Portal Brasileiro de Cinema  Simplesmente Leila ou Leila, a mulher e o mito

Simplesmente Leila ou Leila, a mulher e o mito

Paulo José

Lá pelos idos de 1967, Leila e eu estávamos dublando Edu, coração de ouro, do Domingos Oliveira, o segundo filme que fizemos juntos. O primeiro, Todas as mulheres do mundo, também do Domingos, havia sido um grande sucesso. Leila era cantada em prosa e verso como novo símbolo sexual, musa do verão, deusa do carnaval, e todos esses qualificativos que a imprensa já costumava atribuir anualmente a mulheres cariocas, para inveja dos paulistas que moravam longe do Castelinho, na praia de Ipanema. A TV Globo era a primeira rede nacional de televisão, e o sucesso de O sheik de Agadir, novela de Glória Magadan, levava Leila a todos os cantos do país. Pois bem, estávamos, Leila e eu, dublando Edu, coração de ouro observados por um visitante que, de pé, a cara colada no vidro que separava o estúdio da sala de controle, parecia deslumbrado pelo que via. Algum convidado do estúdio que estava tendo o privilégio de ver Leila Diniz trabalhando. Ficou ali toda a manhã. Na pausa para o almoço, Leila saiu apressada, ia resolver alguma coisa particular, e eu fui com Domingos para a cantina do estúdio. O visitante curioso nos viu, veio até nossa mesa e foi logo perguntando:

– Escuta, quem é aquela baixinha que estava dublando a Leila Diniz?

– É a Leila Diniz!, falei de um modo categórico.

– Lei-la Di-niz!, resmungou, com ar de quem não caiu na mentira, e concluiu:

– Tá querendo me enganar ???!!! E, virando as costas, foi embora, na bronca com aqueles babacas que estavam querendo gozar com a sua cara.

É que Leila não alimentava o mito Leila Diniz. Se dependesse dela, ele, o mito, morreria de fome. Como star Leila era decepcionante.
Como era Leila?

Leila era linda, Leila era bela! Não segundo os padrões de beleza da Barbie, de mulher sarada, de mulher atomizada, siliconizada, produzida em série. Não tinha essa beleza que se repete monotonamente nas bancas de jornal, tão perfeita que parece um artifício do Macintosh. De fato, hoje o computador retira da imagem feminina todas as suas particularidades, uma mancha da pele, uma ruguinha aqui, uma dobrinha ali. E qualquer mulher pode ter os olhos violeta da Elizabeth Taylor, um narizinho levemente arrebitado, um peito provocativo, uma bundinha empinada. As mulheres se olham no espelho para se odiarem, tudo lhes parece fora do lugar, o que faz a fortuna dos cirurgiões plásticos, verdadeiros fabricantes do que se convenciona ser a beleza feminina. Não, Leila não era um modelo de beleza. Nem tinha as medidas de uma Miss Universo fabricada na Venezuela. Leila tinha peitos grandes, canela fina para os quadris largos, dentucinha, deliciosamente imperfeita. Linda. Bela, quando sorria franzindo a cara com jeito felino, ou quando soltava aquela risada sonora, aberta, contagiante.

Leila era espontânea, autêntica, e não seguia a cartilha do bom comportamento para meninas-educadas-para-servir-e-fazer-feliz-seu-futuro-marido-e-senhor.

Se apareceu grávida na praia, com a barriga de fora, foi porque não via nada demais na gravidez de uma mulher. Foi fotografada, virou capa de jornais, revistas, motivou cartas de leitores indignados com aquela pouca vergonha, e resposta de outros louvando seu gesto.

Leila não era uma mulher querendo impor suas idéias emancipadoras, lutando por uma causa feminista. Aliás, Leila se divertia dizendo não ser feminista, mas machista, porque gostava muito de homem.

Leila ignorava a censura e a repressão. Tinha uma honestidade que transparecia em tudo o que dizia ou fazia, sem nenhum esforço. Ser honesta não era um princípio, uma decisão consciente. Ela era honesta, apenas isso. Tinha muito respeito por si própria, respeito pelos amigos, respeito pelo ser humano, incapaz de imaginar qualquer maldade. Leila era honesta, inocente e ética.

Leila gostava de gostar. Era apaixonada, e com a mesma intensidade com que se entregava ao amor, sofria quando ele acabava. Mas sempre dava a volta por cima, sabia que ia amar novamente, e novamente sofrer, posto que a paixão não foi inventada para nos fazer felizes, mas para nos sentirmos vivos.

Leila era livre. Dançava com a liberdade de uma Isadora Duncan, o samba no pé, no corpo, na cabeça, na alma. Leila era moleque, descontraída, amigona. O que nela era tão natural como respirar passou a ser uma referência de comportamento a ser seguida. Tudo o que fazia ou dizia, cada vez mais adquiria uma significação de manifesto ou desafio às convenções; Leila era matéria de interesse jornalístico e, sem que ela fizesse o menor esforço para isso, apesar dela mesma, foi se criando o mito da Leila guerreira, a Leila corajosa, a Leila exemplo para todas as mulheres.

Mas, para além do mito, para além de sua imagem ampliada pelo tempo e pela necessidade que todos temos de buscar exemplos de vida que nos norteiem, para além das palavras, das imagens que dela ficaram, gostamos de nos lembrar dela como ela era e sempre quis ser, a querida amiga Leila, simplesmente Leila.

P.S. O poeta Manuel Bandeira pressentiu Leila quando escreveu:

O que eu adoro em ti não é a tua beleza...
O que eu adoro em ti, não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil, tão ágil, tão luminoso,
Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical, sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento, graça que perturba e satisfaz...

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.

O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti,
É A VIDA.