Personagens muito fortes estruturam os dois primeiros trabalhos de Rogério Sganzerla: o Bandido da Luz Vermelha, no filme homônimo de 1968, e Ângela Carne e Osso, neste filme de 1969. O primeiro é protagonista de uma tragédia impossível, avacalhada, posto que vivida no Terceiro Mundo. O outro, de uma comédia aviltante, já que expressão cínica da cena burguesa fascistizada. Com freqüência esquece-se que a excelência cinematográfica de Sganzerla implica também na “construção do personagem”, na fixação difícil de sua particularidade, por meios muito próprios ao diretor. O personagem de Sganzerla nasce de um tipo social sobredeterminado em suas características e sobre o qual o diretor descarrega ainda uma imensa carga de clichês, ícones e significados, atuais e imemoriais. Até o ponto em que, por excesso, esse personagem se desidentifica da origem arquetípica e passa a encarnar a sua bombástica singularidade na narrativa de Sganzerla. Tal processo exige grande confiança nos atores. Estes, por sua vez, têm que ser firmes o bastante para poder suportar a multiplicação aleatória de forças que lhes são dadas a encarnar, ao mesmo tempo em que reelaboram essas forças num corpus coeso, que possa definir sua diferença no filme. O perigo de a exuberância criativa do diretor desmantelar a tarefa construtiva do ator está sempre a rondar a cena. E constitui experiência maravilhosa poder testemunhar, a cada vez que assistimos esses filmes, o modo como Paulo Villaça (o Bandido) e Helena Ignez (Ângela Carne e Osso), bem como vários outros atores circundantes, conseguem presentificar em tipos inesquecíveis a matéria ruidosa e intratável do gênio de Sganzerla.

Alcino Leite Neto