Jece Valadão

Entrevistado por Eugênio Puppo

 

Carreira

Tenho algumas fases importantes na minha carreira, como a participação no filme Rio quarenta graus [1955], no início do Cinema Novo. Depois Os cafajestes [1962], que foi a minha primeira produção, num ano feliz para o cinema brasileiro. Glauber Rocha lançava o Deus e o Diabo na Terra do Sol [1964], Roberto Farias lançava o O assalto ao trem pagador [1962] e o Anselmo Duarte com o Massaíni, O pagador de promessas [1962]. Participei desse movimento.

Depois dos Cafajestes, lancei Nelson Rodrigues no cinema, que foi uma ousadia. Nelson Rodrigues era proibido até no teatro. Ainda lancei Plínio Marcos com a peça Navalha na carne [1967], que estava proibida no teatro. Fiz uma série de coisas, mas quando o Cinema Novo começou a desvirtuar então passei para o cinema erótico, não o pornográfico; tem muita gente que acha que eu fiz filme pornográfico. Fiz comédias eróticas, sempre baseadas na literatura brasileira, em Marcos Rey, Janete Clair, Nelson Rodrigues e Plínio Marcos.

 
Jece Valadão, Lia Rossi e Nelson Rodrigues

Mas o Nelson Rodrigues era assim, você o amava ou você o odiava, não tinha meiotermo. Lembro-me que na estréia da peça Perdoa- me por me traíres [1957], em que ele atuou, a platéia se dividiu: metade aplaudiu e a outra metade vaiou. Tinha um vereador do Rio de Janeiro que começou a discutir, o público começou a bater boca, então ele puxou o revólver e deu um tiro para o alto, um correcorre... até isso acontecia nas peças do Nelson Rodrigues.

Foi nessa euforia que resolvi dizer para ele: "', Nelson, eu quero comprar o Boca de Ouro". Comprei a história dele, fizemos a adaptação, chamei o Nelson Pereira dos Santos para dirigir e produzi o filme. Acabei dirigindo várias cenas porque o Nelson teve que viajar, mas só tem o nome do Nelson; atuei também como personagem. E não tive o prazer de ter o Boca de Ouro. O cinema brasileiro era tão triste, tão terrível naquela época, que quando terminei o filme eu estava com a corda no pescoço, não tinha mais ar para respirar; aí veio um Jarbas Barbosa, sócio do Herbert Richers, e me ofereceu um dinheiro pelo filme. Acabei vendendo para ele.Vendi o Boca de Ouro por um Volkswagen, que foi o primeiro carro que eu tive. Quando eu fiz o Boca de Ouro, todo mundo desceu o pau em mim, achavam que eu era louco; mas depois todos começaram a fazer Nelson Rodrigues. E também foi assim quando eu lancei o Plínio Marcos, quando fiz Navalha na carne diziam que eu era louco.

Acho o Nelson Rodrigues um dramaturgo mais consciente e o Plínio Marcos um dramaturgo espontâneo. O Nelson retrata mais a moralidade, o Plínio retrata a realidade; são dois caminhos diferentes. O último Nelson que eu fiz foi A serpente, roteirizado pelo Alberto, meu filho, com a aprovação do Nelson; ele deu a história para o Alberto e eu fui convidado para ser dirigido pelo meu filho, foi um relacionamento especial. E A serpente também foi um filme odiado. A primeira vez que foi exibido, no Festival de Brasília, foi simplesmente execrado pela crítica, pelo público, pelos organizadores, por todo mundo. Mas eu gosto muito da fita, tem uma mise-enscène avançada e é um retrato do Nelson Rodrigues, representa o Nelson mais do que qualquer outro filme. Tem intimidade, essa convivência familiar.

Aceitei fazer o filme e depois me constrangi um pouco porque o filme era realmente desnudo, desnudando Nelson Rodrigues; e a mulher do meu filho, uma americana, atuava; – ele cismou de colocá-la como atriz, mas ela não é e nunca foi atriz, ela trabalhava atrás das câmeras, e ele, por paixão, cismou e a colocou para contracenar comigo. Eu estava me sentindo constrangido demais por contracenar com a minha nora, cenas fortes, de adultério. É a história de dois casais, duas filhas que são vizinhas, e a intimidade é separada por uma parede fininha. Então eles ouvem tudo, e começa o deslumbramento de umas das meninas pelo marido da outra e vira uma tragédia de traição. Era o primeiro filme do Beto, com todos aqueles sonhos mirabolantes de cenários, e eu era aquele produtor realista, querendo gastar o essencial para fazer o filme; mesmo assim estourou o orçamento. E era muito complicado, o filho dirigindo, o pai contracenando com a mulher do filho numa história do cunhado; é um constrangimento que eu não quero passar nunca mais. Eu estava me violentando fazendo aquilo ali... Acho que só quem vê esse constrangimento sou eu, não sei se o Beto vê. E isso não passa para o público; o que passa para o público é uma modernidade muito maior do que ele espera, acho que por isso tenha assustado muito. É uma coisa meio louca, é o último texto teatral do Nelson. Agora, o resultado eu acho esplêndido, o público é que não achou.

Família Rodrigues

Fui cunhado do Nelson, casado com a Dulce Rodrigues por catorze anos [eles se casaram em 1957]. Ele gostava muito de mim como ator, mas como cunhado ele não gostava muito, achava que eu era indigno da irmã dele. O fato de eu ter feito um filme chamado Rio quarenta graus, de ter feito um malandro e de eu ter trabalhado na rádio já era bastante para ele não me admitir. E até dou um pouco de razão para ele.

Conheci a Dulce numa peça do Nelson. O Rodolfo Mayer a dirigia em A mulher sem pecado [remontagem de 1957 da primeira peça de Nelson, de 1941] e faltava um ator para completar o elenco, para fazer o vilão. O Rodolfo assistiu Rio quarenta graus e indicou meu nome para o personagem, mas a Dulce não queria de jeito nenhum. Mesmo assim eu fiz o teste, passei e ele impôs a minha presença na peça. Foi a primeira vez que eu fiz teatro e a Dulce se encantou comigo. Ela era uma mulher muito pura e eu tremendamente cafajeste; eu estava é querendo me dar bem e começou uma atração forte entre nós.

No começo ela resistiu, não queria de jeito nenhum. Então, num ensaio, o Rodolfo Mayer marcou um beijo entre o meu personagem e o dela, e penso que ela achou que podia engravidar com o beijo; aí resolveu se casar comigo. Casamos rapidamente, urgentemente. Eu, solteiro, vindo de um debate ali de Rio quarenta graus, com aquela loucura de mais de um ano fazendo um filme dentro de um apartamento, só com homens. Me casei com ela e estava absolutamente convicto de que tinha dado o golpe do baú; mas não tinha coisa nenhuma, ela já tinha gastado todo o dinheiro que recebera, porque a Dulce estava montando um teatro [Dulce montou a Companhia Dulce Rodrigues] com o irmão.

Em 1930, quando o Getúlio Vargas entrou no poder, Mário Filho tinha um jornal [que chamava-se Crítica] e criticava muito o Vargas. Por isso foi preso mais de uma vez, e a família ficava pobre porque eles gastavam tudo, ganhavam e gastavam, até o apartamento era alugado. Chegando na prisão, como ele era um homem inteligente, Mário escrevia um livro, saía e o livro vendia horrores. Subia outra vez. Mário morreu e o jornal foi empastelado. A família entrou com um processo contra o governo e eles ganharam não sei quantos milhões, por volta de 1955. Cada um pegou a sua parte, a minha sogra [d. Maria Esther] ficou com metade. Um dos filhos foi fazer um jornal [Mário Filho], o Nelson foi escrever os livros dele, o Milton foi fazer cinema e a Dulce foi montar uma peça de teatro. Ela alugou o teatro; só financiava a peça. Ela fez Vestido de noiva, Valsa nº 6, que o Nelson escreveu para ela quando solteira ainda, e depois foi montar a peça A mulher sem pecado. Só que nas peças anteriores ela perdeu tudo, e essa peça era uma reabilitação. E funcionou, a peça deu dinheiro.

Casado, comecei a administrar a vida dela e daí eu fiz o Teatro São Jorge na rua do Catete, quando Nelson escreveu uma peça para mim chamada Viúva, porém honesta [1957]. Aluguei um espaço ali e fiz um teatro, trabalhei muito para criar uma fonte de renda. E o Nelson tinha escrito a peça para mim, para a inauguração do teatro. Quando tudo estava pronto, vi que ficou faltando a cortina da boca de cena, e o dinheiro tinha acabado. Chamei o Nelson, mostrei o teatro pronto e a peça toda levantada. Pedi para ele me emprestar o dinheiro da cortina, e lhe ofereci a primeira renda. Mas ele não emprestou de jeito nenhum. Ele era assim, não pagava nem um cafezinho, para ninguém. Todo dia ele ia para a bilheteria; a peça estreava e ele ficava lá, olhando o público comprar ingresso, controlando os ingressos que eram vendidos. Mas a peça não foi muito bem de público, então comecei a alugar o teatro. Casei em 1957 e em 1960 vendi o teatro para fazer Os cafajestes, que deu início a minha vida de produtor.

A dona Esther, mãe do Nelson, era uma matriarca. Os filhos todos criados [eram 14 irmãos], donos de jornal, dramaturgos, cineastas, tinham que vir almoçar com ela todos os dias; e eu era o único genro que participava dessa mesa do almoço, porque não podia, era só ela na mesa, na cabeceira da mesa e os filhos todos em volta, filhos e filhas. E ela era a matriarcal, enquanto ela não se servisse ninguém se servia, era aquele respeito, e todo dia eles iam lá para almoçar com ela. Num apartamento no Parque Guinle, um apartamento enorme onde tinha sido a embaixada da Itália.

E eu me lembro que tinha as irmãs que protegiam o Nelson, e todos eles protegiam a Dulce, porque ela era a caçula; quando ela nasceu [1929] o pai já tinha morrido. Por não tê-lo conhecido, ela não conheceu a grande euforia da família, que era considerada esbanjadora, rica, porque ganhava muito dinheiro. Com a morte, foram do dez para o zero; quando empastelaram o jornal, caiu tudo, então ela não gozou das delícias da vida. Todos eles tinham um compromisso com ela, de prover tudo aquilo que lhe faltara. O Nelson escrevia peças para ela, o Milton dava tudo a ela. Aí ela casa comigo. Então recebi junto com ela tudo isso, era o único que tinha acesso à família, à mesa de jantar. E a família Rodrigues era muito carismática, impressionante. Só que eles são todos para dentro, tanto que três das meninas morreram solteironas: a Stella, que era médica e morreu com quase cem anos, a Elsinha e a Helena, essas três não casaram.

O Milton Rodrigues não tinha dinheiro para almoçar, mas ele pegava táxi e mandava o táxi ficar esperando às vezes três, quatro horas... ele era desse tipo. Ele casou com uma senhora que era prostituta, teve uma filha ilegítima e a mulher largou dele. O Milton era daqueles que ganhavam dinheiro e abriam a mão. Sempre foi a ovelha negra da família, que não queria nem vê-lo porque ele era totalmente desprendido, só pensava na Dulcinha. O relacionamento dele com o Nelson era atritante. Ele fez uns filmes, jornal de cinema e fazia muito futebol. Foi o único que filmou a Copa de 1950, no Maracanã, e tem os direitos. Qualquer imagem que você tenha da Copa de 1950 pode estar certo que é do Milton Rodrigues.

E tinha o Roberto também, que era o grande caricaturista da época, amigo do Portinari. A família tinha quadros do Portinari, retratos do Mário Filho de corpo inteiro, retratos da mãe; não sei o que eles fizeram com esses quadros.

O Paulinho era o cunhado com quem eu me dava melhor, então nós nos visitávamos; eu e a Dulce íamos sempre jantar na casa dele ou ele vinha jantar conosco, com a Maria Natália, com os filhos. A essa altura, eu já tinha uma casa em Cabo Frio e todo fim de semana íamos para a minha casa, jantar e jogar baralho, ou íamos para a casa dele. Um dia a Dulce foi para Cabo Frio com meus filhos e eu fiquei sozinho em casa; eu morava ali no Flamengo. Decidi ir jantar com o Paulinho [era aniversário de Maria Natália, 21 de fevereiro de 1967] e telefonei para ele. Peguei o carro e fui. Cosme Velho, Laranjeiras, entrei na rua, quando eu parei na porta do prédio, sem nenhuma razão aparente, liguei de novo o carro e fui embora, sei lá o que pensei, era subir três andares de escada, mas fui para casa; fiquei um pouco em casa, tomei um banho e fui ao teatro. Quando saí do teatro, ouvi a notícia de que um prédio tinha caído. E aí eu fui ver, localizar o prédio. Fui até lá, encontrei ele, a mulher, a sogra e os dois filhos mortos, a família inteira morreu naquele desabamento. E era para eu estar lá. A gente estaria jogando baralho na hora em que o prédio caiu. Fiquei chocado, traumatizado, durante muito tempo, porque na realidade nada justificaria eu não estar com ele. Eu ia lá todo fim de semana.

A obra de Nelson Rodrigues

O Nelson buscou muita inspiração no seio da família, no comportamento de cada um; ele retratava a família inteira, é um drama atrás do outro. O universo rodriguiano está na vida dele, é lógico. Então ele já era o próprio personagem, um autopersonagem. Com catorze, quinze anos ele já estava escrevendo no jornal do pai, e isso deu a ele uma visão jornalística. E depois, os dramas na família, a prisão do Mário, a falência, o assassinato do irmão no lugar do pai, essas loucuras todas da política; e ele vai morar no subúrbio, começa a vivenciar a vida do subúrbio. Essa família um pouco neurótica,mas ao mesmo tempo carismática: tudo isso influenciou na formação dele, não há dúvida. Nelson não falava muito palavrão, não levantava a voz, era preconceituoso, quadrado até. Escrevendo ele se soltava, tudo oposto ao que ele era; e de repente estoura a bomba, vem à tona que ele tinha uma amante e dois filhos mais velhos que os filhos dele com a Elza, e que tiveram que ser reconhecidos. Não passaria na cabeça de ninguém ligado a ele que ele pudesse ter uma amante. Se você ler o livro do Ruy Castro, nem vai conhecer o Nelson. Ele sempre foi polêmico, escrevia desde os treze anos, já achava o Rui Barbosa uma besta. Inclusive, o cara que tinha coragem de dizer isso no jornal era um cara realmente predestinado a ocupar um posto na dramaturgia mundial.

Ele criou um estilo, criou personagens maravilhosos. Ele extrapola qualquer concepção que você tenha de dramaturgia; não se pode analisá-lo como uma pessoa normal porque nenhum autor normal narraria uma relação sexual dentro de uma cova [na peça Boca de Ouro]. E foi realmente constrangedor aquilo, uma relação minha com a mulher dentro da cova. A Odete Lara ficou horrorizada, ela não queria entrar de jeito nenhum; mas fez muito bem o papel. Foi antológico.