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O caminho das pedras

Rose Marie Muraro

 

Os anos 60/70 foram os mais perturbadores e misteriosos do século XX. Tanto no Brasil como no resto do mundo, prepararam a cabeça de todos nós para o século XXI.

A transformação dos costumes apareceu como a ponta de um iceberg, quando os Beatles começaram a ter um sucesso estrondoso no início dos anos 60, e em meados da década quando surgiram nos Estados Unidos os movimentos pelos direitos civis e pela libertação da mulher e do negro.

O iceberg tinha começado a se formar depois da Segunda Guerra Mundial, com o "mal sem nome" das mulheres americanas – a insatisfação de voltar para casa depois de ter participado de maneira adulta no esforço de guerra – e também do outro lado do mundo com os 32 países da África Negra que se libertaram do domínio europeu. O Império Britânico estava "fazendo água" e despontava explosivamente o Império Americano. Por trás de tudo isso, uma enorme aceleração tecnológica havia trazido a televisão, os computadores, tornando as comunicações instantâneas, e principalmente a pílula anticoncepcional – pela primeira vez na história, as mulheres podiam separar prazer de procriação. As conseqüências disso seriam impensáveis. Por que ?

Ao mesmo tempo em que promovia todas essas transformações, o avanço tecnológico criava também a sociedade e a cultura de massas. Para vender cada vez mais produtos tecnológicos, o sistema fez mais máquinas do que machos e na segunda metade dos anos 60 as mulheres entraram em massa no mercado de trabalho. Em 1970, elas já eram cerca de 35 % da força de trabalho mundial.

O movimento feminista, que explode então na Europa e nos Estados Unidos, nada mais fez do que organizar a enorme energia que brotava do desejo das mulheres de obterem autonomia econômica e sexual, pois acabavam de ser criadas as condições históricas para isso.

Em maio de 68 irrompe a revolução da juventude em Paris. O quadro se completa com o início da guerra do Vietnã. A juventude americana se recusa em massa a ir para a guerra. Quarenta milhões de rapazes se casam ou entram para as universidades ou fogem para o Canadá. Um milhão se tornam concretamente desertores. Dos poucos que foram para a guerra, um terço sequer sabia pegar num fuzil. A maioria descobriu tarde demais que tinha sido manipulada para dar sua vida pelos interesses de uns poucos. A revolta das mulheres, negros e jovens era geral e se espalhou instantaneamente pelo mundo graças às novas tecnologias, que transmitiam as notícias em tempo real.

Assim, podemos dizer que a segunda metade dos anos 60 dividiu o mundo em dois: acabava o mundo tradicional que havia durado cerca de oito mil anos, com o início da sociedade agrária/patriarcal e escravista, e começava um mundo tecnológico que viria a plasmar o futuro de maneira irreversível.

No Brasil ...

Enquanto isto, no Brasil, outra transformação radical começava. No fim dos anos 50, a CNBB, por inspiração de Dom Helder Câmara, então secretário geral, inicia um movimento de âmbito nacional que mobilizou jovens estudantes secundaristas, universitários, operários e trabalhadores rurais, tendo em vista organizá-los para um trabalho de libertação política. A Igreja, por 1700 anos aliada dos poderosos, pela primeira vez na história assume concretamente a sua primitiva função de libertadora dos pobres.

Em 1959, Fidel Castro havia tomado o poder em Cuba e se tornado modelo para o resto da América Latina. No Brasil, o Partido Comunista, banido e perseguido pela direita há 500 anos no poder, não tinha influência nas massas, com medo de serem também elas perseguidas. Mas a Igreja tinha, e muito. No início dos anos 60, provou-se que era possível existir uma esquerda na Igreja, que por sua vez aceitava a oposição de interesses entre ricos e pobres mas rejeitava o materialismo dialético. Essa esquerda cristã e original, até então impensável pelos teóricos marxistas, acabou tomando o movimento estudantil e boa parte das organizações rurais e operárias. Na prática, foi contra ela que se realizou o golpe militar de 64, o primeiro dos muitos que o governo americano, através da CIA, organizou nos países da América Latina a fim de "libertá-la" da influência da União Soviética e de Fidel Castro.

A partir de 1965 não se podia mais fazer trabalho político. Isso culminou com a morte do estudante Edson Luís no Rio de Janeiro e o ato institucional nº5, que iniciou uma época de tortura e de repressão. É nesse momento que se intensifica o movimento de libertação individual, que vinha dos países ricos, como única coisa que restava principalmente para as camadas mais atuantes da classe média. Sem que ninguém percebesse, começa dentro da feroz ditadura militar uma nova espécie de levante silencioso das subjetividades. Já que não era possível a libertação coletiva, haveria ao menos a possibilidade da liberação individual.

Leila Diniz precursora

É aí que aparece Leila Diniz: professorinha, muito jovem, vai ser atriz e chega à televisão – ela morreu aos 27 anos, em 1972. Seus modos livres, seus palavrões assumidos e indicadores de uma catarse que todas as mulheres invejavam e desejavam, desde logo a tornam um mito. Um mito que só poderia se desenvolver nas circunstâncias históricas de transição para novos valores que descrevemos.

O impacto Leila Diniz não teria sido possível nem nos anos 30 nem nos 50. A própria Marylin Monroe, a maior deusa do sexo da mais popular das artes de então (o cinema), acabou assassinada pelo sistema que ela transgrediu. Aqui é interessante estabelecer uma comparação entre Marylin Monroe e Leila Diniz: Marylin fazia o jogo dos homens, tornando-se aquela mulher nua do calendário que todos queriam possuir. Ela levava duas horas por dia, todos os dias, para se "produzir". Usava os homens para chegar aos postos mais altos, e chegou. Hoje, sabe-se que ela não se suicidou, mas foi assassinada quando quis reunir a imprensa e dizer tudo o que sabia sobre a ligação dos Kennedy com a máfia e outras organizações criminosas. Não foi suicídio, mas queima de arquivo.

Leila, não. Ela fazia o seu próprio jogo. Era ela que escolhia os homens. Ela os ameaçava. É emblemática a primeira edição do Pasquim de 1969, em que ela aparece de cara lavada com uma toalha enrolada na cabeça e falando os maiores palavrões (que no Pasquim eram substituídos por estrelinhas) e que hoje, por causa dela e do Pasquim, falam-se normalmente. Aquilo teve um tremendo impacto e acabou mudando o comportamento das gerações jovens no Brasil (e também das não tão jovens). Por essa época, Leila tinha sido expulsa da Rede Globo pelo mesmo motivo: "excessiva" liberdade nas palavras e nos atos.

Ela foi a precursora de um novo tempo e Marylin, a última de um tempo que estava se acabando. Marylin morreu por ter tentado transgredir as normas do sistema e Leila morreu num ocasional e infeliz desastre de avião, quando seu comportamento estava sendo assimilado pelas novas gerações. Por isso Marylin ficou na memória coletiva como o arquétipo da mulher tradicional, a "vamp" infeliz porque punida por sua beleza. E Leila, até hoje, representa no inconsciente coletivo a alegria de viver, pura e simplesmente. E aí é que ela foi infinitamente mais transgressora do que Marylin.

Capitalismo e repressão sexual

Não foi à toa que a obra de Max Weber A ética protestante e o espírito do capitalismo foi considerada o livro mais importante do século XX em uma enquete feita pela Folha de São Paulo. Ele mostra que foi a ética protestante que originou o capitalismo avançado. Como?

Segundo Lutero, as obras sem a fé não valem nada, portanto a fé é mais importante do que as obras por ser de uma ordem divina, que não se mede com o humano. Por isso o humano é desprezado, principalmente o corpo, a sexualidade. Então, para conseguir o céu é preciso não se entregar aos prazeres corpóreos, pois estes levam ao inferno, e sim trabalhar sem recompensa nesta vida. O prazer é considerado o pior pecado porque foi pelo prazer que o homem se afastou de Deus – só a fé basta.

Assim, da maneira mais sofisticada, o protestantismo faz o que as outras religiões fazem: condena o prazer e santifica o trabalho, servindo, como as outras, ao sistema econômico de onde se origina. A repressão sexual e afetiva é, pois, condição essencial de salvação do humano.

Foi apenas nos anos 60/70 que isso foi questionado a fundo. A emergência da libertação do corpo, da sexualidade; as novas espiritualidades gozosas, como o tantra ioga, se expandem no Ocidente ameaçando o próprio fundamento do sistema. Nos anos 70, já não se conseguiam mais jovens para se alistar no exército ou dedicar sua vida ao crescimento das multinacionais, e isso foi esmagado no início dos anos 80. Neste mesmo ano, Ronaldo Reagan, Margaret Tatcher, Helmut Kohl e o papa João Paulo II e a Aids chegaram ao poder. Foi uma virada conservadora magistral que dura até hoje. A farra havia acabado.

E agora ?

O mundo muda numa aceleração mais intensa ainda. Os hippies são substituídos pelos yuppies (Young Urban Professionals), que tornam as empresas transnacionais cada vez mais poderosas. Nos anos 90, uma época de ganhos sem precedentes, elas dominam e sugam a energia do mundo agora globalizado, porém no início do século XXI as coisas começam a dar errado. A concentração de renda é monumental – 40 % ou mais do PIB mundial concentram-se nas mãos de 350 grupos; o número dos excluídos explode; jovens atacam as reuniões do FMI, da OMC, do G7. Os países afundam pouco a pouco. Começam atentados violentos contra a economia hegemônica. A globalização parece estar sendo abalada muito rapidamente, só os ricos a defendem. O grosso do mundo está cada vez mais revoltado. Os anos 60/70 nunca deixaram de fascinar a cabeça da juventude. Tudo indica que a fase conservadora da economia e do comportamento está se esgotando.

Acredito que ainda na primeira década do século XXI a mobilização popular no mundo inteiro alcance níveis intoleráveis para o sistema hegemônico. No centro dessa mobilização está o desejo de viver, da alegria de viver, do prazer, o que é mais perigoso para o sistema do que qualquer resolução econômica, e aí me lembro de Leila Diniz, que mostrou para as gerações posteriores o caminho das pedras.

Considero essa moça alguém que viveu sem ter consciência disso, dos caminhos do futuro. É o caminho da vivência do prazer que pode emergir no desejo autêntico de justiça. Porque justiça não rima com repressão e sim com a vida vivida até as últimas conseqüências.