CÂNCER

1968/72 . Glauber Rocha
Rio de Janeiro, 86 minutos, 16mm, p&b

 
 
 
 

... câncer de paixão, não deixar o pessimismo abater, não temer o anjo a cair, não calar jamais em tempo de secas, em tempo de fome, nunca cessar as apostas, tomar o dragão e beber com ele, não matar o pai, digerir o pai. Câncer é a fome de Di, a fome de A Idade da Terra, seu sonho futuro; o Cinema Novo, a fome do Cinema Marginal; o teatro, a fome do cinema; o cinema, a fome do vídeo. Glauber traz em seus filmes o transe constante dessa fome de ser-tão: a arte e a vida, a estética e a política, o cinema e o vídeo, a visão e o corpo; seu cinema é para se comer porque é o sonho de si — visão em corpo, luz e projeção — em irradiação e presença. Há algum encontro possível com a história? Nossas raquíticas políticas culturais, vastas doses de amnésia e de pérolas aos porcos, primeiríssimas páginas dos jornaleiros brasileiros, pastelarias, e que o ministério da cultura se transforme em ministério da fome e passe a pedir esmolas, assuma seu raquitismo. A cadente indústria cinematográfica nacional nos redimirá da decadência cultural? O anjo da história com os olhos arregalados, a boca dilatada, as asas envergadas — prestes a alçar vôo para o meio da tempestade, a ruína que do céu cai até seus pés. Há algum encontro possível quando a história nos chega como barbárie? Câncer é a violência que essa fome gera — multiplicação, circulação, soma e fragmentação. Interlúdio entre ser e devir; do teatro ao cinema, da ficção ao documentário e (re)voltar-se, revoar-se sobre nós sem se fazer representação antes de nos perguntar, pelo que sobra de abundância, o que se auto-representa enquanto assistimos o filme. Não é somente o que o filme quer dizer, antes, porém, o que nós temos a dizer. No final da primeira seqüência, Pitanga, que faz o papel do marginal negro, pergunta aos berros: “Quem descobriu o Brasil?”, como uma obtusa que, repercutindo, coloca em questão nossa presença no filme. A voz de Glauber, ora narrando, ora intervindo, ora gritando, é a presença que nos chama. Essa presença é a nossa ausência alarmada; das improvisações dos atores à participação dos moradores do morro da Mangueira, tudo parece encontrar-se em presença do outro ante a diferença do outro. E nós, o que temos a fazer? A autoria em Glauber não é determinada pelo signo da subjetividade do artista, há nela algo que supera sua auto-referência, sua mitificação; na loucura, na violência, na poesia, em toda a singularidade de seu cinema parece haver uma comunhão secreta, pronta para dissolver-se em nossas subjetividades, em nossas idéias. E quais constelações virão a desabar em nossas cabeças, quais cachoeiras, se sertões já são mares, e se sonho pode na garganta da fome vir e miséria medrar e mínimo possibilitar, o audiovisual como cabala desse encontro (?), porque o novo não tem data, é o enigma inevitável.

Pedro Paulo Rocha

Cia. produtora: Mapa Filmes, RAI (Radiotelevisione Italiana)

Produção: Gianni Barcelloni

Direção e roteiro: Glauber Rocha

Fotografia: Luís Carlos Saldanha

Montagem: Tineca e Mireta

Elenco: Odete Lara, Hugo Carvana, Antonio Pitanga, Eduardo Coutinho, Rogério Duarte, Hélio Oiticica, José Medeiros, Luís Carlos Saldanha, Zelito Viana e o pessoal do morro da Mangueira