Portal Brasileiro de Cinema  Cinema atormentado e os esquecidos

Cinema atormentado e os esquecidos

André Luiz Oliveira

Sempre achei pernóstico dizer “sou cineasta”. Tentei outras atividades, outras profissões, tentei até viver uma vida normal sem as excitantes expectativas do cinema, mas acabei submetido a administrar esse carimbo e é o que tenho feito, sem muito sucesso, ao longo de 36 anos de carreira. Nunca consegui expressar claramente esse desconforto profissional, embora sempre tenha declarado com segurança que não sou cineasta de carreira. Tenho procurado viver fora do cinema mas sempre termino nas malhas do cineasta. A origem dessa rejeição está no horror ao carimbo e ao estereótipo, por isso qualquer carreira sempre me pareceu uma condenação. Quase todo cineasta é candidato a sofredor, salvo raras exceções. Como ele não aparece nos filmes tem que falar muito, tem que entender de tudo, tem que saber um pouco de todas as artes, de ciência, de religião, e de psicologia, filosofia, economia e por aí vai. Todo cineasta é empolado. Toda vez que falei sobre meus filmes soou falso, ridículo. Sou obrigado a utilizar esse personagem cineasta — em cujo perfil não me reconheço integralmente — apenas para circular, porque, na verdade, só consigo ser eu mesmo quando estou no processo de realização do filme; fora daí, tudo é desconforto e afetação. Acho pouco evolutivo alguém viver fazendo algo sem se perguntar se gosta ou não, se quer continuar ou se pode mudar de atividade. Na verdade, o que tenho buscado é direcionar a minha vida para encontrar um certo estado de espírito no qual eu possa ser eu mesmo o maior tempo possível, e no percurso, entre outras atividades, vou fazendo filmes: primeiro na Bahia (Meteorango Kid), depois no Rio (A lenda de Ubirajara), em São Paulo (A alma que tirou o corpo fora – não filmado), atualmente em Brasília (Louco por cinema, A entrevista e Sagrado segredo, os dois últimos em vídeo). Mais importante do que fazer filmes tem sido viver buscando consciência de quem sou, de onde estou e de que é que estou fazendo aqui, é isso que quero fazer? Quem disse que não posso fazer outra coisa? Sei fazer outra coisa? Vou experimentar. Havia uma música dos anos 1970 de que eu gostava muito, “Back to Bahia”, de um compositor chamado Paulo Diniz (não por acaso, admiro e me identifico com pessoas que aparecem e desaparecem da mídia e que, por isso mesmo, aparentam não terem dado certo, mas que internamente estão tranqüilos, fazendo qualquer coisa em qualquer lugar). Tinha uma frase que dizia: “Quem me olha não me vê, silêncio em meu coração, nem eu mesmo sei por quê”. É assim que me sinto no cenário do cinema brasileiro. Nunca pertenci a movimento algum; esse do “cinema marginal” foi algo que aconteceu comigo e com algumas pessoas na década de 70 que começaram a fazer filmes da mesma maneira. Mais tarde, esse formato ganhou uma cara e o carimbo de marginal, udigrúdi, mera formalidade para qualificar um tipo de cinema que se fez no Brasil numa determinada época. Que eu me lembre, todo artista naquela época era marginal, aliás, todo o cinema brasileiro também era, e ainda é, de certa forma, marginal. “Cinema atormentado” seria um nome mais adequado a esses filmes feios, sujos, malfeitos, malvistos e, no entanto, essenciais. Todo cineasta brasileiro além de empolado e frustrado tem tendência a romantizar o cinema, a carreira, colocando-a acima dos filmes, e os filmes acima da vida. Para mim, o cinema não é tudo, mesmo porque a vida é um filme, em que a grande aventura é o ato de viver, digo, experimentar. Durante um tempo, o “cineasta” quase sufocou habilidades naturais em mim, como a música, o texto e muitas outras que venho tentando desenvolver, como o teatro. Quem vive sob esse jugo sabe como é difícil tirar essa máscara, Jabor que o diga. Um dia achei que a havia tirado, fui viver o que era essencial para minha alma e automaticamente saí dos livros marginais, enciclopédias de cineastas, saí das mostras, das listas de convidados dos festivais etc. Qual leitor das matéria de cinema se interessaria pelo que fiz durante esses anos? O que é mais importante: viver ou fazer filmes? Foram vinte anos sem filmar longa-metragem, buscando o sentido maior da vida; não adiantou, voltei. Muitos não voltaram: quem se lembra de Luiz Rosemberg Filho? De Carlos Frederico, Luna Akalay, Júlio Calasso Jr., Luiz Carlos Prates, Tânia Quaresma, Paulo Bastos Martins, Alvaro Guimarães, Sylvio Lana, Elyseu Visconti, Sérgio Bernardes, Haroldo Marinho Barbosa e de tantos outros com seus filmes maravilhosamente defeituosos que estão vivendo sua vida, cada vez mais esquecidos pelos estudiosos, críticos e principalmente pelas novas gerações... que nem sequer viram aqueles filmes? O que quero dizer é que o cinema é poderoso, é também um fetiche que alimenta a alma e ao mesmo tempo a destrói. Talvez nós, jovens naquela época, naqueles momentos tormentosos dos anos 70, antevendo tudo isso, inconscientemente quisemos destruí-lo e por isso fizemos filmes tão estranhos. Tenho essa consciência porque longe do cinema aprendi da vida muitas outras lições preciosas.