RASHOMON (RASHOMON)

Akira Kurosawa
JAPÃO, 1950, COR, 35 MM., 88 MIN.

 
 

A crítica brasileira foi pioneira em valorizar a cinematografia japonesa, com Kurosawa à frente. Cinéfilo e jornalista, Nelson certamente esbarrou nesses textos e assistiu os filmes com interesse, senão com adoração. Até porque toda obra dirigida ao grande público que contivesse experiências formais o mobilizava. E a obra-prima do diretor japonês levanta discussões bastante pertinentes aos dilemas existenciais dos personagens de Nelson.

O enredo é aparentemente simples. Em meio à chuva torrencial, alguns habitantes de Kioto conversam sobre um fait divers ocorrido a pouco: o assassinato de um samurai e o estupro de sua mulher. Através de flashbacks se reconstrói o testemunho de quatro personagens: um ladrão, a mulher, o morto e um cortador de lenha. Cada flashback apresenta a mesma situação, com peripécias e desenlaces diferentes, dependendo de quem a conta. Nenhuma das narrativas coincide e o filme não se preocupa em descobrir o responsável pelos crimes.

A narrativa em perspectiva múltipla trai fonte romanesca e seu ponto de inflexão é a obra do escritor Joseph Conrad. O relativismo científico e filosófico do início do século XX só acentuou a crise da noção de verdade e influenciou diversos campos artísticos, incluindo o cinema e o teatro. No primeiro costuma-se indicar Cidadão Kane como o exemplo maior de incorporação desse processo, não sem certo equívoco, repetido quando se menciona o filme como uma das influências diretas de Vestido de noiva. A narrativa wellesiana tentava reconstituir a verdade através de diferentes pontos de vista; mas havia uma aparente instância centralizadora, o jornalista. No segundo, a primazia coube à peça rodriguiana e de forma muito mais radical. Vestido de noiva não retomava a simultaneidade espacial — as marcas do texto eram bem claras quanto à necessidade de a cenografia diferenciar os três planos da narração —, mas instaurava-a em outra instância, a temporal, em que se confundiam realidade, memória e alucinação e os diversos momentos cronológicos da trama.

Vestido de noiva, entretanto, não está tão próxima de Rashomon. Sua perspectiva expõe-se através dos personagens, é psicológica, interna. O filme de Kurosawa adota uma perspectiva rigorosamente externa, pois sua ambição não é resgatar uma verdade interior, limitada e falível, embora definida. O objetivo é demonstrar a inabilidade do homem de saber a verdade, mesmo se sobrepuser os testemunhos factuais, tese que certamente abala certa concepção de justiça ainda em voga. Mais do que isso, Kurosawa revela o impulso natural do ser humano de reconstituir os acontecimentos à sua maneira. Essa fluidez do tempo já se insinuava na encenação de Dorotéia, mas atinge a mesma intenção do japonês na estrutura de Beijo no asfalto, onde um fato banal vai ser recomposto à exaustão sem uma motivação inicial mais definida nem alguma lógica subjacente depois. A pièce de résistance rodriguiana vai ser apenas a convicção individual diante do esboroamento dos sentidos e da verdade do mundo nos tempos modernos.

Hernani Heffner

PRODUÇÃO: Daiei

ROTEIRO: Shinobu Hahimoto (baseado nas novelas de Ryunosuke Akutagawa)

CENOGRAFIA: Shinobu Hahimoto

FOTOGRAFIA: Kazuo Miyagawa

MÚSICA: Takashi Matsuama

ELENCO: Toshiro Mifune, Machiko Kyo, Massayuki Mori, Daisuke Kato