Portal Brasileiro de Cinema  Uma geração marginal

Uma geração marginal

José Silvério Trevisan

Ao contrário de outros cineastas que compartilharam as experiências radicais do cinema brasileiro entre as décadas de 60 e 70, eu não tenho medo de ser chamado de marginal.

Ainda que o termo possa estar sendo usado com um objetivo marqueteiro e até mesmo oportunista, há nele um sentido muito acurado. Colhida de surpresa pela ditadura de 1964, essa parte da minha geração que buscou expressar-se no cinema estava mesmo à margem dos caminhos oferecidos tanto por seus opositores da direita quanto por seus “companheiros” da esquerda cinematográfica. Sabíamos que algo estranho estava acontecendo ao nosso redor, e nos deixamos embeber nisso, sem entender exatamente do que se tratava. Sofríamos de angústias políticas dolorosas. Estetica e moralmente, oscilávamos entre chutar o balde e tentar pisar firme nalgum terreno possível. Amávamos a sordidez do cinema japonês, o experimentalismo da Nouvelle Vague e os mergulhos antonionescos, além de acompanhar com encantamento os passos “fundadores” do Cinema Novo, com o qual nos digladiávamos amorosamente. Uma salada que pareceria indigesta aos estômagos mais bem regrados. O tempero, então, era pior ainda: vivíamos (com endereço comercial e tudo) na chamada Boca do Lixo, em plena zona de prostituição de São Paulo, por onde circulavam desempregados, aventureiros e jovens sem rumo, comendo e bebendo nos botecos, por entre produtores semi-analfabetos, prostitutas e cafetões. Dali nos desdobrávamos em direção aos grandes cinemas do Centro e ao bairro da Liberdade, onde se projetavam as obras-primas do cinema japonês, em pelo menos meia dúzia de salas exclusivas para a produção nipônica. Na década de 1960, São Paulo era, no mundo todo, a cidade que mais exibia filmes japoneses fora do Japão. Muito antes dos Cahiers de Cinéma terem dado o alarme anos mais tarde, já curtíamos alucinadamente Shoei Imamura, Naguisa Oshima, Tadashi Imai, Eizo Sugawa, Kenji Misogushi, Keisuke Kinoshita, Massaki Kobayashi, Kon Ishikawa, Mikio Naruse, Yasujiro Ozu, Kaneto Shindo, Tomu Uchida (e aquele seu inesquecível Estranho amor, que eu não cansava de ver). Akira Kurosawa, bem ele era mal visto como ocidentalizado, talvez com exagero purista da nossa parte. E Tatsuya Nakadai era o ator icônico, com seu rosto dramático sempre prestes a enfrentar a grande tragédia do mundo. Os ingredientes dessa salada se completavam com leituras esporádicas de Marx, textos do anarquismo (que eu e Carlão Reichenbach fomos buscar na biblioteca de Paulo Emilio Salles Gomes) e obviamente o rechaço à ditadura militar. Jovens de classe média, vivíamos atormentados à procura do nosso papel. Lutávamos contra os milicos, fumávamos maconha para ampliar a consciência, experimentávamos expressões sexuais novas, corríamos atrás de qualquer notícia de um novo experimento estético de acordo com nossa realidade. Mas qual era nossa realidade? Guerrilheiros, marginais, putos, artistas? Aos olhos do Cinema Novo, éramos um bando de porras-loucas, irresponsáveis, pequenos burgueses. Para Glauber Rocha, não passávamos do udigrúdi, imitação barata do cinema underground americano.

Dos pontos de vista ideológico e estético, é espantoso como o esquerdismo cinemanovista tinha certezas sobre seu papel revolucionário, que lhe dava aquele ar de insolência, impondo regras. Vale lembrar que o Cinema Novo nasceu e produziu no eixo Bahia-Rio de Janeiro. Não por acaso o assim chamado Cinema Marginal apareceu sobretudo como o “cinema da boca-do-lixo”, em São Paulo. São Paulo era desprezada pelo stablishment cinemanovista, com aquele ar aristocrático das duas antigas capitais rechaçando os novos-ricos filhos de imigrantes pobres. Trabalhando em São Paulo, os cineastas Roberto Santos, Luís Sérgio Person, Maurice Capovilla, Geraldo Sarno e Sérgio Muniz, mais ligados umbilicalmente ao grupo cinemanovista carioca, eram na verdade apenas tolerados em seu seio. A minha geração, um pouco mais jovem, viveu sua primeira inadequação cinematográfica justamente com a sensação de sermos rejeitados pelo pai, como filhos bastardos do Cinema Novo. Não por acaso, inicialmente meu filme chamava-se Foi assim que matei meu pai — e inicia-se com um pai sendo assassinado pelo filho. Antes de mudar-se para o Rio, Rogério Sganzerla fez seus dois filmes-fetiche (O Bandido da Luz Vermelha e A mulher de todos) dentro dos esquemas de produção e da “estética” da boca-do-lixo. Esses aspectos ilustram em grande parte por que, apesar das ramificações cariocas, o epicentro do Cinema Marginal era mesmo a horrenda boca-do-lixo da confusa e cruel capital do capitalismo paulista. O Cinema Marginal nasceu no meio das prostitutas. E não tinha nenhum charme.

Ao contrário do suposto refinamento do Cinema Novo, o nosso queria ser um cinema da feiura. Lembro de alguns bate-bocas (criativos, é claro) que tive com meu fotógrafo Carlão Reichenbach durante a filmagem de Orgia, ou o homem que deu cria. Eu lhe dizia que queria um filme feio, estava cansado da câmera bem colocada recortando o mundo e tornando-o bonitinho. Eu achava que era muito fácil qualquer merda ficar atraente através do olho estético da câmera. Isso valia tanto para o Cinema Novo como para os filmes experimentais soviéticos ou as grandes obras de Hollywood: mistificava-se o olhar em nome de um conjunto de regras estéticas que tornavam palatável o mais duro dos mundos. Lembro dos livros de estética cinematográfica tentando consagrar belos enquadramentos até mesmo nos improvisados filmes da primeira leva neo-realista, para que tivessem um apelo de beleza digestiva.

Com essa experiência composta basicamente de angústias e dúvidas, eu me pergunto se teríamos algo a oferecer hoje, às novas gerações. E acho que respondo com a mesma pergunta: temos a oferecer nossas angústias e dúvidas daquele tempo, para que se articulem melhor as angústias e dúvidas da atualidade. Num contexto diferente, estávamos sem saída tanto quanto as novas gerações de hoje, espremidas entre sua confusa generosidade interior e as certezas mesquinhas do mercado. Acho que queríamos sair da nossa dor basicamente através de uma forma de expressão que ajudasse nossa comunicação, precisando o menos possível do mercado. Daí nossos filmes serem baratos, caóticos e cheios de imaginação. Ora, filme barato é hoje ainda mais viável graças às câmeras digitais e a todas as facilidades técnicas. E o caos continua fazendo sentido, pois nada mais adequado a isso do que a era dos apagões. E a imaginação... ah, essa nunca morre, essa é o sentido da nossa vida e da poesia. Talvez seja a hora de acabar com a ditadura de um cinema brasileiro de orçamentos altos, bela fotografia e cenários de bom gosto. Talvez seja a hora de meter um pouco mais de transgressão e inconformismo no tempero da globalização. Talvez com uma câmera na mão, pouco dinheiro no bolso e muita imaginação na alma. Quem sabe então os fantasmas do Cinema Marginal estariam apaziguados.