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COMO PENSAR O HORROR NO CINEMA BRASILEIRO?
Laura Cánepa

“Por que não um dos nossos para filmar o infilmável?”, perguntava Rogério Sganzerla no prefácio do livro Maldito, que trata da vida e da obra de José Mojica Marins, o mais famoso cineasta brasileiro a se dedicar ao gênero horror. É dessa pergunta que este trabalho parte, dedicando-se a um mapeamento das narrativas e construções visuais do horror no cinema brasileiro. Afinal, num país com grande tradição de violentas histórias sobrenaturais, parece contraditório a ideia de que apenas “um dos nossos” tivesse se dedicado ao gênero.

Dizer que o horror é raro no cinema brasileiro é uma afirmação que, sozinha, quase nada significa. Afinal, filma-se pouco no Brasil – e exibe-se menos ainda. Então, só é possível dizer que o gênero é menos expressivo numericamente se compararmos sua expressão com a de outros gêneros. Nesse caso, o resultado é revelador: em 2002, Antonio Leão da Silva Neto, em seu Dicionário de filmes brasileiros, contabilizava que, até o começo daquele ano, 3.415 filmes de longa-metragem haviam sido finalizados no Brasil e, dentre eles, apenas duas dezenas eram classificadas pelo autor como sendo de horror ou de terror – em sua maioria, obras de Mojica. Só a título de comparação, o gênero policial, por vezes próximo do horror por seu caráter violento, era identificado no mesmo dicionário em mais de 250 obras.

No entanto, trata-se de um gênero narrativo bastante popular na mídia brasileira, sendo, inclusive, explorado frequentemente pelos programas de televisão e de rádio, assim como também nas histórias em quadrinhos e na literatura pulp. A audiência para filmes de horror estrangeiros (particularmente os de Hollywood) também é muito grande. Todo ano, fitas de horror estrangeiras estão nos primeiros lugares dos rankings nacionais de bilheterias e de compra e aluguel de DVDs. Além disso, a atenção dada ao gênero pela crítica especializada é significativa, com o surgimento constante de novas revistas eletrônicas, comunidades virtuais e listas de discussão dedicadas ao assunto.

Assim, é natural que perguntemos os motivos pelos quais nosso cinema, ignorando a popularidade do horror no país, tenha evitado o gênero de forma tão evidente. O que se verifica, porém, é que sua ausência é mais historiográfica do que histórica. Afinal, num exame dos filmes brasileiros a partir de suas sinopses, encontram-se, no mesmo dicionário já citado de Silva Neto, mais de uma centena de títulos claramente ligados ao horror, mas que não foram identificados dessa maneira e que tampouco foram reunidos e examinados sob esta perspectiva. Tais títulos nos remetem a experiências industriais e estéticas tão diferentes como o cinema dos estúdios paulistas, chanchadas, o cinema erótico – obras pouco conhecidas de autores consagrados –, além de todo um universo cultural de produções independentes que nem sempre é mencionado nos estudos de cinema brasileiro.

Como observa Lúcio Piedade, autor da dissertação de mestrado A cultura do lixo, o horror cinematográfico brasileiro, apesar de pouco lembrado, é representativo e expressivo. Segundo ele, o caráter híbrido desse cinema talvez configure um problema se quisermos categorizá-lo, pois, apesar de se apropriar de parte dos clichês mais marcantes do horror canônico, jamais se integrou aos paradigmas já estabelecidos da cinematografia mundial do gênero ou dela se tornou vertente. Pelo contrário: acabou estabelecendo suas próprias e significativas marcas, graças a iniciativas isoladas e à margem da linha de frente do cinema brasileiro.

Esse conjunto heterogêneo começou nas comédias e melodramas que dialogaram com os temas góticos e fantásticos (até os anos 1950), passou pela obra de cineastas marginais, de realizadores do cinema erótico e de arte, e chegou até os dias de hoje com vitalidade insuspeita. No entanto, para a maioria do público brasileiro, a ideia de um cinema de horror brasileiro ainda está vinculada apenas aos filmes de Mojica, que se eternizou como o coveiro psicopata Zé do Caixão, naquele que foi o primeiro longa-metragem brasileiro a se declarar “de terror”: À meia-noite levarei sua alma, realizado em São Paulo, em 1963.

De fato, com seu filme prodígio, Mojica ligou sua carreira diretamente ao horror, produzindo uma versão nacional desse gênero tida como uma das mais radicais e originais do planeta, e transformando a si mesmo num fenômeno de mídia. Mas, apesar da importância inquestionável do seu trabalho, reduzir o cinema de horror brasileiro à sua obra e ao personagem que o consagrou é esquecer de filmes e realizadores que, há muito tempo, merecem crédito.

Esse esquecimento de outras obras de horror em nossa memória histórica, porém, não tem relação com um possível “privilégio” dado a Mojica – embora o cineasta deva ser reconhecido pela capacidade de furar vários bloqueios ao longo de sua carreira. O desprezo de nossos historiadores e críticos pelo cinema de gênero em geral e pelo horror em particular está ligado em parte a posturas ideológicas que dominaram o projeto modernista do nosso cinema, estabelecido nos anos 1950, quando se elaborou um discurso que ajudou a constituir o que Jean-Claude Bernardet chama de Historiografia clássica do cinema brasileiro (1995). Segundo ele, essa historiografia estaria dominada pela visão de uma elite de cineastas e críticos que desejavam construir uma tradição cinematográfica genuinamente brasileira – intenção muito oportuna numa época em que nossa elite intelectual estava em busca de um projeto nacional viável e coerente. Tal tradição deveria legar ao cinema brasileiro grandes nomes e grandes filmes que pudessem legitimá-la e dar-lhe algum tipo de interesse artístico e cultural.

Esse modo de encarar o cinema feito no Brasil rendeu grandes frutos teóricos e estéticos, mas também criou um beco sem saída para os que se aventuram a conhecer o nosso cinema. Pois, como observa Bernardet, de um lado, a necessidade de construção dessa tradição brasileira acabou dando origem a uma visão isolacionista dos processos vividos pelo cinema nacional, reduzindo o espaço para o diálogo com tendências internacionais que sempre chegaram por aqui. De outro lado, a proximidade com os realizadores, mais do que com exibidores e consumidores, fez com que os estudos privilegiassem aspectos autorais (e mesmo alguns autores em especial), diminuindo consideravelmente o espaço para discussões sobre o papel dos espectadores, das relações econômicas, das convergências entre o cinema e outros meios de comunicação e da influência dos modos hegemônicos do cinema internacional sobre a produção brasileira.

Cada vez mais, no entanto, os que se interessam pelo cinema nacional são surpreendidos com as lacunas deixadas pela historiografia clássica e sentem-se desafiados a completar a visão construída nos últimos sessenta anos. Nesse contexto, um dos assuntos que chama a atenção dos pesquisadores é a questão dos gêneros, que, embora estejam presentes com variações em diversas partes do mundo, são mais facilmente identificados com o cinema clássico hollywoodiano, cujas bases estéticas, temáticas e industriais estão ligadas, até hoje, a um número limitado de formas narrativo-ficcionais consagradas.

A relação do cinema brasileiro com os gêneros ficcionais importados de Hollywood, é claro, enfrenta vários problemas. Um deles é o econômico, pois, ao longo de cento e poucos anos de história do cinema brasileiro, não foi possível criar uma indústria cinematográfica com bases sólidas o suficiente para originar uma linhagem contínua de filmes, o que teria favorecido a reprodução e o reaproveitamento de fórmulas. Há também o problema cultural, já que nem todas as experiências de cinema clássico de gênero dizem respeito às características e preocupações do Brasil (o que acabou favorecendo um “subgênero” até bastante recorrente no país, que é o da paródia de fórmulas típicas do cinema estrangeiro). Mas devemos considerar, também, que o projeto estético e político dominante para o cinema brasileiro priorizou, durante muito tempo, obras realizadas por uma elite de cineastas que se opunha aos modelos impostos pela poderosa indústria de Hollywood.

E apontar essas dificuldades em relação à existência de um cinema de gênero no Brasil não significa dizer que não houve repetidas tentativas de estabelecê-lo. Observando os registros históricos, percebem-se diversas estratégias para promover uma indústria que dialogasse com as fórmulas narrativas e estéticas consagradas comercialmente no mercado estrangeiro. Assim, desde o Cinema Mudo, encontramos em nosso cinema popular de ficção traços recorrentes ligados aos clichês de gêneros clássicos como o faroeste, a ficção científica, o filme religioso, o melodrama romântico, o horror etc. Evidentemente, por se tratar de uma filmografia periférica, sem uma indústria cinematográfica consolidada, esses gêneros nunca se apresentaram em suas formas narrativas e iconográficas canônicas: as diferenças são evidentes. Porém, os teóricos de cinema contemporâneos não se cansam de afirmar que os gêneros cinematográficos permanecem vigentes justamente porque são apropriados por seus múltiplos usuários (os diversos grupos de espectadores, produtores, distribuidores e exibidores) das mais diversas maneiras, produzindo variações que são responsáveis pela própria sobrevivência das formas.

Assim, no caso de um cinema de gênero horror brasileiro, uma abordagem das práticas de apropriação de referências, clichês e fórmulas do cinema internacional e dos aspectos regionais é mais frutífera do que a busca de filmes que sigam cartilhas simples – embora esses também existam. O que se deseja, então, é precisamente discutir a possibilidade de, a despeito de todas as dificuldades e interrupções, se falar em um cinema de horror brasileiro com traços característicos.

Para levar essa discussão adiante, porém, é necessário que, antes, definamos o que estamos chamando de horror cinematográfico, até porque essa dúvida não é exclusiva dos pesquisadores brasileiros. Afinal, o horror, além de ser um dos gêneros mais numerosos e variáveis em todas as cinematografias do planeta, torna-se particularmente hostil a definições por sua tendência à mutação, necessária a um tipo de espetáculo voltado para promover constantemente o choque e a surpresa.

Entre os estudiosos do chamado “horror artístico”, convencionou-se que esse gênero narrativo surgiu na Europa, na segunda metade do século XVIII, num impulso de desafio à visão iluminista do mundo. As histórias de horror surgidas naquele momento teriam, assim, o objetivo de readaptar o pensamento mágico e as imagens medievais às formas do irracionalismo romântico nascente, buscando representar e despertar sentimentos de pavor, aversão e perplexidade diante de fenômenos inexplicáveis pela natureza ou pela razão.

Nesse sentido, a maioria dos teóricos aponta duas condições inseparáveis para que se constitua o horror: a ameaça violenta e maléfica aliada à sugestão do sobrenatural ou, ao menos, de algo inexplicável pela racionalidade científica. Segundo Noel Carroll, em A filosofia do horror, essa ameaça geralmente vem personificada em algum tipo de figura monstruosa que, ao incorporar características humanas e não-humanas (ou sobre-humanas), provoca reações de horror nos personagens da ficção e, supostamente, por tabela, nos espectadores dessas obras.

Além dessas características estruturais, evidentemente, outro elemento fundamental para se entender o “horror artístico” é sua busca por uma reação física imediata dos espectadores. No caso de versões do gênero para o teatro e para as telas, ela é suscitada não apenas pelas histórias, mas, sobretudo, por aspectos iconográficos, rítmicos e de composições visuais que nem sempre precisam se subordinar à estrutura narrativa. Geralmente, essas representações visuais e sonoras apresentam corpos sujeitos a emoções intensas, marcadas não por articulações da linguagem, mas por gritos de susto, gemidos, encolhimentos de medo, náuseas – que, quando funcionam, acabam sendo, de alguma forma, mimetizadas pela plateia, tornando-se o principal foco de atenção.

Esse caráter sensacional do “horror artístico”, somado ao desafio à racionalidade moderna, está, possivelmente, na raiz do baixo status cultural tantas vezes atribuído ao gênero. Apesar disso, vários pesquisadores têm tentado, principalmente nos últimos trinta anos, legitimar as histórias de horror, atribuindo-lhes significados simbólicos que poderiam estar por trás das sensações imediatas. Para esses autores, o desejo do público de repetir ad nauseum determinados sentimentos pode ter motivações que se encontram em camadas mais profundas do imaginário individual e social. As figuras monstruosas, então, simbolizariam e satisfariam desejos reprimidos de onipotência e liberdade instintiva, além de personificarem medos primitivos como o de uma certa “independência” de nosso organismo em relação às nossas vontades. Da mesma forma, a frequente aniquilação dos monstros nas histórias de horror daria aos espectadores uma sensação de controle sobre esses mesmos instintos e medos, que geralmente ameaçam a ordem social. Essas abordagens são bastante recorrentes nas interpretações de obras desse gênero e permitem iluminar os motivos do interesse que essas obras sempre despertaram.

É possível que a recente curiosidade acadêmica sobre os filmes de horror, que se verifica em várias partes do mundo e também no Brasil, se deva também aos estudos de recepção cinematográfica, que encontraram, nos cultuadores do gênero, uma percepção estética ao mesmo tempo transgressora e comprometida com o entretenimento massivo, o que permite a observação de uma série de contradições da indústria cultural em torno das concepções de sensacionalismo e subversão – que estão na raiz tanto da produção quanto do consumo desse gênero.

Em meio a tantas questões que apontam para caminhos tão diferentes, acaba sendo uma tarefa árdua estabelecer uma definição de horror cinematográfico, ainda mais quando se vai tratar de uma cinematografia como a brasileira, na qual a questão do gênero é tão problemática. Mas, se é possível encontrar um denominador comum ao gênero, ele pode se basear na reunião dos seguintes critérios: do ponto de vista temático/estrutural, apresentam histórias nas quais elementos monstruosos e/ou inexplicáveis racionalmente causam perplexidade e medo aos personagens da ficção; do ponto de vista visual e iconográfico, são filmes que utilizam imagens violentas e ao mesmo tempo misteriosas, tematizando a imprevisibilidade, o corpo violentado, a monstruosidade e/ou os elementos grotescos e escatológicos; finalmente, do ponto de vista industrial e comercial, obras que se ligam a efeitos como o medo, o choque causado pelas imagens de violência, o susto, o imponderável ou o sobrenatural como fontes de ameaça.

Observando-se os filmes brasileiros sob essa perspectiva, pode-se dizer que o horror é, sim, bastante presente. Pareceria até estranho que não o fosse, pois, como aponta Lúcio Piedade, se olharmos para nossas narrativas tradicionais, veremos que boa parte delas versa sobre os mistérios que envolvem a vida e a morte, os embates entre as forças do bem e do mal, e a interferência de elementos sobrenaturais ou irracionais como fatores determinantes no mundo cotidiano – elementos que estão na raiz do “horror artístico”.

Assim, se o horror nem sempre é fácil de reconhecer em nossos filmes, é preciso lembrar, como argumenta Peter Hutchings em seu livro The horror film (2004), enquanto a própria indústria e a crítica frequentemente parecem confusas, a audiência e os cineastas parecem saber o que procuram. Se o pesquisador norte-americano estiver certo, a experiência de assistir aos filmes brasileiros atentando para os aspectos de horror que trazem pode tanto levar os espectadores a conhecerem melhor o nosso cinema quanto a terem uma visão mais abrangente e lúdica do próprio horror cinematográfico.



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