Portal Brasileiro de Cinema  Quarta fase: tragédia carioca (1953-66)

Quarta fase: tragédia carioca (1953-66)

Caco Coelho

 
 
 
 
 
 
 
 

A vida como ela é… (1951-61) — a coluna que Nelson manteve durante dez anos no jornal Última Hora foi sugestão de Samuel Wainer, que sonhava com uma seção que valorizasse o fato policial. Nos primeiros dois anos, Nelson escreveu mais de quatrocentas colunas; ao longo dos dez anos deve ter escrito mais de 2 mil contos. Até novembro de 1951 a coluna era chamada de Atirem a primeira pedra. Em dez meses, o jornal se tornou o mais vendido no país, resultado direto das reportagens de Nelson, que logo abandona o fato do dia e vai buscar, na experiência de repórter policial, a atualidade na força do acontecimento. Uma seleção das colunas, organizada por Ruy Castro, foi publicada em livro pela Companhia das Letras, em 1992.

A falecida (1953) — a oitava peça de Nelson estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 8 de junho de 1953, com direção de José Maria Monteiro e cenário de Santa Rosa, exatos dez anos após a estréia de Vestido de noiva. A peça começa com as previsões de madame Crisálida e o ambiente não é mais o interior, ou um lugar ignorado, mas sim o subúrbio carioca, onde se encena a surpreendente traição da tuberculosa Zulmira cumprindo o destino da mulher, a orquestração do funeral com pompas que não se vê mais e a vingança conduzida até a própria morte. Zulmira é uma derrotada pelo abandono da beleza;Tuninho, desempregado, vê no dinheiro do jogo do bicho sua única saída, e o sexo é a chave para essa porta.

 
Sérgio Cardoso, Jose Maria Monteiro, Sônia Oiticica e Nelson durante leitura de A falecida

A mentira (1953) — o primeiro romance realmente assinado por Nelson Rodrigues foi publicado originalmente, como folhetim (dezoito capítulos), no semanário Flan, de Samuel Wainer, entre 21 de junho a 31 de outubro. Baseado em complexa estrutura dramatúrgica, inclui seqüências de verdades ocultadas pelo tempo, açoitadas pela avassaladora mentira, que, num ritmo cinematográfico, vão sendo desveladas por fatos inimagináveis. Dr. Maciel é obcecado por Lúcia, a caçula de suas quatro filhas. Todos, filhas e genros, moram juntos, numa enorme casa antiga na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro. Mas Lúcia é fruto de uma infidelidade de d. Ana, a esposa de Maciel. Quando ele descobre, diz ameaçadoramente: "Graças! Oh, graças!". Ginecologistas loucos, cunhados incestuosos demonstram a corrosão da classe média. Reeditado em livro, em 2002, pela Companhia das Letras.

Pouco amor não é amor (1953-4) — coluna que Nelson manteve no Flan até o fechamento do semanário, com a morte do presidente Getúlio Vargas. Espécie de A vida como ela é…, mas publicada aos domingos, com histórias maiores. Deu origem a enredos como Boca de Ouro (inspirado em "A morte azul"). "A coroa de orquídeas", que batiza um dos livros de A vida como ela é…, é um dos contos que saiu originalmente nesta coluna. Com tom mais pesado, as histórias são recheadas de morbidez, e mais uma vez colocam pari passu o patético e o humorístico. Publicado em livro pela Companhia das Letras, em 2002.

 
Roberto Batalin e Léa Garcia em Perdoa-me por me traíres

Perdoa-me por me traíres (1957) — a nona peça de Nelson, uma tragédia carioca de costumes, estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1957, com direção de Léo Júsi. Única peça em que Nelson atuou, como o tio Raul. A peça foi tão aplaudida quanto vaiada. Era um canto à infidelidade, mesmo não pronunciada. "A adultera é mais pura porque está salva do desejo que apodrecia nela". A esse ambiente soma-se o incômodo grotesco: as primas que se interessam pelo prostíbulo, o desejo incestuoso do tio Raul, que criou Glorinha para que fosse sua. Quase todo o segundo ato se passa em flashback, quando o tio revela o interesse dos irmãos pela mesma mulher, que morre envenenada.

Viúva, porém honesta (1957) — a décima peça de Nelson estreou no Teatro São Jorge, Rio de Janeiro, em 13 de setembro de 1957, com direção de Willy Keller. O ambiente principal é a redação do jornal A Marreta. Seu diretor, dr. J. B. — alusão ao Jornal do Brasil —, quer casar a filha, recentemente viúva. Alegoria entre o real e o imaginário: o intuito da peça é satirizar a crítica especializada que não o poupava.

 
Viúva, porém honesta

Os sete gatinhos (1958) — a 11ª peça de Nelson estreou em 17 de outubro de 1958, no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro, com produção de Milton Rodrigues, direção de Willy Keller, e protagonizada por Jece Valadão. Grande destaque da montagem paulista de Antunes Filho, O eterno retorno. Seu Noronha cria um bordel de filhas para proporcionar um rico enxoval para a filha menor, Silene, na esperança de salvar a todos. Silene, no entanto, matou a pauladas uma gata prenha no Roberto Batalin e Léa Garcia em Perdoa-me por me traíres colégio, que morre ao parir sete gatinhos, numa ironia feroz com a vida. A Gorda, mãe das cinco filhas, simbolizando o desinteresse sexual, escreve obscenidades nas paredes do banheiro. Bibelot, o homem vestido de virgem, é o sedutor que será assassinado no lugar do pai.

Boca de Ouro (1959) — a 12ª peça de Nelson estreou em 1960, com direção de Ziembinski, e ganhou dimensão nacional com a encenação de José Renato, realizada no Teatro Nacional de Comédia, no Rio de Janeiro, em 1961. História do bicheiro que manda arrancar todos os dentes para substituí- los por outros, de ouro. Narrada em flashback, através de uma entrevista feita pelo repórter Caveirinha com uma amante abandonada pelo bicheiro. São três versões contraditórias, que demonstram a brutalidade da vida, traduzidas pela relação do casal Celeste e Leleco. Nascido numa pia de gafieira (idéia colhida num conto escrito seis anos antes), o Boca de Ouro quer ser enterrado num caixão de ouro, mas acaba num necrotério, sem dentes na boca.

Asfalto selvagem (1959-60) — oitavo romance de Nelson, publicado como folhetim no jornal Última Hora, entre agosto de 1959 e fevereiro de 1960. É dividido em dois livros, num total de 112 capítulos. A primeira parte, Engraçadinha, seus amores e seus pecados, dos doze aos dezoito, é o único romance de Nelson situado fora do Rio de Janeiro: é Vitória (ES) que ambienta, nos anos 40, os primeiros passos e descompassos de Engraçadinha, o amor entre primas e a disputa pelo mesmo homem. No segundo livro, a história se passa no subúrbio carioca, em Vaz Lobo, no final dos anos 50. É nesta fase que Nelson demonstra todo o seu desprezo pelos métodos policiais e pela corrosão política e jurídica, simbolizada na figura do dr. Odorico. Vários dos personagens são inspirados em pessoas reais, dando sinais da próxima etapa estilística, a do ensaísta. Reeditado pela Companhia das Letras em 1994, num único volume.

Beijo no asfalto (1960) — a 13ª peça de Nelson estreou no Teatro Ginástico, Rio Viúva, porém honesta de Janeiro, em 7 de julho de 1961, com direção de Fernando Torres, cenários de Gianni Ratto, e participação de Fernanda Montenegro, como Selminha. Escrita a pedido de Fernanda, é mais uma narrativa jornalística, dessa vez conduzida pelo repórter Amado Ribeiro. Um homem cai na rua e é atropelado por um lotação. O transeunte Arandir se aproxima e o agonizante lhe pede um beijo. Arandir dá o beijo e é assistido pelo sogro e por um repórter. O repórter, mancomunado com o delegado de polícia Cunha, aproveita o episódio para forçar um romance escabroso de homossexualidade e crime, como analisa o psicanalista Hélio Pellegrino. A ação está no diálogo e o beijo é uma inquirição metafísica sobre a morte.

 
Sueli Franco,Fernanda Montenegro e Oswaldo Loureiro em Beijo no asfalto

Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária (1962) — a 14ª peça de Nelson estreou no Teatro Maison de France, em 28 de novembro de 1962, com direção de Martim Gonçalves. Destaque para a atuação de Fregolente, responsável pelo batismo do estilo rodriguiano de interpretação. Para Hélio Pellegrino, a peça é uma meditação dramática sobre o mistério da bondade humana. A história de Edgard, personagem central, é a de sua descida aos infernos, onde ele se arrasta na lama. Ao "se Deus não existe, tudo é permitido", Nelson antepõe: "se Deus existe, tudo é permitido". E atribui ao eterno amigo Otto Lara Resende a frase que conduz o milionário dr.Werneck: "o mineiro só é solidário no câncer". É para restaurar a degradação sofrida por Ritinha, filha do dr. Werneck e vítima do estupro simulado dos crioulos, que o dinheiro dele é arrojado à cara do empregado.

Toda nudez será castigada (1965) — a 15ª peça de Nelson estreou no Rio de Janeiro, no Teatro Serrador, em 21 de junho de 1965, com direção de Ziembinski. Narrada a partir de um flashback da personagem Geni, que está morrendo, conta a história de uma prostituta que acaba apaixonada por pai e filho. Herculano, o pai, é levado a conhecer a prostituta Geni, por quem fica dilaceradamente apaixonado. A peça se passa num bordel, instrumento poderoso da dramaturgia rodriguiana, e põe por terra qualquer especulação em torno de uma moralidade pressuposta do autor. A surpresa da revelação final em torno do filho de Herculano evidencia a loucura do ser humano.

 
Cleyde Yáconis e Luís Linhares em Toda nudez será castigada

O casamento (1966) — Nelson escreveu seu nono e último romance a convite de Carlos Lacerda, que abria a Editora Nova Fronteira. O único romance escrito como livro acabou sendo publicado por Alfredo Machado, da Editora Eldorado; e foi imediatamente proibido. Sua linguagem consagra a violência verbal de Nelson, e o romance é um marco da literatura brasileira. A preocupação homossexual ronda o personagem de dr. Sabino. A história ocorre em flashback, a partir da morte de Edgard, sedutor e arriscado amor de Glorinha. A presença desvendadora do ginecologista, o sexo entre as primas e o amor desenfreado do pai são retomados, criando situações surpreendentes.