Portal Brasileiro de Cinema  Leila Diniz ou o cinema como aventura

Leila Diniz ou o cinema como aventura

Ruy Gardnier

 
Leila e maquiadora no intervalo das filmagens de A madona de cedro.

Leila Diniz tornou-se famosa com a telenovela e ficou polêmica através de um misto de comportamento e declarações, das quais a mais famosa é a célebre entrevista para o tablóide O Pasquim, que lhe rendeu o ostracismo televisual, o olhar de esguelha da família e até mesmo perseguições. Olhando de primeira, poderia se falar a vida inteira de Leila Diniz sem mencionar que ela foi uma atriz de cinema. E entretanto é ela mesma que nos traz de volta à película: "O cinema para mim, atualmente, é o que conta", diz a atriz em fevereiro de 1968, numa entrevista concedida a Wilson Cunha para o Jornal do Brasil, muito menos escandalosa e sensacionalista do que a do Pasquim, mas sensivelmente reveladora e intimista.

Mas o que era o cinema para Leila Diniz? O palco privilegiado onde ela poderia mostrar seu verdadeiro talento, já que na televisão estaria suscetível a espetáculos pouco bem construídos que não dariam vazão ao trabalho dos atores? Não exatamente. Por mais que não visse na telenovela um objeto acabado de "arte" (ela mesmo o declarava em entrevistas), Leila não partilhava com sua geração a avidez pela genialidade, pela autoralidade que acabou se tornando uma espécie de marca registrada do Cinema Novo. Ao contrário, Leila Diniz parecia ser a filha temporã da geração seguinte, a do udigrúdi – com quem, entretanto, ela não realizou nenhum filme. Mas residia entre ela e a turma pós-cinema novo uma afinidade de espírito: cinema era antes de tudo uma aventura, uma experiência. Mais do que a arte, o cinema era a casa.

"Geralmente faço uma bagunça incrível onde eu trabalho e trabalho sempre com gente que eu gosto. O meu critério de escolha é esse: eu não escolho por peça, autor, diretor ou papel. Escolho pela patota." Além de ilustrar a tese anterior, essa declaração tem outra função muito importante: a de desequilibrar a balança vida/arte no sentido da primeira. Pouco dada ao terreno da teoria, ela concordaria com um dos lemas do desbunde udigrúdi, de que só uma vida nova proporcionaria uma nova arte. Não à toa, esteve presente em três dos filmes realizados na sede cinemanovista do desbunde, Parati (Fome de amor, Azyllo muito louco, Mãos vazias).

Mas falar de Leila Diniz jamais é completo sem se falar de Todas as mulheres do mundo. Filme feito exclusivamente para ela, como uma declaração de amor, o filme de Domingos de Oliveira deu ainda a definição de Leila que mais a seguiu: "mulher solar", a que sai sempre da fossa. No filme, Maria Alice é cândida como uma santa e selvagem como uma criança ainda livre dos grilhões do bom comportamento. Inocente, nos dois casos. Sente-se, contudo, que o furacão é apaziguado, e que o "corpo Leila" é capaz de muito mais do que a "alma Maria Alice" do filme. Mesmo assim, trata-se de um extraordinário personagem, e Leila soube reconhecê-lo, dizendo de Domingos que "é um dos poucos diretores que não usam a mulher como um objeto".

Questionada freqüentemente por seus modos, "nada femininos", era natural que Leila Diniz se questionasse sobre o que é uma mulher no cinema. E, obviamente, residia aí uma necessidade pessoal de desfazer essa imagem plácida da mulher, idealizada como a prostituta arrependida ou a mãe de família. Foi em busca da mulher arquetípica da resistência, a cangaceira Dadá (Corisco, o diabo loiro), e interpretou uma aproveitadora e conspiradora, evocadora de toda a força vulcânica da mulher em Fome de amor. Tinha como uma de suas maiores vontades o desejo de fazer um filme com Ingmar Bergman, o cineasta que antes de qualquer outro soube filmar os dilemas e o desejo sexual da mulher moderna.

Mas o que é Leila Diniz para o cinema? É antes de tudo o limiar de uma nova pesquisa, que se delineava no final dos anos 60 e se desencadeará em meados da década seguinte. Leila surge num momento novo para a arte da interpretação e da dramaturgia. O esquema da interioridade psicológica e o teatro idealizado burguês estão em cheque, e é preciso descobrir novas formas de interpretar. O corpo e os movimentos dessa atriz que não cabia em si mesma adequam-se perfeitamente às novas necessidades. Ela é muito mais uma presença do que uma interioridade, muito mais dona de uma incrível intuição do que uma profissional no controle de sua técnica, mas, acima de tudo, ela é imponente. Não fosse por sua morte trágica, poderia muito bem figurar no panteão das atrizes renovadoras e fortes do período: Helena Ignez (Copacabana mon amour), Adriana Prieto (Um anjo mau), Anecy Rocha (A lira do delírio).

Fome de amor, de Nelson Pereira dos Santos, é o palco ideal para o conflito de dois modelos de interpretação. De um lado, está Irene Stefânia; de outro, Leila Diniz. As duas são igualmente belas. Stefânia é mais técnica e controla melhor suas ações. Seu personagem é inclusive melhor, mais dado à expressão cênica. Mas aí irrompe Leila, num personagem adequado à sua atuação: forte, imprevisível, um corpo que afirma sua presença pela exterioridade. Tanto uma nova imagem da interpretação como uma nova imagem da mulher.

"Não me considero, absolutamente, uma atriz formada", dizia Leila Diniz na mesma entrevista ao JB. Dupla verdade. A primeira vai no sentido de não ter tido uma escola de interpretação, uma tradição e ensinamentos a seguir. A segunda é no verdadeiro sentido de "formada", o de completa, definitiva. Leila não tinha um método aplicável a qualquer personagem, ou traços distintivos que pudesse utilizar em qualquer papel. Tinha, entretanto, o senso raro e a intuição de aprender "com" seu personagem, de trabalhar "a partir" dele. Coincidentemente, talvez sua melhor atuação para o cinema não seja como protagonista, mas como intérprete do esquete que abre Amor, carnaval e sonhos. Antecipando em um ano a histórica interpretação de Anecy Rocha no também carnavalesco Lira, ela faz uma personagem que é pura exterioridade, quase reflexo automático, que destrói sua santinha em nome de um amor de carnaval. Enfim, a feminilidade reencontrada.