Portal Brasileiro de Cinema  Terceira fase: mítica (1944-52)

Terceira fase: mítica (1944-52)

Caco Coelho

 
 
 
 
 
 
 

Meu destino é pecar (1944) — primeiro dos cinco romances assinados por Suzana Flag, principal heterônimo de Nelson. Publicado originalmente como folhetim, em 78 capítulos, no Jornal, dos Diários Associados, entre 17 de março e 17 de junho. No mesmo ano foi lançado em livro e, em dois anos, vendeu 50 mil exemplares.Virou novela de rádio em 1945. Conta a história de Leninha, obrigada por pai, mãe e irmã a casar com Paulo, personagem constante na obra de Nelson. O beijo em troca da perna mecânica da irmã já demonstra a habilidade que o escritor terá em colocar lado a lado o patético e o humorístico, eixo central de sua obra. A amante vinda do além, que mantém a dúvida se está viva ou morta, aparece aqui e se espalhará por vários outros romances. Livro relançado em 1998 pela Ediouro.

Escravas do amor (1944) — o segundo romance de Suzana Flag também foi publicado no Jornal, como folhetim (oitenta capítulos), entre 25 de junho e 26 de setembro, imediatamente depois de Meu destino é pecar. Em 1946, foi transformado em livro. Já no primeiro capítulo o noivo se mata na frente da noiva. A mãe da jovem comemora ao saber que a filha nunca o havia beijado: "Então, eu sou mais feliz. Porque a mim ele deu beijos e a você não". O clima desenvolve-se quase por completo em uma única noite. Planos e subplanos, aparições, mortes misteriosas recheiam essa história bem anos 40. O livro foi reeditado pela Companhia das Letras em 2002.

Álbum de família (1946) — a terceira peça de Nelson ficou proibida durante dezenove anos devido ao alto número de incestos. No depoimento intitulado "Teatro desagradável", de 1949, Nelson afirma: "a partir de Álbum de família enveredei por uma caminho que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito". Com uma quantidade enorme de incestos, a peça visa criar o tifo e a malaria na platéia. Jonas, personagem principal, açoita a esposa, Senhorinha, com o amor por meninas de onze a treze anos. O amor adolescente, traduzindo o amor do pai pela filha, também marcará o teatro de Nelson. A peça foi apresentada pela primeira vez no Teatro Jovem, no Rio de Janeiro, em 1967, com direção de Kleber Santos.

Anjo negro (1947) — a quarta peça de Nelson foi encenada pela primeira vez no Teatro Phoenix, no Rio de Janeiro, em 1948, com direção de Ziembinski, após ter permanecido interditada por mais de um ano. Foi o próprio Nelson que, como estratégia de marketing, promoveu a interdição da peça: imoral, indecente eram algumas das palavras do cartaz de divulga- Nicete Bruno em Anjo negro ção. Chegou a ser cogitada para estrear na Broadway. A história se dá em torno do amor dos irmãos Ismael e Elias — este cego — pela mesma mulher,Virgínia. Pela primeira vez no Brasil, o protagonista de uma peça era negro — mas o personagem teve de ser encenado por um ator branco com o rosto pintado. O negro tem o desejo ardente de ter um filho branco, daí assassinar os próprios filhos no tanque no fundo da casa, a cada novo parto. O clima soturno e religioso marca o ritmo da peça.

 
Nicete Bruno em Anjo negro

Minha vida (1946) — o terceiro romance de Suzana Flag foi publicado originalmente como folhetim (26 capítulos) na revista mensal A Cigarra, dos Diários Associados, entre julho de 1946 e fevereiro de 1947. Nesse período, a revista transformou- se no mensário de maior circulação do Brasil, aumentando a tiragem de 80 mil para 105 mil exemplares. O romance saiu em livro antes mesmo do término da publicação seriada. É uma autobiografia de Suzana Flag, um dos poucos textos de Nelson narrados em primeira pessoa. No romance, ela conta ter perdido o pai e a mãe, aos quinze anos, por causa de uma traição do casal. Pouco tempo depois é arrastada para uma ilha deserta pelo brutal tio Aristeu. Na abertura, Suzana se define: "gosto de ser pequena, de dar aos homens uma impressão de extrema fragilidade e de me achar, eu mesma, eternamente mulher, eternamente menina". Essa definição da personalidade da autora, assim como as características estéticas próprias desta fase, nos fazem acreditar que Suzana Flag seria um heterônimo, e não um pseudônimo, de Nelson Rodrigues. O livro foi relançado pela Companhia das Letras em 2003.

Senhora dos afogados (1947) — a quinta peça de Nelson Rodrigues foi encenada pela primeira vez no Teatro Municipal, no Rio de Janeiro, em 1954, com direção de Bibi Ferreira.Transformada em especial de televisão por Antônio Abujamra, em 1985. Possivelmente inspirada na peça O luto assenta a Electra, de Eugene O'Neill. O mar, de certa forma presente no título da peça, é uma das obsessões de Nelson, como destino dos suicidas. A moira, presente na maldição da família Drummond, assim como o coro, são influências do teatro grego. O assassinato da prostituta para redimir a mulher e os tipos populares — como o assobiador Sabiá, e a Gorda com as pernas cheias de varizes — são recursos utilizados com freqüência por Nelson.

Núpcias de fogo (1948) — o quarto romance de Suzana Flag foi publicado originalmente no Jornal, como folhetim (61 capítulos), entre 4 de julho e 12 de setembro. Traz a história das irmãs Lúcia — outro personagem constante de Nelson — e Doris, diametralmente opostas na forma de amar, mas não na intensidade. A crueldade da tia Clara é típica dos personagens folhetinescos, e o ingênuo Carlos, bonito demais para um mortal, foi inspirado no irmão Roberto Rodrigues. Republicado pela Companhia das Letras em 1997.

Dorotéia (1949) — a sexta peça de Nelson foi encenada pela primeira vez em 1950, no Teatro Phoenix, no Rio de Janeiro, com direção de Ziembinski e cenários de Santa Rosa, repetindo a fórmula de Vestido de noiva. Tem todas as características de uma peça de fechamento de fase, pela consição e extremos de linguagem, pode ser considerada como uma obra de referência na distinção entre as fases estéticas do autor. Aqui, o poder das tias pudorosas e censoras, manipuladoras da vontade alheia, é mais fortemente demonstrado. O sexo como pecado, a doença como purificadora da alma e a feiúra desejada são objetos alcançados com maestria, num ambiente opressor, sem quartos. A náusea avessa ao desejo, simbolizado por botas no lugar do ser amado, beira o grotesco. É a mais bem realizada das tragédias.

 
Nelson discute com a Censura

Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo (1949) — "Myrna escreve" era o nome da coluna de cartas que Myrna, heterônimo de Nelson, manteve, durante 144 dias, no Diário da Noite: uma mulher, com uma tarja negra sobre os olhos, que dá conselhos de modo franco. Fruto de conhecimentos e estudos muito suspeitos, Myrna diz coisas eternas, "resolvendo" problemas aparentemente insolúveis. O diálogo estabelecido com as leitoras, reais ou imaginárias, constitui um modelo único na literatura. Chega a usar o princípio platônico da unidade primitiva do homem para dar as razões do amor. Uma seleção dessas cartas, organizada por Caco Coelho, foi publicada pela Companhia das Letras em 2002.

A mulher que amou demais (1949) — o único romance de Myrna foi publicado originalmente na forma de folhetim (26 capítulos), entre 18 de julho e 18 de agosto, no Diário da Noite, jornal de maior circulação do Brasil na época, órgão dos Diários Associados. Lúcia, num passeio na véspera do casamento, está parada num cruzamento de rua; atrás dela pára Carlos, e ela imediatamente percebe que irá amar sem limites aquele homem. O crime como vingança do amor proibido e a figura da amante vinda do além são ingredientes dessa história de excesso e desgraça. O livro foi reeditado em 2003, pela Companhia das Letras.

Valsa nº 6 (1951) — a sétima peça de Nelson é seu único monólogo e foi dedicada à irmã Dulce Rodrigues. Estreou no Teatro Serrador, Rio de Janeiro, no mesmo ano, dirigida por Henriette Morineau. É uma espécie de Vestido de noiva às avessas: uma jovem de quinze anos, que já morreu, tenta lembrar-se do que aconteceu em vida. Nelson teve a idéia da peça ao ouvir, enquanto tomava café na Cinelândia, a trilha do filme À noite sonhamos: a valsa nº 6 de Chopin. É a peça em que o rigorismo das rubricas fica mais exposto.

 
Nelson,Dulce Rodrigues e Henriette Morineau na estréia de Valsa nº6

O homem proibido (1951) — o quinto e derradeiro romance de Suzana Flag foi publicado originalmente no recém-surgido jornal Última Hora, como folhetim (79 capítulos), entre 31 de julho e 3 de novembro. Concomitantemente, Nelson escrevia a coluna diária Atirem a primeira pedra, dramatizando os crimes do cotidiano, que precedeu A vida como ela é… Como em várias das notícias policiais sobre as quais Nelson escrevia, tudo começava num bar. Daí as juras de amor infinito, as trocas de olhar, os desejos coincidentes. Depois, a volúpia da velocidade, o acidente e a cegueira, propiciando a paixão pelo médico que socorre Joyce no hospital. Dr. Paulo, com voz sedutora, é desejado também pela prima, Sônia. Foi relançado em 1981 pela Nova Fronteira.