Portal Brasileiro de Cinema  Maria Lucia Dahl

Maria Lucia Dahl

 

Nos tempos da Revolução

Foi nos anos 60 que conheci Leila . Eu, casada com Gustavo Dahl; ela, com Domingos de Oliveira. Nunca fomos amigas, pois eu era tímida. Tinha acabado de chegar da Europa, de onde trouxera os ares recatados (ou recalcados), e ela era a pessoa mais extrovertida que eu jamais tinha visto, de uma comunicabilidade espantosamente brasileira.

Apesar dessas diferenças, nossas vidas sempre se cruzaram de uma maneira ou de outra. Encontrávamo-nos em quase todos os points da época do Cinema Novo: na Fiorentina, no Zepppelin do Ricardo Amaral, no Varanda do Nelson Xavier, nos festivais de cinema em Brasília, e, um pouco mais tarde, na Globo da rua Pacheco Leão, onde ela ficava tomando cerveja antes da gravação, num botequim minúsculo que ela apelidou de "Bunda de fora", pois lá só cabiam duas pessoas e parte de uma terceira, cujo traseiro "sobrava" invariavelmente para o meio da rua. Era lá que ela se enturmava com o "pessoal da pesada", isto é, a equipe, a parte masculina e anônima de um programa de TV, numa época em que homens e mulheres constituíam grupos separados nas festas e reuniões. Também pertencíamos à mesma agência de modelos, em Copacabana, e fizemos os primeiros (e malfeitíssimos) comerciais para revistas, o que uma vez debochamos numa mesa da Fiorentina.

 
Cena do filme O donzelo.

Mas era na praia, em frente ao Posto Nove, que a nossa geração traçava a agenda do dia. Do social ao trabalho, tudo, absolutamente tudo, de bom ou de ruim, acontecia naquele pedaço "abençoado por Deus e bonito por natureza": começos e fins de namoros, casamentos se fazendo e se desfazendo, empregos, viagens, festas. Ali se reuniam todos os artistas e intelectuais da época numa espécie de coquetel multimídia, em que se ficava de pé com um copo na mão (de cerveja ou caipirinha) elaborando sinopses, roteiros, letras de música, ou simplesmente fofocando e paquerando entre um e outro mergulho na água indescritível do mar. Ali se encontravam "por acaso": Jabor, Cacá, Gustavo, Glauber, Calmon, Rogério Sganzerla, Julio Bressane, Nelson Motta, Marília Pera, Anecy Rocha, Helena Ignez, Gal Costa, Angela Ro-rô, Sonia Braga, Silvia Sangirardi, Antonio Pedro, Daniel Filho, Caetano Velloso, Dedé, Ney Matogrosso, Carlinhos Prieto, Chico Buarque, Marieta e... Leila Diniz.

Lembro-me do Chico perguntando: "vocês viram o Rato por aí?" O Rato era o personagem da Marieta na novela O sheik de Agadir, em cujo elenco também estava a Leila. Naquela época, novela não era levado a sério, os atores conceituados faziam teatro ou cinema, e essa novela em que a Marieta representava o Rato foi a primeira, que eu me lembre, que tinha gente amiga no elenco.

O Posto Nove também ditava a moda. As moças usavam os minúsculos biquinis de crochê confeccionados pela atriz Maria Silvia nas entressafras dos filmes e colocavam as mais coloridas cangas por cima. Algumas usavam colar e brincos, outras ousavam mesmo pérolas verdadeiras, num período em que não se ouvia falar em assalto.

Recordo-me da Leila novamente solteira, namorando um argentino bonito de cabelos pretos e olhos verdes, cujo apelido era Cachorro. E ainda me lembro dela, em Brasília, com o Nelson Pereira dos Santos rindo dos ingênuos palavrões que ela dizia adolescentemente na piscina do Hotel Nacional.

Foi Leila quem transformou o charme da fossa e da angústia do final dos anos 50 numa grande caretice, se perpetuado durante a rebeldia objetiva dos 60. E quando, pelo AI-5, o Brasil tornou-se "um imenso Portugal" foi ela quem revolucionou o comportamento dos jovens, enquanto os estudantes revolucionavam a política.

Durante o exílio, pegando uma carona do meu namorado (líder estudantil), voltei para Paris junto com uma enorme quantidade de estudantes. Lá, ansiávamos pelo Pasquim, que chegava pelo correio ou na bagagem de mais um que conseguira driblar a ditadura, pulando do Posto Nove para Europa, mesmo que não tivesse compromisso direto com a guerrilha ou com o movimento estudantil, mas apenas com a demolição dos costumes vigentes.

Através do Pasquim ficávamos sabendo quem "dançou", quem se safou, quem ia chegar. Nele, vi a famosa foto da Leila de biquíni e barrigão, simbolizando a famigerada liberdade que almejávamos tanto. Foi a última imagem que guardei dela.

Depois, o Leon Hirshman chegou lá em casa contando: "sabe quem vai chegar em Paris? A Leila, depois do festival de cinema de que ela vai participar na Austrália, com Mãos vazias.

 
Cena do filme A madona de cedro.

Eu, que já estava separada do líder estudantil e namoricando o Cachorro (o mesmo argentino que namorou Leila no Brasil), que estava na Europa trabalhando no Magic Circus do Jerome Savary, fiquei imaginando como encontrar com ela. Cachorro e eu tínhamos ido visitar uns amigos em Grenoble, e quando contei a ele que a Leila ia chegar, sujou geral. Ele ficou diferente, olhou atravessado para mim, botou João Gilberto no gravador e entrou numa viagem de Besame mucho com aquele sotaque baiano. Então me toquei, saí de fininho, peguei uma carona na estrada e o trem de volta pra Paris. Lá chegando, o mesmo Leon me disse que a Leila, causa indireta do fim do meu namoro com o argentino, tinha morrido num desastre de avião. Fiquei estupefata. Só pensava no sorriso dela...

Cachorro ia chegar de Grenoble enlouquecido de vontade de revê-la. Esperei-o chegar na casa dele. Não queria que ele soubesse aquela notícia devastadora por outros. Ele estranhou minha presença. Convidei-o para um café na esquina. Ele estranhou o convite. Então pedi uma cerveja antes de contar a ele que Leila tinha morrido. Lembro-me da expressão que ele fez – a boca semi-aberta, sem dizer palavra, como se tudo fosse uma brincadeira de mau gosto. Nos despedimos ali e voltei para casa, onde já estavam Glauber, Leon, Cacá, Nara e muitos outros exilados igualmente boquiabertos e impotentes. Diante da morte da mulher que conhecíamos que mais simbolizava a vida, ficamos todos irremediavelmente de mãos vazias.