ela teria se apropriado da direção de filmes em pouco tempo. Devoradora, ávida e doce. Teria chegado lá.

Sua gravidez foi pública e sua barriga redonda desfilava pelas praias. Ousada e bela. A mãe de Buda ficou grávida e foi pendurada em uma arvora até a criança aparecer. Essa submissão era desconhecida de Leila (em qualquer grau de loucura).

Como João Cabral de Mello Neto, o poeta que falou fundo em sua Uma faca só lâmina. Modestamente, Leila queria atingir algo fora do tempo. Intuitivamente. No limite dela mesma.

Um dia dissemos adeus a Leila Diniz. Deixou uma doce e talentosa lembrança – Janaina.