Portal Brasileiro de Cinema  Jacqueline Pitanguy

Jacqueline Pitanguy

 

Leila para sempre Diniz passou rápido por aqui e sumiu entre estrelas aos 27 anos. Entretanto, sua imagem de mulher bonita, jovem e sensual é ainda poderosa e muito presente, neste país onde não faltam mulheres bonitas, jovens e sensuais, onde as musas passam rapidinho. Este é um país que não cultiva memórias. Destruímos casarões e sobrados antigos, cachoeiras, matas, personagens e acontecimentos históricos, nos esquecemos dos poetas, músicos, artistas. Mas Leila permanece.

Porque há trinta anos falamos de Leila, nos reportamos à generosidade do seu sorriso e à espontaneidade de sua fala ? Porque Leila permanece?

É difícil responder. Para os amigos e familiares, Leila permanece na lembrança afetiva que acompanha as pessoas queridas. Mas não é essa a lembrança que a distingue. O desafio é entender porque Leila permanece na memória social, porque ainda hoje seu sorriso e sua alegria carregam a força política dos mitos fundadores de uma nova ordem. Falamos de Leila nos anos 1970, 80 e 90, viramos o século e continuamos a falar sobre ela.Por que Leila é para sempre Diniz?

Porque ela é ao mesmo tempo precursora e produto das profundas mudanças que ocorreram, nos anos 60 e 70 e transformam a relação da mulher consigo mesma e com as diversas dimensões de sua vida.

Os anos 60 e 70 são marcados, fundamentalmente, por dois grandes movimentos sociais. De um lado, pelos movimentos de libertação nacional na África, nos quais além da luta pela independência e formação de nações soberanas, colocava-se também, para os povos africanos, o grande desafio de “arrancar o colonizador de dentro de si" e de construir uma identidade calcada nas idéias de igualdade e soberania. Por outro lado, a segunda metade do século XX é também o momento de grandes transformações nas relações de gênero, pelo surgimento de um novo ator político no cenário internacional – o feminismo.

Na América Latina, e particularmente no cone sul do continente, esses são também os anos de chumbo das ditaduras militares, os anos de coerção e violência do Estado, de cerceamento das liberdades civis; anos de temor e também de resistência e engajamento na luta contra o regime militar. É nesse contexto que o feminismo, enquanto movimento social organizado, surge no cenário político do país. Apesar de o papel da mulher na sociedade já ter sido objeto de estudo de algumas brasileiras que contribuíram individualmente para o início deste debate nos meios acadêmicos, o movimento só tomou a forma de ação coletiva a partir de 1975, quando estrutura- se em grupos autônomos e organizações sociais. Trazia uma bandeira complexa para aqueles tempos, lutando pela democracia e, ao mesmo tempo, buscando qualificá-la, situando a questão das relações de poder entre homens e mulheres no centro de um projeto de sociedade verdadeiramente democrática.

Leila Diniz já não estava mais aqui em 1975, quando os movimentos de mulheres ocuparam espaço no debate público e quando se iniciou, lentamente, o projeto de abertura democrática. Leila foi personagem dos anos mais duros da ditadura, tanto do ponto de vista da repressão política quanto da imposição de uma repressão moralista e conservadora no âmbito dos costumes e relações pessoais. Seu comportamento era profundamente transgressor em termos da rigidez moral que acompanhou o projeto de controle social da ditadura em seus piores momentos.

Por onde entender Leila no contexto político dos anos 1966-71? Creio que um dos caminhos (porque, felizmente, os grandes personagens guardam muitos mistérios), é o fato de que ela era profundamente carioca. Creio mesmo que ela não seria possível fora do Rio de Janeiro, cidade irreverente, solar, ponto nevrálgico da resistência cultural. A força das figuras revolucionárias reside na combinação entre contexto social e características individuais. As condições históricas respondem pelas grandes transformações, mas, como dizia Sartre, certos indivíduos trazem consigo alguma coisa que não é só história e que contém as sementes da mudança.

Leila era carioca, vivia na zona sul, na praia, e amava com alegria na época em que a pílula anticoncepcional, à custa de altíssimas doses de estrogênio, trazia para as mulheres certo controle sobre sua fecundidade. Mas Leila ia mais além. Ela foi precursora de uma nova relação das mulheres com o seu corpo e a sua sexualidade, trazendo essa idéia de alegria, liberdade e sensualidade para a maternidade. Sem grandes discursos, a barriga redonda exposta ao sol, amamentando Janaína durante os intervalos da peça musical em que em estava atuando, Leila retirou a maternidade de dentro de casa, onde definhava, domesticada e assexuada.

Produto dos limites e possibilidades do seu tempo, ela, com inteligência, coragem e alegria, simplesmente sendo, construiu também um novo tempo do qual somos herdeiras, e também artífices, e pelo qual temos que zelar...

Leila, para sempre Diniz, presente.