A HERANÇA

1971 . Ozualdo R. Candeias
São Paulo, 90 minutos, 16mm, p&b

 
 

Foi uma das mais originais e ousadas adaptações de uma obra de Shakespeare. Homelete (David Cardoso) volta para casa depois da morte do pai. Desconfia do casamento às pressas da mãe com o tio. O fantasma do pai lhe revela que o próprio irmão foi o assassino. Arma uma farsa em um circo, no qual violeiros cantam a história da morte de seu pai, fazendo seu tio perceber que Homelete sabe o que realmente aconteceu. Está instalada a tragédia.

 

Mesmo seguindo à risca a história de Hamlet, muitos acusaram Candeias de despreparo e descuido com o texto, apontando falta de “fidelidade”. Quase não há falas e nenhum diálogo. Em alguns momentos, legendas elucidam as ações ou remetem à obra do dramaturgo inglês, agora ambientada na paisagem rural brasileira. Um dos orgulhos da cultura mundial, a escrita de Shakespeare é substituída por ruídos, sons de animais e modinhas de viola. Outra “profanação” é a alteração do final da história: na peça, a herança de Hamlet fica com o primo Fortimbrás; no filme, ela é distribuída entre os colonos da fazenda. Mas a literalidade não interessa ao diretor. Ele é extremamente fiel ao espírito shakespeariano. Candeias faz um filme que, como Hamlet, comenta a própria dramaturgia. Muito já se escreveu sobre o fato de a estrutura dramática de Hamlet conter uma peça dentro da outra e de que, assim, Shakespeare estaria apontando que através da representação também poderíamos chegar à verdade. O que faz Candeias? Na seqüência do circo, a mais interessante de A herança, esse jogo, que evidencia a representação tanto da história contada como a do filme, é apontado através dos olhares entre as personagens. Como se não bastasse, durante todo o filme, o gestual dos atores (muito longe do naturalismo) deixa claro que aquilo, antes de qualquer coisa, é um filme, algo que não se pretende colado à realidade, apenas algo que significa. Como Hamlet, que para Shakespeare é, antes de tudo, uma peça. Sem sombra de dúvida, este filme é uma das heranças de Ozualdo R. Candeias, dono de uma cinematografia única, para a cultura brasileira.

Vitor Angelo

Cia. produtora: Long Filmes Produtora Cinematográfica

Produção: Cleuza Rillo, Antonio Alves Cury, Otávio Fernandes, Virgílio Roveda

Direção, roteiro e fotografia: Ozualdo R. Candeias

Montagem: Luiz Elias

Cenografia: João R. Camargo

Música: Fernando Lona e Vidal França

Elenco: David Cardoso, Barbara Fazio, Agnaldo Rayol, Zuleica Maria, Túlio de Lemos, Américo Taricano, Claudete Oliveira, Antonio Leocádio, Evelize Olivier, Antonio Lima, Juliane Domingues, Antonio Romano, Maria da Conceição, João Batista de Andrade, Carlos Santos, Deoclides Gouveia, Rubens Ewald Filho, Jean Garret, Clemente Viscaíno, Hélio Santana, James Alexander, Rosalvo Caçador