Portal Brasileiro de Cinema  Arduíno Colasanti

Arduíno Colasanti

Leila, Leiluska, Luska. Lá se vão trinta anos... quanta saudade. Conheci Leila no set de filmagem do El Justiceiro, de Nelson Pereira dos Santos. Quando ela chegou, querendo saber se havia algum papel para ela, sua exuberância, espontaneidade e língua solta – mais tarde transformada em asteriscos na célebre entrevista publicada no Pasquim – me assustaram. Na época, eu ainda era meio mauricinho, com todos os preconceitos da espécie, e para mim "as mocinhas de família" não agiam daquela maneira. Hoje em dia, um linguajar mais solto é comum em todas as classes sociais e vejo que até nisso ela foi uma pioneira, estava à frente de seu tempo.

Leila era muito amiga de Luís Carlos Lacerda de Freitas, o Bigode, assistente de direção do filme, e por isso ocasionalmente aparecia nas filmagens. Aos poucos, fui percebendo sua personalidade luminosa, sua vitalidade, o seu altíssimo astral. Um dia a observei fazendo um carinho numa menininha com síndrome de Down. "Que bonitinha", comentou com naturalidade. Gesto e comentário foram uma revelação de sua aceitação do diferente e uma lição para mim, que havia parado na superfície, só tinha conseguido ver uma mongolóide.

Mais tarde atuamos juntos em Fome de amor, mais um filme do Nelson com locação em Angra dos Reis, e ali se revelou mais uma faceta da extraordinária personalidade de Leila: sua resistência. Tivemos uns dez dias de filmagens noturnas, enquanto simultaneamente ela atuava numa novela no Rio. Mais de uma vez ela enfrentou a seguinte maratona: gravava o dia inteiro, pegava um carro para Angra – naquele tempo não existia a Santos–Rio e a viagem, que passava por Lídice, era bem mais longa – filmava a noite toda e de madrugada voltava para mais um dia de gravação. Isso sem perder o pique nem sua contagiante alegria. Depois filmamos Azyllo muito louco, novo filme de Nelson, inspirado em O alienista de Machado de Assis, desta vez em Parati. As viagens de Leila se alongaram, fui diversas vezes buscá-la em Cunha, onde chegava de ônibus.

Em Parati nos reencontramos para filmar Mãos vazias, primeiro longa do Bigode. Quando pronto, o filme foi selecionado para o Festival de Perth, na Austrália, e para lá fomos, Leila, Ana Miranda – com quem estava casado e que havia atuado no filme – Bigode e eu.

Fomos via Chile e, já que estávamos do outro lado do mundo, optamos por voltar para casa fazendo escalas na Ásia e na Europa, e então ocorreu um fato inexplicável, um daqueles nós que formam a misteriosa teia do destino. A bordo do avião, durante a primeira perna dessa nossa viagem, Leila estava examinando um mapa-múndi com as rotas da companhia aérea, e quis saber onde estávamos estar naquele momento. Mostrei o ponto aproximado e ela comentou: "Ah! É aqui que fica o tal do Vietnam?". Ela estava se referindo a uma de suas falas em Fome de amor, em que ela dizia mais ou menos "...estivemos também no Vietnam, de passagem, é claro. Depois, kaput, foi o acidente". E nesse ponto é necessária uma explicação. Nelson não havia gostado do roteiro do filme e logo o abandonou. Todos os dias, quando chegávamos ao set, ele fazia um pequeno teatro: pedia café e dizia que só iria filmar quando estivesse pronto. Enquanto o café era coado e degustado, ele escrevia os diálogos das cenas do dia. Só essa improvisação, que não deixa muito tempo para filtrá-los pelo crivo da razão, pode permitir que aflorem conteúdos do inconsciente, numa premonição oculta.

Sim, porque quando estávamos na Tailândia, prestes a partir para nossa próxima etapa no Nepal, Leila, com saudades da filha ainda pequena, resolveu se separar do nosso grupo e voltar para o Brasil. Na noite anterior a sua viagem teve uma emocionada conversa com Bigode, dizendo em essência que sentia que estava encerrando uma etapa de sua vida, que a maternidade a levava a assumir novas responsabilidades, que dali em diante tudo ia mudar... isso aos prantos, como se estivesse se despedindo definitivamente.