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SANGUE, SEXO E RISO: ESPECTROS DO HORROR NOS FILMES BRASILEIROS
Carlos Primati

Uma bruxa caquética surge em cena desejando “péssima noite a vocês, meus amiguinhos corajosos” e em seguida aconselha a plateia que abandone o cinema, que não veja o filme. Ninguém lhe dá ouvidos e… tarde demais: o relógio soa doze badaladas e tem início À meia-noite levarei sua alma. Anunciado em seu material publicitário como o primeiro filme de horror brasileiro autêntico, o longa escrito, dirigido e protagonizado por José Mojica Marins não é o primeiro exemplar com elementos fantásticos feito no país; mas é o que assumiu o pioneirismo de se aceitar como tal.

O horror já se insinuara em diversas produções brasileiras, quase sempre de maneira tímida e incipiente, pelo menos durante as três décadas que precederam o lançamento da obra de Mojica, em 1964. Tal presença é suficiente para configurar a existência de uma respeitável filmografia nacional vinculada ao fantástico. Ainda que o “filme de horror brasileiro” – à exceção das estripulias de Zé do Caixão – não seja um conceito com o qual estamos acostumados a conviver, ele de fato existe.

São muitos os motivos para que, principalmente no meio acadêmico, a considerável produção de filmes de horror no Brasil, que chega muito próximo da contagem de 150 títulos no transcorrer de sete décadas, não seja tratada como tal. O preconceito em relação ao horror certamente é uma dessas razões. Em termos quantitativos, e mesmo no que se refere a temas abordados e a particularidades narrativas, a filmografia brasileira de horror é comparável ao conjunto de obras neste gênero realizadas em países periféricos no que diz respeito ao fantástico. Se, por um lado, é inegável a contribuição de Estados Unidos, Inglaterra e Japão na formação, estabelecimento e produção industrial de filmes de horror, podemos equiparar a safra brasileira à de países como França, Argentina e Alemanha do pós-guerra.

A gênese do filme de horror internacional – compreendido como uma narrativa com a intenção objetiva de provocar calafrios e sobressaltos na plateia – encontra-se nas primeiras produções sonoras do estúdio Universal, que se inspirou nas obras-primas macabras do movimento expressionista alemão para lapidar o formato definitivo do gênero. Tranformado em cultura de massa (e despido das elevadas aspirações artísticas e filosóficas dos germânicos), os primeiros exemplares do horror sonoro resultaram em êxitos mundiais de bilheteria com filmes como Drácula e Frankenstein, ambos de 1931. O sucesso destes deu origem ao primeiro grande ciclo de filmes de horror, de intensa produção nos EUA e notável popularidade internacional. Porém, por algum motivo, o sucesso dos produtos importados não foi capaz de fomentar a realização maciça de obras de horror em outros países durante a década de 1930. Mesmo assim, existem exemplares isolados que representam o embrião do horror internacional e estabelecem o marco inicial em várias filmografias, dentre os quais podemos destacar o mexicano La llorona (1933), baseado no folclore local sobre uma mulher fantasma; a precária realização argentina El hombre bestia (1935), uma extravagante aventura na qual um homem civilizado transforma-se em besta-fera; o chinês Ye ban ge sheng (1937), uma variação oriental de O fantasma da Ópera; e o francês Le Golem (1936), adaptado de uma lenda tcheca sobre um monstro de barro.

A estreia do cinema brasileiro no gênero fantástico se daria em circunstâncias parecidas, com a comédia musical O jovem tataravô, realizada por Luiz de Barros em 1936. A produção era da Cinédia, companhia importante no período, na ocasião fazendo sua transição para as realizações sonoras. O filme acompanha, de maneira farsesca e com uma moderada dose de picardia, as aventuras de um rapaz que, morto ainda jovem, é trazido de volta à vida décadas mais tarde, por meio de uma cerimônia secreta organizada para reanimar espíritos desencarnados. O ritual de reencarnação acontece durante uma sessão espírita que utiliza ensinamentos secretos dos antigos egípcios. Quando o tataravô, um mulherengo incorrigível, torna-se inconveniente mesmo no seio familiar, ele é despachado de volta ao Além através de um ritual de macumba.

Ainda que seja insensato classificar objetivamente como “de horror” uma comédia musical sem grandes pretensões dramáticas, O jovem tataravô traz, em sua narrativa, elementos claramente emprestados do cinema fantástico, demonstrando, acima de tudo, o reconhecimento de sua fonte de inspiração em filmes do gênero – em especial, A múmia, estrelado por Boris Karloff em 1932, no qual o ritual de reencarnação também surge como um segredo dominado pelos egípcios.

Fantasmas do bem e do mal

Dez anos se passaram até que outra realização nacional voltasse a flertar com assombrações, novamente em ritmo de comédia musical. A chanchada Fantasma por acaso (1946), produção da Atlântida estrelada por Oscarito e Grande Otelo e dirigida por Moacyr Fenelon, estava em sintonia com a tendência global do “horror” no período: a comédia romântica em torno de espectros bem-intencionados. Filmes como o americano O fantasma apaixonado, o francês Sylvie e os fantasmas e o argentino Una mujer sin cabeza são exemplos do estilo de horror lúdico e inofensivo da época. A Atlântida repetiria a receita, adicionando outros elementos fantásticos, em mais duas comédias: Três vagabundos (1952), com Oscarito e Grande Otelo, e Os apavorados (1962), com Oscarito e Vagareza. Um tipo mais maléfico de assombração aparece como tema central de Alameda da saudade, 113 (1951), de Carlos Ortiz, o primeiro exemplar de horror dramático feito no país. O filme, inspirado numa popular lenda urbana, acompanha o romance entre um rapaz e uma moça que se conhecem durante um baile de Carnaval. No dia seguinte, quando vai procurá-la no endereço indicado pela garota, ele descobre que ela está morta há dez anos. O toque de tragédia macabra fica por conta do revólver que o rapaz encontra junto ao túmulo de sua amada – um inequívoco convite para que o casal se reúna no Além.

A década de 1950 também ficou marcada pelo crescimento do cinema paulista, com as companhias Maristela, Multifilmes e, principalmente, Vera Cruz, sediada em São Bernardo do Campo, que tinha aspirações de realizar obras seguindo o modelo clássico hollywoodiano. Uma das vertentes exploradas por estes estúdios foi a das histórias de mistério e suspense, muitas vezes flertando com o sobrenatural, materializadas em sombrios melodramas femininos cujas narrativas se aproximavam do gótico. Os filmes Caiçara (1950), Meu destino é pecar (1952) e Chamas no cafezal (1954) são exemplares significativos desse filão, todos influenciados, de uma maneira ou outra, pelo clássico Rebeca, a mulher inesquecível (1940), de Alfred Hitchcock.

Este era o cenário do cinema brasileiro encontrado por José Mojica Marins ao anunciar À meia-noite levarei sua alma, produzido em 1963 e lançado no ano seguinte. O cinema de horror havia se internacionalizado, com muitos países, até então sem tradição no gênero, começando a investir nesse filão. A malvadeza sem rédeas de Zé do Caixão, um vilão ímpio, blasfemo, misógino e mau-caráter, estabelecia uma ponte entre o fetichismo necrófilo do espanhol Jesús Franco e a violência chocante do norte-americano Herschell Gordon Lewis, mesmo que Mojica não fizesse a mínima ideia de quem fossem esses sujeitos.

O sucesso do filme de Mojica motivou outros realizadores independentes a investir em seus próprios exemplares no gênero. Infelizmente, duas obras com possível potencial para hoje serem consideradas objetos de culto tornaram-se meras notas de rodapé na história do horror brasileiro. Phobus, o ministro do diabo, realizado em 1965 pelo mineiro Luiz Renato Brescia, é um filme sobre o líder de uma seita demoníaca que faz um pacto com o Diabo e torna-se imortal. Exibido em raríssimas ocasiões, chegou às telas somente na década seguinte e tornou-se uma obscuridade, sendo pouco provável que alguma cópia em película tenha sobrevivido. Por sua vez, Zorga, o médico louco, anunciado no Rio de Janeiro em 1963 pelo diretor César Galvão, sequer chegou a ser concluído; de fato, talvez jamais tenha ido além da fase de pré-produção. À estas duas curiosidades, podemos acrescentar O homem lobo, realizado em São Paulo por Raffaele Rossi em 1966 e lançado somente cinco anos depois. Apesar de carecer de maiores méritos artísticos, o filme ao menos atesta a existência de outros cineastas (além de Mojica) atentos às possibilidades do horror.

Teratologia udigrúdi

O legado artístico de Mojica, com seu cinema agressivo, vigoroso e impetuoso, que desrespeitava regras cinematográficas simplesmente por ignorá-las, foi assimilado por uma nova geração de realizadores que surgia, tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, em fins da década de 1960. Julio Bressane, Rogério Sganzerla, Elyseu Visconti Cavalleiro e outros baluartes do chamado “Cinema Marginal” tomaram as telas com obras experimentais e transgressoras como Barão Olavo, o horrível, Copacabana mon amour e Os monstros de Babaloo, todos de 1970. Em São Paulo, o próprio Mojica se uniria a Ozualdo Ribeiro Candeias e Luís Sérgio Person na antologia Trilogia de terror (1968). Ainda que não possam ser considerados propriamente do gênero “horror” – aliás, não se caracterizam por gênero algum – estes filmes se valem de signos e características do cinema macabro e místico para compor suas narrativas surreais. Uma década mais tarde, o carioca Ivan Cardoso combinaria a irreverência do Cinema Marginal à graça das chanchadas com seu estilo “terrir”, em obras como O segredo da múmia (1982) e As sete vampiras (1986).

O cinema de horror ganharia definitivamente as telas do mundo todo nos primeiros anos da década de 1970, impulsionado pelo êxito comercial de O exorcista (1973). O fenômeno repercutiria também no Brasil, em imitações diretas do diabo estrangeiro, como Exorcismo negro (1974) e Seduzidas pelo demônio (1976), ou em obras originais, como Enigma para demônios (1975), de Carlos Hugo Christensen. O misticismo brasileiro, na mistura da tradição cristã com as crenças afro, da macumba, da umbanda, do candomblé e da quimbanda, seria uma fonte fértil para as investidas no horror. A sensualidade tipicamente tropical, inflamada por imagens de entidades sobrenaturais fascinantes, como Iemanjá e Iansã, resultaria em exemplares significativos, como As noites de Iemanjá (1971), Janaína, a virgem proibida (1972) e Belinda dos orixás na praia dos desejos (1979), tornando o litoral brasileiro o cenário principal de grande parte dos filmes fantásticos nacionais.

A superstição, o misticismo e a religiosidade heterogênea do povo brasileiro, especialmente nas camadas sociais “mais baixas”, são perfeitamente exemplificados pelos filmes de Mazzaropi, o qual, mesmo não associado imediatamente ao horror, inseriu elementos fantásticos em pelo menos cinco de seus 32 longas-metragens: O lamparina (1964), O jeca macumbeiro (1974), Jeca contra o capeta (1975), Jecão… um fofoqueiro no Céu (1977) e O jeca e a égua milagrosa (1980). À sua maneira simplória, o famoso comediante demonstra o quanto o sobrenatural está arraigado no imaginário popular, dando forma à máxima de se acender uma vela a Deus e outra ao Diabo. No extremo oposto, Walter Hugo Khouri mostrou o horror com nuances existenciais em obras indispensáveis e de conteúdo mais erudito, como O anjo da noite (1974) e As filhas do fogo (1978), corroborando a pluralidade do tema no cinema nacional.

Tarados pelo horror

A partir da metade dos anos 1970, seguindo até meados da década seguinte, o núcleo de realização de filmes de horror no Brasil localizou-se na Boca do Lixo paulistana, em obras assinadas por cineastas como Fauzi Mansur, David Cardoso, Jean Garrett, John Doo, Antonio Meliande e outros. O elemento em comum da maioria absoluta desses filmes era o sexo, presente tanto nas comédias eróticas quanto nos policiais machistas, mas o horror também estava presente numa parcela significativa dessas películas.

Filmes eróticos com títulos apelativos como Excitação (1977), Perversão (1979), A noite das taras (1980), Delírios eróticos, Aqui, tarados, Pornô (todos de 1981), Banquete de taras e O castelo das taras (ambos de 1982) surpreendem como exemplares interessantes do horror nacional (alguns deles de caráter impetuoso e transgressor), mas que não foram explorados pelos exibidores como obras ligadas ao cinema fantástico ou sobrenatural. Por outro lado, filmes na vertente dos maníacos homicidas não se mostram encabulados em anunciar em seus títulos a que vieram: Amadas e violentadas (1976), O estripador de mulheres (1978), O matador sexual (1979) e outros. O fim da censura e o estouro das produções pornográficas culminou no subgênero dos filmes de horror com cenas de sexo explícito, em exemplares como As taras do mini vampiro (1987) e A menina do sexo diabólico (1987).

O período marca também a única investida do cinema brasileiro no estilo slasher, o formato americano do filme de matança de adolescentes, popularizado pelos exemplares de séries como Halloween e Sexta-feira 13. O resultado foi Shock (1984), de Jair Correa, que se limita a copiar a receita importada. Francisco Cavalcanti também tentou pegar carona no êxito de fitas estrangeiras nas telas brasileiras com seu A hora do medo (1986), cujo título inspira-se em sucessos americanos como A hora do espanto, A hora do pesadelo e A hora dos mortos-vivos, todos muito populares na época.

A década de 1990 ficou marcada pela irrisória produção cinematográfica brasileira e pelo consequente desinteresse do mercado doméstico com relação ao produto nacional. Sem demanda local, Fauzi Mansur realizou duas produções de horror visando exclusivamente ao público norte-americano. Satanic attraction e The ritual of death, falados em inglês mas com elenco bem brasileiro, apresentam um nível de violência grotesca nunca visto em produções nacionais. O reaquecimento da produção, com a chamada “Retomada”, trouxe exemplares curiosos como Olhos de vampa (1996), Gêmeas (1999) e O xangô de Baker Street (2001).

O filme de horror brasileiro ganhou novo impulso a partir do surgimento da tecnologia digital, que possibilita a realização de obras relativamente bem acabadas sem esbarrar nos custos proibitivos da película. A geração contemporânea de cineastas vinculados ao horror inclui o talento promissor de Rodrigo Aragão, de Mangue negro, lançado de maneira independente em 2008, fora do circuito convencional. Sua cultura fílmica, entretanto, não se baseia no que se fez anteriormente no Brasil dentro deste gênero, devido à ausência da tradição do horror no país. O modelo seguido é o de filmes estrangeiros, inspirado em realizadores como Sam Raimi e Peter Jackson. Mesmo assim, existe uma interessante pluralidade temática entre os novos realizadores: O fim da picada (2008), de Christian Saghaard, bebe na fonte dos marginais ao propor a reinvenção de nossos monstros; o experimental FilmeFobia (2009), de Kiko Goifman, propõe uma releitura existencialista dos “testes macabros”, e mesmo José Mojica Marins, voltando às telas com vigor renovado em Encarnação do demônio (2008), adapta as torturas e castigos de Zé do Caixão ao radicalismo extremo de Jogos mortais, O albergue e derivados. Setenta anos depois de arriscar os primeiros sustos, e após décadas de flertes com o gênero, o cinema brasileiro parece, enfim, pronto a assumir, sem medo, sua vocação para o horror.



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