AMARELO MANGA

Cláudio Assis
RECIFE, 2002, COR, 35 MM., 103 MIN.

 
 

No desfile de taras, fraquezas e paixões promovido em Amarelo manga, não há lugar para meios-termos e platitudes. O excesso dá o tom, o que pode levar a extremos "desagradáveis", para usar o termo com que Nelson Rodrigues chegou a definir seu teatro a partir de Álbum de família. Como nas obras do escritor, o filme não se limita ao exercício de uma estética do choque. Ou ambiciona o choque maior, quando aquele "outro" tão distante nos envolve e o estranhamento torna-se reconhecimento.

A evangélica Kika Canibal encarna o feminino rodriguiano, uma versão de Engraçadinha, para quem todas as preces do mundo não são suficientes para evitar o apelo dos sentidos. Depois de flagrar o marido com a amante e de arrancar com os dentes um pedaço da orelha da "vagabunda", Kika reconhece: "eu era uma mulher morta por dentro". A imagem da mulher morta é recorrente na obra de Nelson, com tratamentos que variam do dramático (Alaíde, cujo acidente deflagra os três planos narrativos de Vestido de noiva) ao absurdo (a morta de Dorotéia que continua a viver porque ninguém lhe avisa que havia morrido), sem dispensar o efeito cômico (a protagonista de A falecida nega-se a dar explicações ao marido sobre suas últimas vontades: "Uma morta não precisa responder"). Até a frase antológica de Toda nudez será castigada, que Darlene Glória cravou na história do cinema brasileiro: "Herculano, quem te fala é uma morta". Na melhor tradição rodriguiana, as mulheres de Amarelo manga, por mais abatidas, decadentes e reprimidas que estejam, ainda assim destilam uma carga de vitalidade muito superior à dos personagens masculinos, que se revelam de uma fragilidade em tudo oposta à banca de macho que fazem questão de exibir. Se Nelson contribuiu decisivamente para plasmar uma fala brasileira na literatura, aqui o roteirista Hilton Lacerda recria nos diálogos a força expressiva de um possível "estilo pernambucano", no que ele tem de inventivo, maldoso, sublime, vulgar.

Em Amarelo manga, tão forte quanto a violência social é a violência dos sentidos, dos desejos. Os acontecimentos são excepcionais e banais, tudo de novo, mas tudo novo. Se não fosse assim, o filme poderia terminar depois da notícia lida pelo locutor de rádio logo no início: "Dona de casa muito respeitável encontrou seu marido com a amante. Aí a coisa ficou preta. Ela, uma evangélica, partiu pra cima da fulana e foi um tal de deus nos acuda. Resultado: a amante no hospital, ferida, e a corna, ninguém sabe, ninguém viu".

Luciana Corrêa de Araújo

PRODUTORA: Parabólica Brasil e Olhos de Cão

PRODUÇÃO: Paulo Sacramento e Marcelo Maia

ROTEIRO: Hilton Lacerda (a partir de argumento de Cláudio Assis)

FOTOGRAFIA E CÂMERA: Walter Carvalho

DIREÇÃO DE ARTE: Renata Pinheiro

MONTAGEM: Paulo Sacramento

MÚSICA: Jorge du Peixe e Lúcio Maia

ELENCO: Matheus Nachtergaele, Jonas Bloch, Dira Paes, Chico Diaz, Leona Cavalli, Conceição Camarotti, Cosme Prezado Soares, Everaldo Pontes, Magdale Alves, Jones Melo