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A MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA
1964, SP. P&B. 81 min. Direção: José Mojica Marins

ESTA NOITE ENCARNAREI NO TEU CADAVER
1967, SP. P&B/Cor. 107 min. Direção: José Mojica Marins

ENCARNACAO DO DEMONIO
2008, SP. Cor/P&B. 94 min. Direção: José Mojica Marins

Quando o assunto é filmes de terror, o primeiro ímpeto é considerá-lo um gênero fantasioso, desapegado das amarras da vida real, um universo inteiramente organizado para a adesão inconsequente de um espectador bitolado (ao menos é o estereótipo que as pessoas “sérias” têm do gênero). Em todo caso, excluindo o juízo moralizante da frase final, muitos filmes – e alguns grandes entre eles – se enquadram perfeitamente no modelo. Outros realizadores – podemos pensar em George Romero, John Carpenter, Wes Craven, Joe Dante e nosso José Mojica Marins – não poderiam estar mais longe desse paradigma estereotipado.

O horror que esses cineastas elaboram está intimamente ligado não ao horror da imaginação, mas ao horror cotidiano de viver num mundo dominado pela força, pelo egoísmo, pela mentira, pela hipocrisia, pela mistificação e pelos preconceitos. É um cinema em que o horror brota para purgar, para transfigurar uma existência totalmente familiar, e que vai contra um discurso oficial, aquele discurso reproduzido nos valores da boa conduta “de classe” e nos meios de comunicação.

Pode ser um cinema direcionado politicamente (anarquizante no caso de Carpenter; declaradamente esquerdista no caso de Dante), mas é acima de tudo um cinema que parece dizer um “não” primal, estridente e sarcástico, quase pré-político (se isso fosse possível), para um estado de coisas insuportável.

Observemos a trilogia de José Mojica Marins, iniciada nos anos 1960 e finalizada mais de quarenta anos depois, em 2008.

O universo da ficção é o do mundo comezinho assim como o conhecemos, povoado por pessoas crédulas, hipócritas, supersticiosas, comportando-se como ovelhas no rebanho. Em uma palavra, o mundo da resignação. Contra esse estado de fato surge Zé do Caixão, o homem da revolta, o coveiro que não crê nos valores habituais, o materialista que não teme assombração, que zomba de suas vítimas porque elas, até o último instante, apostam no Deus intervencionista e não em suas próprias condições para se salvar. É importante notar como Mojica faz questão de inserir nos filmes desta trilogia as instâncias de poder: há o coronel em Esta noite encarnarei no teu cadáver; há a polícia que se arroga poderes sobre vida e morte em Encarnação do demônio. Não à toa, os filmes evocam duas figuras horripilantes e tristemente verdadeiras da sociedade brasileira. Uma delas, nos anos 1960, é o líder político local que legisla, julga e executa segundo sua própria lei; outra, contemporânea, é a polícia que, à maneira dos esquadrões da morte, chacina crianças achando que faz o bem à sociedade. Estamos realmente falando de um cinema de fantasia?

O cinema de José Mojica Marins e o horror que dele nasce são de natureza icônica. Não é questão de suspense. Não sentimos o menor medo pela antecipação do horror que está por vir (armas de mestres como Tourneur e Hitchcock). O horror surge pelas próprias situações, sejam elas as heresias e blasfêmias desferidas por Zé do Caixão em sua cruzada contra as superstições religiosas do populacho (o que, francamente, deve ter levantado mais sobrancelhas nos anos 1960 do que hoje, céticos que somos); ou pelas situações-limite de contato físico com animais repugnantes, aranhas, baratas, cobras, ratos, ou com o quase equivalente desses bichos, aqueles que infligem dor, agulhas, pedras colossais, machadinhas, dedos nos olhos, ou simplesmente pelo toque embrutecido do serviçal Bruno. Não é um horror metafísico – é um horror absolutamente físico. E o fato de que Zé do Caixão se veja nos três filmes assombrado por imagens absurdas de culpa e ressentimento só mostra que até o mais materialista daquelas redondezas ainda tem uma consciência inteiramente regida pela imaginação e pela culpa. Prova de que o enraizamento das tradições ainda é muito, muito mais forte do que supomos.

À meia-noite levarei sua alma, Esta noite encarnarei no teu cadáver e Encarnação do demônio certamente compõem a parte mais mitológica (se é esse mesmo o termo) da carreira de José Mojica Marins, ainda que não seja o que de mais inventivo o cineasta fez (nesse quesito, O despertar da besta e Finis Hominis levam o cetro de rei e príncipe, respectivamente). Mas são as mais perfeitas radiografias – ainda que ligeiramente exageradas e convertidas em uma filosofia de lunático – da revolta contra o conformismo reinante, uma lógica que diz que se deve obedecer aos poderes religiosos, aos poderes políticos, ao poderes da força. São ficções apropriadamente ancoradas ao imaginário brasileiro dos últimos quarenta anos.

Ruy Gardnier



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