Portal Brasileiro de Cinema  Do teatro ao cinema: o jornalista de Nelson Rodrigues

Do teatro ao cinema: o jornalista de Nelson Rodrigues

Stella Senra

 

E vou provar o seguinte, querem ver? Que é falsa a família, falsa a psicanálise, falso o jornalismo, falso o patriotismo, falsos os pudores, tudo falso!
Diabo da Fonseca, em Viúva, porém honesta (1957)

Mesmo na boca do Diabo e no tom da farsa, o desafio consegue resumir toda a descrença, o desencanto e o pessimismo de Nelson Rodrigues. A família, a ciência, o jornalismo, o patriotismo, a moral burguesa — tudo vai de cambulhada nessa desaprovação geral. Das ruínas da vida privada à falência da esfera pública, o teatro de Nelson mapeou um território de heróis que se consagraram pela canalhice, pela mediocridade, pela pequenez de mundo, pelos preconceitos e por valores gastos.

O jornalista, ao lado de uma coleção de profissionais — médicos, psicanalistas, delegados, funcionários públicos —, é uma das presenças mais constantes nessa "imensa e repetitiva comparsaria" criada pelo dramaturgo, como a chamou Décio de Almeida Prado. Manipuladores da opinião pública preocupados unicamente com a tiragem dos jornais, os cínicos jornalistas de Nelson não são, entretanto, os únicos canalhas confessos desse teatro, nem parecem muito distantes do personagem similar que o cinema criou e explorou quando teve esses profissionais na mira.

A visão corrosiva de Nelson não tem origem na inspiração cinematográfica, que, aliás, forneceu ao seu teatro alguns dos mais ricos e produtivos achados. Ela apenas estende a essa profissão o olhar que o dramaturgo voltou para a maioria de seus personagens. Do mesmo modo, ela não implica em nenhum tipo de crítica à imprensa como instituição — pois a tarefa se acomodaria mal num teatro voltado para a condição trágica da existência, que preferiu recriminar, antes, a moral burguesa, os costumes, o mundo das aparências. O que não significa que os estereótipos criados pelos filmes de jornalista não tenham sido usados por esse autor fascinado pelos clichês. Em Viúva, porém honesta, ele anotará na rubrica que apresenta o redator-chefe Pardal: "usa tapa-luz de jornalista de cinema".

 

O universo da imprensa — sobretudo o da imprensa popular carioca, ao qual Nelson Rodrigues sempre esteve ligado — é presença reiterada na obra do dramaturgo e uma das fontes mais férteis de sua mitologia. Da transposição de elementos desse universo surgiu o que Maria Lúcia Campanha da Rocha Ribeiro chamou de "contaminação ficcional" dos personagens.

Mas foi o trânsito de seu teatro entre o mundo da comunicação e o do mito que favoreceu a emergência do personagem jornalista, elo entre esses dois mundos. Uma vez que o cunho trágico do teatro rodriguiano manteve, mesmo que sob a forma degradada, as figuras do coro e do oráculo, o jornalista de Nelson gravitará entre essas duas vozes: ele será, a um só tempo, o sintoma e o artífice da desqualificação dessas duas instâncias que falam o mito e manifestam a fala do povo.

Mentiroso e manipulador, esse jornalista está associado ao que Décio de Almeida Prado chamou de "flutuações da opinião pública", que, juntamente com as superstições suburbanas substitui, no teatro do dramaturgo, o destino trágico grego. Assim ele atuará, por exemplo, em Beijo no asfalto, moldando, de acordo com seus interesses, a opinião dos vizinhos e da família. Além de ser o operador de um descrédito que atinge as vozes que aciona, o jornalista ainda retoma — embora em tom menor — a voz do coro: é o que acontece quando o locutor verborrágico reconta, na forma do kitsch, a história do bicheiro de Boca de Ouro. Muitas vezes o jornalista interferirá diretamente na vida dos personagens, como acontece com o Arandir de Beijo no asfalto: próximo do oráculo, ele não atenderá, no entanto, às diretrizes do destino, dobrando-se, antes, ao imperativo das manchetes e ao aumento das tiragens.

A extração moderna dos personagens de Nelson, seu caráter urbano voltado para a cultura do consumo e da informação, favorecem a presença do jornalista, um dos principais agentes da modernização. É ele quem desafiará o comportamento acanhado e os pruridos suburbanos dos personagens e os aliciará para participarem de seus golpes.Tradutor da mitologia engendrada no cotidiano da periferia do Rio de Janeiro sobretudo na provinciana Zona Norte — para o universo moderno da comunicação, ele tirará proveito do falatório e das intrigas, e os colocará para "render" no plano da circulação do discurso.

Por fim, o próprio caráter do realismo rodriguiano, que Luiz Arthur Nunes descreveu como "realismo processado", na sua procura de desmistificar o "fundo falso das coisas", contribui para precisar a crítica à atividade do jornalista, esse criador, por excelência, de clichês e fórmulas destinadas a perpetuar as aparências. Além de responder às exigências "constitutivas" desse teatro, a presença do jornalista será também garantida pelo fascínio do dramaturgo por personagens de extração popular, dos quais ele é um dos mais atraentes e pitorescos.

 

Mas, entre o mito e a realidade, o jornalista permanecerá apenas como mediador, sem nunca se tornar um personagem principal. Ele ocupará, sim, um lugar de destaque na articulação dramática, seja ao desencadear a ação (Beijo no asfalto), seja ao acionar a narrativa (Boca de Ouro).

Boca de Ouro

Nessa peça de 1959, o repórter Caveirinha — o nome define o destino profissional investiga — a vida do bicheiro Boca de Ouro, figura mítica carioca. Venerado no subúrbio como hoje são os chefes do tráfico nas favelas, tanto a trajetória como a função do bicheiro lhe conferem, segundo Décio de Almeida Prado, estatura de mito: milionário de extração e modos populares, portador da única chance de enriquecimento repentino, sua atividade faz aflorar, mesmo que na forma abastardada do jogo de azar, a figura do destino, tão prezada na tragédia.

O dramaturgo aproveita a morte de Boca para expor a sua hierarquia jornalística e mostrar a escala de valores privilegiados no seu teatro. Da casa da amante, o diretor do jornal decide a posição do periódico: tratar como "cancro" o bicheiro que fora elogiado no dia anterior; em meio a piadas e insinuações maldosas da redação, o redator-chefe puxasaco transmite a ordem ao repórter ambicioso: entrevistar d. Guigui, ex-amante do bicheiro, e arrancar dela a história de um crime, desses que explodem em manchetes e arrebentam as tiragens.

Como o repórter de Cidadão Kane, Caveirinha é aquele que vai acionar as narrativas, três delas, que variam segundo os afetos cambiantes de d. Guigui. Mas, enquanto o jornalista de Welles se limita a perguntas objetivas e se reduz, na maioria das vezes, a uma sombra na tela, Caveirinha é over: instiga e provoca, manipulando os sentimentos da dona; mete-se na história e a conduz. É, aliás, a falta de escrúpulos do jornalista, seu cinismo e a sordidez com que explora os sentimentos alheios que ensejam o grande achado da peça: o uso de sucessivos flashbacks contraditórios, que tornam plausível a coabitação dos três relatos inconciliáveis. O jornalista não cobra coerência da fonte, pois, na tradição rodriguiana, só lhe interessam o aspecto escandaloso e o sensacionalismo, que lhe garantirão boas vendagens.

Há na peça outro personagem ligado ao mundo da informação: o locutor de rádio que cobre o enterro do Boca de Ouro e que traduzirá, em chavões jornalísticos, a trajetória do bicheiro. Esse personagem retoma a voz degradada do coro, que também aparecera em Álbum de família, na intervenção cômica de um speaker, caracterizado pelo autor como "uma espécie de opinião pública" a interferir na ação com comentários "de mau gosto hediondo" e "informações erradas sobre a família".

O personagem do locutor não obedece, contudo, ao molde realista de Caveirinha, apesar da recomendação de Nelson para que ele fosse composto "de modo bem característico" (inspirado no radialista Oduvaldo Cozzi). Caricato e com "adjetivação pomposa e vazia", sua função é traduzir (e reduzir), em oposições simplistas entre o bem e o mal, o mito suburbano para além de seu espaço de origem. E a peça aproveita para recuperar a imensa popularidade do rádio no Brasil dos anos 50, ressaltando o poder da transmissão ao vivo e seu tom mais simplista que o da imprensa escrita.

Já no filme de 1962, Nelson Pereira dos Santos retira de Caveirinha a narração dos feitos que fizeram de Boca um herói do subúrbio — tarefa que, de resto, Nelson Rodrigues não confiaria aos seus jornalistas —, e cria um prólogo com os episódios que estariam na origem do mito. Apesar de a inspiração neo-realista ter levado as cenas para as ruas do Rio, onde Leleco e Celeste se misturarão aos passantes anônimos, Caveirinha merecerá o mesmo tratamento dramático da peça, e será visto apenas em interiores — redação, casa de d. Guigui. Cabe ao locutor, misturado à multidão na porta do necrotério, o único momento de encontro de um jornalista — afinal, um profissional das ruas — com o público. Os closes dos rostos silenciosos e opacos dos curiosos, que não demonstram nenhuma emoção, atuam como uma espécie de equivalente visual do coro, evidenciando a separação e a solidão da voz do locutor (sua degradação), e fazendo com que suas palavras caiam no vazio, despotencializadas. A impenetrabilidade dos rostos, seu "não-saber", que contrasta com a antiga sabedoria da voz do povo, é a contrapartida da eloqüência falsa do locutor.

O cineasta acrescentou ainda um terceiro tipo de jornalista, também afinado com a fauna rodriguiana: ao chegar à agitada redação, Caveirinha passa por um imperturbável homem de óculos, que escreve uma matéria de crítica às instituições. Com atitude e vocabulário frontalmente opostos ao linguajar tosco e ao comportamento vulgar do resto da redação, esse novo personagem recupera, em tom irônico, a crítica que Nelson Rodrigues fazia à imprensa de seu tempo: a frieza de seu tom evoca a modernização dos jornais, que agora abrigavam profissionais não mais formados na paixão e no calor do dia-adia, mas de extração mais intelectual; o vocabulário pedante atesta o expurgo do mau gosto e do kitsch que impregnava o jornalismo popular de então; sua reprovação às instituições políticas "inadequadas" e a menção aos "destinos da pátria" atualizam a crítica que o dramaturgo fazia à esquerdização das redações, associada ao nacionalismo. No final da cena, sancionando o tom de galhofa, uma bola de papel chutada por Caveirinha vem aterrissar no colo do repórter sofisticado.

Beijo no asfalto

A peça de 1961, filmada em l965 por Flávio Tambellini e em 1980 por Bruno Barreto, conta a história do jornalista que inventa uma relação homossexual entre o jovem Arandir e o moribundo atropelado que ele beijou na boca por piedade. Exemplo acabado do jornalista como desencadeador da ação, aqui o "contágio ficcional" atinge seu grau mais elevado: além de o personagem da peça ter o mesmo nome do repórter policial real Amado Ribeiro, o jornal se chama Última Hora, veículo onde Nelson Rodrigues trabalhou tantos anos. Ao entrar na vida dos personagens, o jornalista é capaz de ativar mitos ancestrais e de desa110 tar, ou revelar, as relações doentias ou primevas que o dramaturgo cultivou nas suas criaturas: o amor homossexual do sogro pelo genro Arandir; a paixão da cunhada pelo marido da irmã.

O filme de Bruno Barreto (o de Tambellini não está disponível em vídeo) partilha com a versão de Nelson Pereira dos Santos o fato de explorar o carisma de um ator: Jece Valadão — que se consagrou no filme Os cafajestes, de Rui Guerra — faz o Boca de Ouro; e Daniel Filho é o não menos cafajeste jornalista. De novo voltamos ao citado "contágio ficcional", embora aqui ele ocorra de ficção para ficção: o "cafajeste" Daniel Filho empresta sua "reputação cinematográfica" à composição de mais esse canalha rodriguiano associado, na história, a um parceiro contumaz do jornalista, e tão venal quanto ele: o delegado de polícia.

Barreto acrescenta ao filme um registro televisivo das repercussões do acontecimento e aproveita para contrapor a televisão moderna e objetiva ao repórter Amado Ribeiro: enquanto este manipula os personagens e destrói suas vidas, a televisão de Barreto vai às ruas ouvir a opinião pública e os especialistas, mostrando sua neutralidade, rigor e eficiência. Pela popularidade, por transmitir ao vivo e por dialogar diretamente com o público, a televisão pode ser comparada, embora com sinal trocado, ao rádio de Boca de Ouro. Ao escapar dos chavões do locutor e do kitsch radiofônico, a televisão (de quem o cinema brasileiro vai se aproximar cada vez mais a partir da década de 80) opera com contenção e método, opondo- se ao universo jornalístico de paixões e golpes em que Nelson Rodrigues inscrevia seus personagens.

Há mais um paralelo entre as cenas de rua de Boca e Beijo: no primeiro, o repórter fala ao vivo, mas indiferente aos populares que o rodeiam, afinal não é a eles que se dirige — seu objetivo é apropriar- se do mito e transpô-lo para a sua linguagem; no segundo, os passantes são chamados a opinar sobre os fatos, reiterando um mito cada vez mais prestigiado hoje e sancionado pelo cinema de Barreto: o da transparência da opinião pública.

Com certeza, Nelson Rodrigues não olharia com esses mesmos olhos para a televisão nem encontraria encanto algum nas assépticas redações técnicas e burocratizadas dos jornais de hoje. Na verdade, a "neutralidade" da televisão elogiada por Barreto não passa do contraponto "bem-pensante" à sanha com que os atuais jornais ditos populares abusam de suas "vítimas", ao tratamento retumbante que é dado ao fait divers que tanto seduzia o dramaturgo, esgotando, literalmente, os últimos resquícios do seu potencial dramático. Nesse contexto de instrumentalização dos sentimentos alheios e de otimização do mal, o Diabo Fonseca seria, certamente, uma excrescência. E o dramaturgo, coitado, morreria de tédio.