Portal Brasileiro de Cinema  Pai contra filho (e vice versa)

Pai contra filho (e vice versa)

João Carlos Rodrigues

Em mais de um dos seus artigos, Glauber Rocha referiu-se ao Cinema Marginal como "bastardo" ou "aborto" do Cinema Novo. Um e outro são indubitavelmente filhos do pai, quer este os reconheça ou não. E com direito a teste de DNA, herança e tudo mais.

Mas, ao contrário de um número crescente de críticos e pesquisadores, muitos deles ilustríssimos, que realçam a identidade entre os dois movimentos, vou preferir frisar os traços de divergência entre o cinema do pai e o do filho. Acredito assim estar contribuindo para o debate, com idéias mais próximas da radicalidade compulsória da época em que esses filmes foram feitos. Tendo vivido o final da minha adolescência exatamente na virada dos anos 60 para 70, estarei também sendo mais fiel a mim mesmo.

Uma das coisas que primeiro me vem à cabeça a esse respeito são as influências (cinematográficas, literárias, musicais, teatrais e mesmo políticas) que originaram o movimento do Cinema Novo e sua dissidência Marginal.

A linguagem cinemanovista buscava construir um mundo novo através da política, vindo a reboque (mas não totalmente) a questão estética. Foi portanto encontrar suas fontes principalmente em cineastas engajados como Luchino Visconti, Luiz Buñuel e Akira Kurosawa - mestres incontestáveis de uma escrita clara e direta que beira o classicismo. Outros diretores foram importantes como inspiração de cineastas específicos e semi-marginais ao movimento: Roberto Rosselini e seu humanismo católico em Paulo César Saraceni; o cotidiano nonchalant de Truffaut, em David Neves. Na literatura, na música e nas artes plásticas, a maioria estava bem próxima de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Villa-Lobos, Portinari - da arte brasileira nacionalista e regional que vicejou nos anos 40 e 50, destruindo toda a tradição urbana e cosmopolita do Rio de Janeiro da República Velha: o intimismo de Machado de Assis, o bovarismo de Lima Barreto, a ironia de João do Rio, a sofisticação de Pixinguinha, etc. e tal.

Seu projeto político julgava-se marxista de esquerda. Digo julgava-se por ser também nacionalista, portanto paradoxal, já que a esquerda autêntica não pode nem deve ser nacionalista, mas internacionalista (aliás seu hino era a Internacional, que se propunha a substituir todos os hinos nacionais, fossem eles quais fossem). É portanto sintomática a contradição existente nos seus cineastas mais claramente politizados. Querendo sinceramente a democracia, foram procurá-la em fontes anti-democráticas como o getulismo, o prestismo, o castrismo e até mesmo o dirigismo stalinista. Como sabemos, por vezes os extremos se tocam. Será por mero acaso que o filme mais importante do movimento (Deus e o diabo na terra do sol ) deva seu nome ao livro de um sociólogo da extrema direita nacionalista, Brasil, terra do sol, de Gustavo Barroso? Ou que o CN tenha se infiltrado no final dos anos 70 no aparelho estatal da ditadura militar durante o governo Geisel - o único dos nossos generais presidentes que tinha um projeto coerente de administração nacional-popular (o tal socialismo de direita)?

As origens dos diretores do Ciclo Marginal são bem diferentes. Embora todos fossem ou se declarassem politicamente progressistas, suas preocupações principais sempre foram a subversão da linguagem cinematográfica e um amor pelo cinema que ultrapassou o ativismo político direto. Afinal, surgiram já durante os governos militares - ao contrário dos cinemanovistas, formados no período democrático de Juscelino. Suas influências mais óbvias me parecem ser o Jean-Luc Godard de Pierrot le fou, A chinesa e Week-end; os neo-expressionistas americanos do cinema B; e o deboche das chanchadas (daí o humor, ausente por completo nos filmes do Cinema Novo anteriores a Macunaíma ). E a literatura de Oswald de Andrade, Jorge Mautner, José Agripino; a arte conceitual de Hélio Oiticica; a música popular, de Mário Reis à Tropicália, passando por Jimi Hendrix; o teatro de Zé Celso Martinez Correia (em alguns cineastas de influência ainda mais forte do que o próprio Glauber). Tinham também entre si diferenças estéticas, fáceis de confirmar se compararmos o cinema agitado e tonitroante de Sganzerla e Trevisan, com os constantes silêncios da obra de Bressane e Candeias. Um dos mistérios deste movimento é ter insistido no formato tradicional (90 minutos), sem ousar (como seus primos de Nova York) filmes extra-longos ou extra-curtos.

Se o Cinema Novo utilizou a técnica da infiltração (almejando fundar uma indústria e conseguindo criar uma distribuidora estatal), os Marginais partiram para o confronto (fazendo filmes que ignoraram a censura e o mercado). Se o primeiro vinculava-se ao movimento internacional do cinema de autor, com sua poderosa caixa de som internacional (principalmente na imprensa francesa e italiana), o segundo antecipou cronologicamente muitas das "invenções" dos independentes americanos, mas amargou uma terrível solidão e um isolacionismo que lhe foi fatal.

Outra diferença fundamental me parece ser o enfoque dado aos personagens. Se no Cinema Novo eles tendem ao arquetipal, cada um representando a classe social à qual pertence, os Marginais me parecem um pouco mais individualizados. Se o Manuel de Deus e o diabo e o Fabiano de Vidas secas "representam" o camponês nordestino, os assassinos de O anjo nasceu ou os vagabundos de À margem são apenas eles mesmos. Esta diferença me parece mais pertinente do que as possíveis semelhanças técnicas entre esses filmes (plano-seqüência, câmera na mão, etc.).

Isso se acentua nos personagens femininos. Danuza Leão em Terra em transe, Isabella em O desafio, Maria Lúcia Dahl em O bravo guerreiro surgem como encarnações da burguesia decadente, tentando (no sentido diabólico do termo) desviar o personagem masculino da sua trilha idealista de "salvar a pátria". A Rosa de Deus e o diabo, na cena final, cai no chão e não chega à redenção do sertão virando mar, mas seu marido Manuel, sim. Que diferença para a Angela Carne e Osso da Helena Ignez em A mulher de todos, ou a Wilza Carla em Os monstros de Babaloo: tão dominadoras, tão antropofágicas e tão perigosas! Ou mesmo para a emancipada e cosmopolita Odete Lara de Câncer, única experiência marginal do mais importante diretor cinemanovista! Vale a pena assinalar que não houve mulheres cineastas em nenhum dos dois movimentos.

Nem tudo é perfeito. Pelo ponto de vista de hoje, 2002, ambos deixam muito a desejar no tratamento da minoria homossexual. Se no Cinema Novo esses personagens inexistem, alguns filmes marginais pecam por apresentá-los de modo caricatural e quase homofóbico.

Igualmente do ponto de vista geográfico (ou, se preferirem, geopolítico) encontramos na origem dos diretores mais divergências do que semelhanças. O Cinema Novo foi um fenômeno basicamente do Rio de Janeiro; além dos cariocas da gema, incorporou nordestinos e mineiros emigrados. Um dos seus pontos fracos foi exatamente não ter conseguido um ponto de apoio sólido em São Paulo. O Cinema Marginal, por outro lado, começou na Boca paulista e teve ramificações descentralizadas no Rio, na Bahia e em Minas Gerais.

Hoje, quando ambos se dissolveram pela ação do tempo, quase todas essas dessemelhanças que apontei, embora verdadeiríssimas, não têm muito mais razão de ser enquanto ideologia. Pertencem, diluídas e misturadas, à história do Cinema Brasileiro. Restaram os filmes. E as influências, não mais as que receberam, mas as que exerceram nos cineastas que vieram depois.

Mas, mesmo aqui, os resultados são intrigantes. A obsessão dos ex-cinemanovistas em implantar uma indústria nacional os aproxima (quem diria!) da Vera Cruz e da Atlântida - que tanto combateram 40 anos atrás. Seus filhotes fazem o cinema de papai-mamãe, a conspiração dos mauricinhos, o predomínio do bem-acabado sobre o conteúdo contundente. Por outro lado, os ex-marginais (ainda e sempre marginalizados) e seus poucos descendentes continuam fazendo (quando podem) um cinema artesanal, de invenção radical. Como o velho Cinema Novo, ao qual desafiaram há quase meio século.

Nestas pinimbas de pai contra filho (e vice-versa), é compreensível que estudiosos e mesmo alguns cineastas do segundo movimento, com a perspectiva histórica facilitada pelo tempo, assinalem possíveis semelhanças. Agora, me parece unilateral que o filho (marginal) volte a aceitar o pai (ex-novo), sem que a recíproca seja equivalente E essa injustiça, enquanto não for corrigida, só fortalecerá a desunião, jamais a convergência.