Portal Brasileiro de Cinema  Telas em transe

Telas em transe

Álvaro Guimarães

Havia no ar uma selvagem alegria, junto com a fumaça dos baseados e dos incensos, a cítara de Ravi Shankar, a guitarra de Jimi Hendrix e muitos carimbos no passaporte: Nova York, Paris, Londres... Ali na esquina do Eletric Cinema apareceu, uma noite, Neville d’Almeida, usando um longo cachecol vermelho. Todos eram rebeldes com causa: é proibido proibir, um recurso eficiente para escapar da ditadura dos militares e da do proletariado. Segundo os críticos, o plangente vilão dos Dragões da Independência de Samba estava ameaçado pelos acordes eletrizantes de uns cabeludos antropofágicos, pequenos burgueses niilistas. Depois reconhecidos como tropicalistas, eles produziam a trilha sonora da seqüência de Antônio das Mortes, cansado de guerra, contra um dragão imbatível. Foi padrinho do Bandido da Luz Vermelha e num gesto impensado os dois atiram contra o sol. Lembra Acossado, de Godard? Com as bênçãos de Deus e do Diabo... Herdeiros do Cinema Novo (mesmo à sua revelia), também acreditavam numa câmera na mão e uma idéia na cabeça, e a penúria rodando as produções. Júlio Bressane cometeu um massacre nos códigos das patrulhas ideológicas com Matou a familia e foi ao cinema, um filme emblemático. Depois da primeira exibição em São Paulo, Jean-Claude Bernardet, com seu inacreditável sotaque, reveleou, quase em lágrimas: “É genial, a câmera parada, imóvel, só a estrada com os carros, indo e vindo, nada acontece... tudo acontece!”. Os Parangolés, de Hélio Oiticica, eram o figurino predileto dos artistas quando jovens, todos banidos para a marginália, para os porões do DOPS, eventualmente. Para as sessões de Velvet underground, de Andy Warhol. Para assistir Bang bang, de Andrea Tonacci, Meteorango Kid, de André Luiz Oliveira, e todos os super-8 do pedaço, uma febre do Oiapoque ao Chuí. Ivan Cardoso registrou Os últimos dias de Paupéria, e o poeta Torquato Neto encarnou um Nosferatu tentando sobreviver à caça às bruxas e vampiras. Era unânime a admiração pela Boca do Lixo, capaz de atrair José Mojica Marins e Carlos Reinchenbach. Piranhas do asfalto, de Neville d’Ameida, vem com fúria, uma antinovela urbana. Bandidos e prostitutas poéticos, drogados, martirizados por uma mídia que viria a consagrar a pornochanchada. Andavam na contramão, com suas películas em preto-e-branco, títulos insólitos para paisagens surpreendentes, inesperadas. Mas tudo já estava previsto pelo Deus da chuva e da morte, psicografado por Jorge Mautner. Antes da palavra “FIM”, uma justa homenagem a Rogério Sganzerla, que plantou para sempre em nossas mentes e corações a certeza de que, em se tratando de cinema e de história, nem tudo é verdade. Rosebud.