Portal Brasileiro de Cinema  Ozualdo Candeias

Ozualdo Candeias

Entrevistado por Eugenio Puppo e Vera Haddad

Cinema Marginal

Pra ser marginal, teria de ser um tipo de cinema feito sem compromisso naquele momento, nem com o público nem com a censura. Todos esses filmes tidos como marginal têm tudo isso (...). O meu filme tem, por exemplo, um quê meio de experimental, mas por causa de um cinema de baixo custo e trabalhando só com principiantes, ou usando atores; essa é mais ou menos uma característica do meu filme, o que não quer dizer que isto seja marginal. Eu prefiro, como meu personagem, aquele mais ou menos excluído e aquele que nem procura por aquilo que era meio moda _ a pequena burguesia. Personagens também não têm isso; de alguma maneira eles são, eles querem viver.

A margem - filme precursor

O meu cinema é perfeitamente comercial, ele é mais ou menos embasado no godarismo, cinema de autor, né? Agora, nele não tem família nenhuma à margem de nada, o que tem é um grupo de gente que vive como pode _ não sei se isso teria sido opção dessas pessoas. Então o que eles poderiam ser? Estavam à margem do rio e poderiam estar à margem da sociedade (...). Com alguma característica de indústria, assim muito diluída, naquele momento foi criado o cinema da Boca do Lixo, e depois naturalmente o cinema brasileiro. Mas isso por causa da criação do Instituto Nacional de Cinema e depois da Embrafilme. Meu filme motivou um bocado de coisas, porque como ele fez um certo sucesso crítico a partir de Brasília. A margem ficou muito em evidência e agradou de certa maneira muito, muito, (...) cheio de simbolismo, etc. etc. etc.; (...) tinha sido feito por um motorista de caminhão. E, como motorista de caminhão, tinha que ser meio analfabeto; se um analfabeto fazia esse tipo de fita, um bocado de gente começou a dizer: "Se esse cara faz, eu também faço". E começou todo mundo a fazer, sabe? E fez naturalmente.

Porque fazer A margem

Um dia eu me preparei pra fazer longa-metragem... já tinha feito um monte de documentários, meu documentário que deu meio certo foi o chamado Polícia feminina... a fita foi muito premiada porque a polícia feminina no Brasil era a primeira polícia que estava sendo instituída. (...) precisava fazer um longa e naturalmente saiu A margem porque eu devo ter uma posição... uma consciência ou uma posição ideológica baseada nas ingratidões sociais (...). Depois de ter feito A margem eu passei a ter consciência de que deveria fazer o filme sobre a nossa cultura... não é bem pra criticá-la, é pra mostrar que as coisas não estão certas e que de alguma maneira isso talvez não tivesse chegado ao conhecimento dessas autoridades.

Eu não investi em futuro nem invisto hoje, quer dizer, logo no meu caminho eu tropecei no cinema, como tropecei em muitas coisas mais. Eu estou andando, o cinema está passando, olhei, marquei nele, só isso. Nunca me passou pela cabeça, e nem gostava muito de cinema também. Quando eu comprei caminhão você acha que eu queria ser chofer de caminhão?

Boca do Lixo e Cinema Marginal

Ninguém se reuniu pra fazer um cinema, ninguém discutiu "vamos fazer isso", não tinha nada de Cinema novo, não. Não era nada absolutamente nada. Cada um passou a fazer suas coisas à sua maneira, e isso deve ter durado muito pouco, porque depois cada um saiu fazendo a sua fita, atrás de público e tal da censura e tal.

Mas isso teria que acontecer e acontece em qualquer canto, (...) as pessoas se identificam por parentesco, por ideologias ou por um bocado de coisas. Então, um cara que pensava nisso ou naquilo por um tipo de cinema poderia se reunir, porque seria muito difícil, por exemplo, eu falar com Galante e com outros caras sobre cinema. Não era possível. Mas depois as coisas se equalizaram num determinado momento, lá pela segunda ou terceira fita. Carlão já fez fita que não tinha ideologia nenhuma, Sganzerla também fez e daí por diante. Mas no começo houve uma certa identidade, isso que você chamou de identificação, creio que tenha havido. Agora, quem acabou chamando isso tudo de cinema marginal, se eu não me engano, foi Roberto Santos. Claro que ninguém prestou muita atenção. Ele pintava na Boca e dizia "você fez essa fita?" , ele gostava muito de A margem, _ "mas essa é uma fita maldita, é uma fita marginal, isso não vai dar nada não, mas é muito bonita". Então ele disse "Ah, a fita de não sei quem também é uma fita maldita". E esse negócio entre maldito e marginal acabou ficando marginal.

Zézero / Godard

O Zézero é uma fita crítica à atitude do governo. Eles tinham lançado aquele negócio de loteca, então eu notei que o cara, pra jogar na loteca, não comia o sanduba ou o ovo na marmita porque tinha que jogar. Então eu fiz a história. O cara veio lá não sei da onde, chegou, começou a trabalhar numa obra... e mandava um dinheirinho pra casa. Mas de repente ele tinha que resolver o problema sexual, tinha que dar um dinheirinho para uma mulher, e tinha que botar o outro na loteca. E nesse negócio ele não mandou mais dinheiro pra casa também. E a família disse "Ah, não vem mais dinheiro, o que tá havendo? O que aconteceu lá?" E depois a reclamação por carta de que o dinheiro não estava chegando, e as pessoas estavam morrendo de fome... Eu falei do Godard não porque eu via fita dele, mas porque lia as entrevistas, o que ele achava do cinema e como ele deveria ser feito. Então eu achei que era exatamente uma proposta de se fazer um filme ao arrepio da fita americana.

Fórmulas

Hoje nos filmes, por exemplo, toda perseguição tem correria e desde que cinema é cinema toda vez que um cara foge ele nunca vai pra baixo, ele sempre fica subindo, e eu fico pensando que eu não vou subir porque aí eles vão me atirar lá de cima (...). Mas todo ele tem essa correria, e tem a correria de automóvel, correria de cavalo, correria de bicicleta e várias coisas. São fórmulas, que todo mundo usa. Eu não sei se é por falta de imaginação, por falta de não sei de que, que fica mais fácil fazer isso porque todo mundo tá acostumado.

Mojica

Se tivesse feito um horror inglês e tudo mais ele tinha quebrado a cara, porque horror inglês é uma coisa que custa muito dinheiro. Então, ele fez aquilo que eles chamaram de "meio primitivo e meio primário", e ficou um negócio muito bom. E fez um tipo de filme que tem uns curtidores no mundo ocidental. De vez em quando tem uma, um festival de fitas de horror, e a fita dele de horror, como Terceiro Mundo, é a melhor coisa que tem. Não existe nada no Terceiro Mundo ou na América do Sul tão boa como esta coisa do Mojica, assim tão emblemática, né? Isso que é importante. E a outra é que depois de 35 ou quase 40 anos ele ainda é o Zé do Caixão. Isso é que é ter competência.

Fim da Boca do Lixo

Ela acabou porque tinha que acabar, porque num determinado momento não tinha mais militares pra obrigar que as leis fossem cumpridas, e você perdeu o espaço; em síntese, é isso. Não tem espaço pra você pôr a fita, não tem mais filme. (...) Tinha uns puristas que achavam que o cinema boca do lixo era mal feito, que as mulheres não pareciam com as Catherine Deneuve, as Brigittes, nem com as Greta Garbo. Então achavam que era uma fita desprezível, só isso. Agora, esta fita evitou que se exportasse mais de um bilhão de cruzeiros pra fora! Isso é o que se tem que saber.

Filmes nacionais

O momento em que o cinema brasileiro estava perto de 25% de espaço, era o momento Boca do Lixo. Tinha perto de 25% de espaço, dava pra fazer cem fitas por ano. E com volta. Todo o cinema Boca do Lixo _ por exemplo, 90% _ deve ter rendido, mais de 95%, todo ele se pagou. Então, nós tínhamos 25% mais ou menos de espaço... cinema francês e italiano deviam ter 60% ou 70% de espaço do cinema dele. Segundo Costa Gravas, Solanas e mais um outro cara, neste momento o cinema americano já tinha reduzido pra 30% ou 35% o espaço do cinema italiano ou francês (...).

Shakespeare sem diálogo

Você já viu alguém fazer Shakespeare sem nada? Sem aquela metodologia, sem aquela linha? Eu fiz. E isso me valeu um prêmio em Curitiba, onde fizeram há dois ou três anos um concurso lá da embaixada dos ingleses. Eles fizeram pra ver qual era a melhor adaptação de Shakspeare feita em cinema. Pegaram todos e eu entrei, minha fita estava lá, passou e todo mundo tinha visto. E eu ganhei (risos), foi incrível, incrível, isso é incrível, mesmo, eu ganhei. Ganhei a adaptação. Estava o Kurosawa, o Laurence Oliver, todos esses caras na parada. Mas eu sei porque: exatamente porque eu fiz um negócio que não é aquele milenar que tá aí.

Recado para os jovens

Tenho pra falar que se foi ao cinema valeu a pena. E continuem indo ver filme brasileiro, se tiver filme na praça pra ver, porque vai ser meio difícil. É que o cinema é um negócio tão importante, foi tão importante principalmente para os Estados Unidos, que foi por causa da participação de uns 35% ou 40% do cinema americano que o governo americano impôs seu dedo na cara dos outros por tudo quanto é canto, esse tal de colonialismo cultural que estava muito na moda lá pelos anos 70.

Eisenstein / Griffith / Irmãos Lumiére

O Eisenstein fez um filme onde ensinou um monte de gente, construiu um filme numa moviola. Isso é dado.... E outra coisa que tem muita importância dos irmãos Lumiére, é a de pendurar as pessoas na parede. É o seguinte: os caras foram mostrar, na Amazônia, um filme para os índios e eles acharam muito bonito, só que perguntaram "porque que vocês dependuram todo mundo na parede?" O fato de os irmãos Lumiére terem dependurado as pessoas na parede foi muito importante porque foi possível fazer o espetáculo de maneira coletiva, e eles se propagaram.

Cinema brasileiro

Olha, tudo que foi feito ontem deve trazer ensinamentos hoje, como técnica de cinema, como e porque teve uma Boca do Lixo, porque que teve um cinema brasileiro naquele momento (...). Tem ensinamentos aí bem definidos. Só não vê quem não quer (...) porque outro dia o jornal estava todo eufórico, dizendo que tal empresa inaugurou 100 cinemas, não sei que mais. Então, eu já escrevi isso, quer dizer que os exibidores podem estar eufóricos, mas os produtores que querem fazer filmes não têm nada pra estarem eufóricos, porque esse espaço não é para cinema brasileiro.