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Álbum de família

Leila se parecia muito com papai. (Regina, irmã)

Meu pai era comunista, pregava a liberdade, dizia "tira-se a liberdade de um homem, tira-se a vida dele". Então, fomos educados questionando as coisas, nada muito imposto. Muita liberdade. Liberdade de opinião, liberdade de escolha. (Ligia, irmã)

Quando Leila foi conhecer a sua verdadeira mãe, a primeira reação foi de muita revolta, por terem escondido isso dela. Ficou meio baratinada, foi fazer análise. Mas logo passou a conviver com isso e ficou amiga das duas mães, querida pelas duas. "Eu tenho duas mães", ela dizia. (Ligia)

Meu pai foi o primeiro feminista daquela época, ele achava que as mulheres eram iguais aos homens, e isso na década de 50! Ele dizia que tinha de ser igual mesmo, fazia questão absoluta que as filhas estudassem, não dependessem de homem nenhum. (Regina)

Ele se separou e, por circunstâncias da doença de minha mãe, a gente foi morar com ele. O que não é comum, comum seria morar com mãe. Não sei quais os motivos que a levaram a não ficar com a gente, não sei se foi porque ela estava doente e talvez por isso não quis questionar, não quis brigar na Justiça, só sei que fomos criados por ele. (Elio, irmão)

Meu pai tinha um lado um pouco moralista sim, porque naquela época todo mundo tinha. Era impossível que ele não fosse. Ele não falava gíria, tinha um português extremamente correto, era muito severo com isso. Quando a Leila começou a aparecer falando palavrão, ele teve que fazer uma reforma na cabeça dele para aceitar. Só que Leila dizia palavrão e não ofendia ninguém, o palavrão da Leila não era pra xingar, era uma interjeição. Então meu pai mudou sua maneira de pensar e de agir e até morrer falava palavrão. (Regina)

Adorava o mar. Era uma pessoa que mergulhava a qualquer hora no mar. Ela ia "se abastecer", tinha tanta energia, nutria tanto todo mundo, que quando ela ia para o mar era como se fosse beber daquela fonte. À qualquer hora, de noite, de manhã. (Ligia)

Éramos cinco irmãos: o mais velho, Élio, eu e a Leila, do primeiro casamento de meu pai; do segundo casamento tinha a Ligia e a Regina. (Eli, irmã)

Era "irmã-mãe", uma mãe novinha, sete anos mais velha do que eu.
Gostosa, alegre, generosa, carinhosa, realmente um ídolo. Quando Leila se tornou realmente um mito nacional, foi como se eu dividisse
o meu mito com o Brasil. (Ligia)

A Lígia, nossa irmã caçula, teve uma relação intensíssima com a Leila, adotou Leila como uma espécie de mãe, de segunda mãe. (Eli)

Apesar de eu ser mais velha que ela somente cinco anos, para mim Leila era meio filha; eu tinha um certo sentimento maternal por ela. Nós nos separamos de nossa mãe muito cedo, ela era bebê ainda e eu tinha cinco anos de idade. Então, ela ficou sendo "minha irmãzinha mais nova", uma pessoa que eu protegia, achava que ela era frágil. Depois revelou-se nada frágil; mas a minha sensação sempre foi essa. (Eli)

Em uma época ela ficou meio misturada, com a cabeça ruim, bodeada, e me disse: "Regina, eu vou filmar, vou pra Minas, vou ver se levo a Ligia comigo porque eu tô num bode tão grande e quero que Ligia veja que eu também tenho bode, que eu não sou tão perfeita, que eu também fico deprimida". (Regina)

Leila dizia uma coisa que sempre levei em consideração: "o pudor é sinônimo de maldade. As crianças pequenas andam nuas porque
não têm maldade". (Regina)

Até a depressão dela era diferente. Uma vez, numa depressão dessas, eu estava na casa dela e ela tomou um porre, e nesse porre ela começou a dar as suas coisas. "Regina, toma meu açucareiro";
foi até o porteiro e entregou uma jarra; deu outra coisa pra vizinha.
O natural dela era dar coisas, era se dar, e ela foi dando tudo que tinha. (Regina)

Exibir aquele ventre livre, aquela barriga, na praia, no sol, orgulhosa, foi romper com anos de preconceitos. Eu admirava muito isso nela, como ela assumia o feminino, o feminino do corpo, não só para ter prazer, mas para ter a filha, ter a cria dela. Dar de mamar, filmar dando de mamar, tirar retrato dando de mamar. As mulheres já não estavam mais dando de mamar naquela época e Leila trouxe de volta o "ser mulher","ser fêmea". (Ligia)

Leila sempre teve uma alegria interior muito grande, era um traço dela. Lembro-me de que no Carnaval meu pai adorava tocar pandeiro. Éramos muito pequenos e ele tinha o hábito de nos levar ao centro da cidade para ver o Carnaval. Uma vez, a Leila começou a dançar vestida de baiana e juntou gente em volta porque ela fazia isso com muita graça, e de forma natural. (Eli)

Na época da ditadura, ela mesma tinha que tomar cuidado com a sua exposição, porque era uma pessoa muito visada. Mas ainda assim corria riscos terríveis, dando abrigo a amigos, a pessoas que nem eram amigos, a amigos de amigos, todos eram acolhidos em sua casa. Não media riscos, quando se tratava de ser solidária com alguém. (Eli)

Leila era muito meiga, não conseguia brigar com ninguém. Ela se magoava se a pessoa brigava ou falava mais alto com ela. Ficava triste, chorava, mas ela era incapaz de brigar. Só uma vez que Leila brigou sério comigo, quando eu peguei o diário dela escondido e fui ler, não o diário que ela escreveu da Janaína, mas o diário de adolescente. Ela ficou uma onça, foi a única vez que eu vi a Leila uma onça comigo. (Regina)

Houve um período em que se voltou muito pra dentro, não era essa figura exuberante em que ela se transformou depois. Acho que foi durante a adolescência que isso veio a desabrochar verdadeiramente, um traço que ela levaria para o resto da vida. (Eli)

Eu sempre dizia que ela tinha "alma de cigana", porque não parava, era como se ela buscasse alguma coisa que não encontrava, não sabia muito bem o que era. Leila estava sempre saindo de um lugar pra outro. Saía com os amigos, não tinha hora pra voltar. Dizia até logo, mas o até logo era até o dia seguinte, porque ela emendava uma coisa na outra. (Eli)

As pessoas de quem ela gostava ela respeitava, fazia coisas que ela não faria normalmente. Por exemplo, minha avó. Claro que ela não tinha condições de aceitar nada disso, uma pessoa viver com outra sem casar. Pois uma vez Leila fez a mamãe se vestir toda, sair e dizer pra minha avó que ia ao casamento da Leila. Ela levava o Domingos lá em casa e minha avó, que nessa época já não se levantava da cama, ficava perguntando: "e vocês, quando vocês vão casar?" Ela não ia se casar coisa nenhuma, sabia que não ia se casar, então ela fez a mamãe se aprontar pra dizer que ia par o casamento dela, só pra minha avó ficar contente, feliz, achando que ela tinha se casado com Domingos de Oliveira. (Nilse, prima)

Leila tinha loucura para ter um filho. Antes de ela engravidar, ela já tinha dito pra mim "tia eu tenho vontade de ter um filho, mas só terei no dia em que tiver confiança na pessoa que vai ser o pai". (Lucy, tia)

Quando a Jana nasceu, ela se revelou, realmente, uma mãe muito carinhosa. Queria ter parto natural, mas não conseguiu, teve que fazer cesariana porque o bebê não estava em posição favorável. Mas fez questão de amamentar, e efetivamente amamentou, o tempo todo. Tendo que trabalhar, com a Jana ainda pequenininha, levava a filha para o teatro, amamentava-a no camarim; vestia aquelas roupas de vedete e, de repente, começava a sair o leite, ela dava toda a atenção à filha. Enfim, ela incorporou a Jana e conciliou sua vida de mãe e de atriz dessa maneira. (Eli)

Eu estava trabalhando quando recebi a notícia da morte de Leila. Eram notícias meio desencontradas. Pensamos que ela pudesse ter perdido o avião, ela sempre perdia as coisas, era típico dela. Lembro-me que fomos todos para a casa do papai, ali na Anita Garibaldi, ficamos esperando a confirmação da notícia de que o corpo estava sendo trazido para o Rio para tratarmos do enterro. Foi muito traumatizante: durante quatro dias todo mundo chorando, chorando. Durante certo tempo procurei não ficar lembrando, nem vendo fotografias, e isso me ajudou muito a superar o trauma. (Elio)

Quando recebemos a notícia da morte de Leila estávamos em casa, foi uma coisa horrorosa. Às três da manhã tocou a campainha, era o Ruy com um amigo, que foi lá em casa contar do acidente. A gente não queria acreditar. Eu levantei, me vesti e fui para a casa da Baby, que era casada com Marcelo Cerqueira, que foi deputado e era advogado. Marcelo foi maravilhoso, ele que foi à Índia reconhecer o corpo da Leila. Passamos a madrugada tentando confirmar se era verdade que o avião dela tinha caído. A gente não queria se conformar, pensávamos que ela poderia ter perdido o avião, porque ela constantemente perdia o raio do avião. Mas, não. Ela não perdeu. (Regina)

Depois da morte da Leila eu fiquei amiga do Ruy. Até hoje tenho carinho por ele. Acho que ele fez o que pôde, do jeito que pôde. Ele não estava preparado para cuidar sozinho da Janaína. Era um homem que viajava muito, filmava. Dentro daquela vida meio nômade ele faz bastante. Ele assumiu a filha, montou uma casa para ela, assumiu a paternidade completamente. (Ligia)

No dia em que eu recebi a notícia da morte da Leila peguei um ônibus e fiquei andando dentro, dando voltas. Levei quase uma semana assim, pegava o ônibus, andava, chorava. Não conseguia trabalhar. Foi difícil, foi como se eu tivesse perdido uma filha. Mas para meu irmão foi pior, Leila era filha dele, e ele falava muito comigo, me dizia "sou um morto vivo". Ele era um homem muito inteligente, escrevia poesias. Quando ele morreu fiquei tão desorientada que rasguei, joguei tudo fora. Era funcionário aposentado do Banco do Brasil; quando foi nomeado para assumir um cargo em Vitória, onde ele conheceu sua primeira esposa, eu fui levá-lo na estação de trem, eu e minha mãe. Ele pegou minha mão e disse: "partiu o trem dando o sinal no trilho, tão horrível da partida minha, na estação o trem partiu e na estação ficou minha mãe e minha irmãzinha". Eu nunca esqueci, era menina. (Lucy)